Um sentido para a
vida
Palestra realizada em 20 de
novembro de 1997 na Federação do Comércio do Estado de São
Paulo, onde Frei Betto, um dos maiores teólogos e intelectuais
brasileiros, fala do papel da ciência, da educação e da
religiosidade no mundo moderno
Minha intenção é falar sobre o
momento que estamos vivendo, momento confuso em termos de
perspectiva do futuro. A primeira evocação que faço é da
pintura de Michelangelo na Capela Sistina, "A criação de Adão",
em que a figura de Deus, recoberto de mantos e com a barba longa,
estende o dedo para Adão. Ao mesmo tempo em que Adão, como símbolo
da humanidade, é atraído em direção à Terra, ele estende o
dedo na direção do Criador, espécie de premonição nostálgica
de que é preciso não perder o contato com a fonte, com a raiz,
que é Deus. Michelangelo foi genial, porque é muito difícil
compreender o momento em que se vive. É fácil analisar os
momentos depois que eles passaram. O artista, com sua intuição,
com seu talento, tem o dom de captar o momento, que depois a
epistemologia e a filosofia tentam explicar.
O que acontecia naquele momento da
"descoberta" da América, da "descoberta" do
Brasil? A passagem. Diria que não estamos vivendo uma época de
mudanças. Estamos vivendo, hoje, uma mudança de época. A última
mudança de época foi justamente na "descoberta" da América,
quando o Ocidente passou do período medieval para o moderno. A
pintura de Michelangelo expressa, com genialidade, essa chegada de
um tempo em que o conhecimento, a epistemologia, se desloca de uma
perspectiva teocêntrica para uma perspectiva antropocêntrica. A
rainha das ciências, durante mil anos, no período medieval, foi
a teologia. A rainha das ciências, da modernidade é a física. O
período medieval se baseava na fé; o moderno, na razão. O período
medieval se baseava na contemplação das verdades reveladas; o
moderno, na busca da compreensão da mecânica deste mundo e no
pragmatismo, na transformação deste mundo.
Quando os camponeses medievais
preparavam o campo, aspergiam água benta e ainda pagavam aos
padres pela água comprada. Até que apareceu um sujeito, que não
era cristão, com um pozinho preto, dizendo: "Ponham isso na
terra, e irão produzir mais do que com a água benta dos
padres". De fato, o adubo resultou numa produtividade muito
maior do que a água benta. Isso criou uma crise de fé no fim da
Idade Média. Por quê? Porque a fé medieval, como muitas vezes a
nossa fé hoje, é uma fé sociológica, que tem como anteparo
nossa compreensão do mundo. Uma vez que essa compreensão é
mudada, a fé desaba. Aliás, muitas vezes passamos por crises
espirituais que, na verdade, não deveriam ser entendidas assim,
mas como crises de cosmovisões ou de mundividências que
sustentam nossa maneira de compreender a experiência da fé.
Descartes e Newton
A modernidade aparece, primeiro,
com o grande movimento da globalização que foram as navegações
ibéricas. Falamos hoje em globalização como se fosse novidade.
Mas, na Escola de Sagres, já se falava em globalização, com
outras palavras. E tanto globalizaram que conseguiram abarcar
outras regiões do planeta, embora Colombo tenha morrido sem saber
que havia chegado à América. Morreu convencido de que tinha
alcançado Cipango, nome que se dava ao Japão. As descobertas marítimas,
a criação das universidades, principalmente da Sorbonne, que é
do século 12, e da Universidade de Bolonha, e as corporações
marítimas, que são as matrizes dos sindicatos, foram três
fatores que, de certa forma, prepararam o advento da modernidade.
Todos nós somos filhos da modernidade. Nossa estrutura de
pensamento é moderna, mas nem sempre foi assim, e nem em toda
parte do mundo é assim.
Qual é a característica da
modernidade? São duas pernas: a filosofia de René Descartes e a
física de Isaac Newton. Descartes, com o "Penso, logo
existo", mostrou que a razão é capaz de decifrar os enigmas
do conhecimento. Já contemporaneamente a ele, ou um pouco antes,
um acontecimento marcou decisivamente a introdução da visão
moderna: a astronomia de Nicolau Copérnico, depois complementada
por Galileu Galilei. Copérnico fez algo de revolucionário, a
ponto de hoje se falar de revolução copernicana, porque até então
as pessoas olhavam o mundo com os pés na Terra. Copérnico fez o
inverso: como será a Terra se eu me imaginar com os pés no Sol?
A partir dessa mudança, ele teve uma compreensão completamente
diferente do universo, mas só ousou partilhá-la em seu leito de
morte, com medo da Inquisição. Depois veio Galileu e acabou com
a idéia de que a ciência é baseada no senso comum. Detalhe: o
que Galileu constatou cientificamente no século 17, Eratóstenes
já havia comprovado na Grécia, três séculos antes de Cristo.
Eratóstenes, astrônomo grego, afirmava que a Terra é redonda e
gira. Ele teve o cuidado de colocar estacas entre duas cidades e
medir a incidência do Sol sobre essas estacas, constatando que a
sombra que o Sol projetava comprovava que a Terra era redonda e
gira. Mas Eratóstenes não tinha lobby suficiente para fazer
prevalecer sua opinião. O mais fantástico é que ousou medir a
cintura da Terra, e chegou à conclusão de que ela tinha 39 mil
quilômetros. No século 20, a ciência constatou que são 40.008
quilômetros.
A idéia de que vivemos num
planeta, que não é o centro do universo, foi extremamente
desconfortável para a Igreja, primeiro porque, na Bíblia, consta
que Josué parou o Sol. Se a palavra de Deus afirma que Josué
parou o Sol, como um cientista ousa afirmar que não é o Sol que
gira, mas é a Terra que gira em torno do seu próprio eixo e em
torno do Sol? E depois, diziam a Galileu, o Sol nasce no leste,
passa sobre nossas cabeças, desce no oeste, durante a noite
caminha por baixo da Terra e, de repente, renasce novamente no
leste. É ele que gira. A grande revolução que introduz a
modernidade foi provar que a ciência não é o que parece, mas o
que se comprova pela experiência e pela pesquisa.
Descartes levou isso ao plano filosófico.
Ele tanto influenciou a modernidade que ainda hoje nossa ciência
e nossa chave de conhecimento são profundamente cartesianas. O
exemplo mais óbvio é a medicina. Você vai ao médico, tem um
problema cardíaco e ele receita um remédio muito bom para o coração.
O resultado é o aparecimento de um pequeno problema colateral no
intestino, mas para o coração o medicamento é ótimo. Se o
problema é intestino, você toma um outro remédio, que vai
provocar uma pequena insônia, mas não se preocupe. Ou vai ao médico
do espírito, o terapeuta, o psicanalista, e alguns nem sequer lhe
estendem a mão porque não pode haver contato físico. Mas o médico
do corpo, que manda fazer uma série de exames, nem sempre tem o
cuidado de perguntar sobre sua história familiar, seus hábitos,
como é o seu cotidiano, o que você come. Ou seja, a cultura
moderna é tão cartesiana, tão fragmentada, sem percepção do
todo, que não temos, como na China e no Tibete de antigamente, o
médico da pessoa, nós temos o médico do detalhe. Na China
antiga você pagava o médico enquanto tinha saúde. Ficando
doente, ele tinha que tratá-lo de graça, porque a
responsabilidade do médico é assegurar sua saúde. Nós pagamos
o médico quando ficamos doentes. Então ele não se sente
propriamente responsável pela preservação de minha saúde.
A segunda perna da modernidade é a
física de Newton, que imaginou o universo como um grande relógio,
sendo Deus o relojoeiro. Como os nossos relógios, o universo
possui uma mecânica interna. No meu relógio os ponteiros
coincidem com o movimento do tempo pela razão dessa mecânica
interna. Não preciso dar corda a cada minuto no meu relógio, nem
preciso mover com o dedo os ponteiros para que haja essa coincidência.
Então Newton concluiu que o universo também possui leis endógenas:
quanto mais conseguimos decompor as coisas em seus mecanismos
internos, melhor vamos conhecer essas coisas. Resultado: toda a ciência
da modernidade é uma ciência da decantação, da decomposição,
da fragmentação. Ninguém escapa disso. A física se tornou a
rainha das ciências porque conseguiu provar que os fenômenos não
acontecem por acaso, mas possuem leis. Podemos não entender essas
leis. Os índios pueblos, no México, acreditavam, antes da
chegada de Colombo, que o Sol nascia graças aos ritos que eles
promoviam todas as madrugadas. Acredito que os índios pueblos
nunca tenham se arriscado a dormir até mais tarde, com medo de o
universo ficar escuro. Newton acharia graça nessa história,
porque ele dizia: "Independentemente da minha vontade, o Sol
vai nascer todos os dias, pelo fenômeno da rotação da
Terra". No fim do século 17, um astrônomo inglês chamado
Edmund Halley viu um cometa cruzar os céus de Londres e passou a
noite debruçado sobre sua escrivaninha fazendo cálculos. No dia
seguinte, reuniu a comunidade científica e previu: "Dentro
de 77 anos, aquele cometa, que ontem à noite atravessou os céus
de Londres, voltará a passar". Muitos acharam que Halley
tinha ficado louco: como alguém, sem nenhum instrumento capaz de
captar o movimento dos astros, fechado em sua casa, pode afirmar,
com tamanha segurança, que aquele astro brilhante vai voltar
exatamente dentro de 77 anos? Mas a comunidade científica o levou
a sério e, efetivamente, em 1759, 77 anos depois (Halley já
tinha morrido), o cometa que leva hoje seu nome atravessou de novo
os céus de Londres. Foi a glória da razão. Ou seja, se a razão
é capaz de prever com tamanha exatidão o movimento dos astros,
é capaz de reequacionar todos os problemas humanos. Aí vem o
Iluminismo para dizer: o que não é racional não é real. A
religião, então, passou a escanteio total, como pura superstição.
A natureza somos nós
A modernidade se construiu com a
supervalorização da razão, com a capacidade de transformar o
todo nas suas partes. Mas, muitas vezes, vendo as árvores sem
perceber a floresta. E, no fim de cinco séculos de modernidade,
qual é o saldo que temos? Lamentavelmente, não é dos mais
positivos. É por isso que se fala em crise da modernidade.
Primeiro, graças ao avanço da ciência e da tecnologia, temos
hoje capacidade bélica para destruir o planeta pelo menos 30
vezes e não chegamos à capacidade humana de salvá-lo uma vez.
Lamentavelmente, temos hoje 5,8 bilhões de pessoas no planeta,
das quais cerca de 2 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza.
Esse é um primeiro fenômeno.
Segundo a FAO (Food and
Agricultural Organization), temos produção de alimentos
suficiente para 10 bilhões de pessoas e, conforme a própria FAO,
o Brasil é um país privilegiado porque é o único que tem
potencial para colher três safras por ano. Com dimensões
continentais, não é afetado por nenhuma catástrofe natural. Não
tem vulcão, não tem deserto, não tem terremoto, não tem furacão,
não tem geleiras, não tem zonas inabitáveis, como a China, que
é apenas 1 milhão de quilômetros quadrados maior do que o
Brasil, mas é habitável só em 16% do território.
Outro fenômeno: não superamos os
conflitos regionais internacionais. Ainda somos uma humanidade
guerreira. E há também o fenômeno da destruição do meio
ambiente. A razão instrumental, característica da modernidade,
fez com que, ao usarmos a natureza, nós a destruíssemos. Só que
a natureza se vinga. Não é que a natureza se vinga porque está
raivosa, mas porque não há, ao contrário do que supunha a
modernidade, diferença entre nós e a natureza. Nós somos seres
da e na natureza, fazemos a natureza, fazemos a nós e ao nosso próprio
corpo. E agora começamos a sentir os reflexos disso.
Mais: a modernidade está em crise
porque as quatro grandes instituições, nas quais ela se apoiou,
estão em crise: família, Igreja, escola e Estado. Sabemos que os
modelos antigos não estão vigorando mais. Alguns, numa atitude
saudosista, querem ainda manter ou trazer à atualidade aquilo que
foi bom no passado. Não é fácil, porque há novos paradigmas
sendo forjados nisso que hoje os filósofos já chamam de pós-modernidade.
A crise da família é a crise das
relações de gênero – ou seja, uma vez que o patriarcalismo
começa a fracassar, a emancipação feminina se afirma e novos
papéis sexuais, como o dos homossexuais, se desclandestinizam.
Isso nos obriga a encarar a questão da família e das relações
de gênero por uma outra ótica. Segundo, a Igreja. As igrejas
históricas contavam com o anteparo do consenso social. Isso não
acontece mais. Vivemos numa sociedade pluralista, uma sociedade
onde as crenças são tão variadas quanto possível e não têm
mais força para se impor como uma espécie de teologia com
anteparo estatal, como aconteceu no período medieval ou mesmo na
ascensão dos Estados modernos na Europa, que sustentaram o
protestantismo. Martinho Lutero só não foi parar na fogueira da
Inquisição graças aos príncipes europeus, que estavam
interessados em romper com a tutela do Vaticano. E os Estados
europeus só adquiriram autonomia porque buscaram legitimação
religiosa no protestantismo nascente. Tivesse o papa assegurado
sua hegemonia, Lutero teria ido para a Inquisição, como os
albigenses e tantos outros. A hegemonia católica sobre a Europa
teria se mantido, e possivelmente o protestantismo, pelo menos
naquele momento, não teria se expandido com a força que teve.
Hoje, essa crise é provocada pelo
fenômeno da globalização, que faz com que o mundo se transforme
numa pequena aldeia, de tal maneira que as várias modalidades de
crenças religiosas possam ser intimamente conhecidas por povos
entre os quais elas não têm raiz, como é o caso do budismo ou
do islamismo.
Massa disforme
A escola está em crise, porque
nada é mais cartesiano e newtoniano do que a escola. Se os
paradigmas da modernidade entram em crise, a escola também entra
em crise. E por que a escola entra em crise? São Tomás de Aquino
tem uma frase de que gosto muito: "A razão é a imperfeição
da inteligência". Ou seja, a inteligência vem de intus
leggere (ser capaz de ler dentro). Há pessoas analfabetas que são
sumamente inteligentes. Inteligir uma situação não depende
propriamente de cultura, depende de sensibilidade, de intuição,
daquilo que a Bíblia chama de sabedoria. E hoje constatamos que a
escola nos torna cultos, mas não nos torna necessariamente
inteligentes. Passei 22 anos nos bancos escolares, e a escola
nunca tratou dos temas limites da vida, nunca falou de experiências
pelas quais passamos, se não por todas, pelo menos pela maioria,
nunca falou de doença, nunca falou de fracasso, nunca falou de
ruptura de laços afetivos, nunca falou de dor, nunca falou de
morte, nunca falou de sexualidade e, se falou de religião, não
falou de espiritualidade. Ou seja, temos uma escola tipicamente
cartesiana, barroca. É como aqueles anjos das igrejas de Minas
Gerais e da Bahia, que só têm cabeça, o resto é uma massa
disforme. Nossa escola cartesiana acha que devemos saber como são
os conceitos da física, mas saímos da escola sem saber consertar
automóvel, televisão, geladeira, pregar um botão na camisa,
cozinhar um ovo, fazer café. Não somos preparados para prestar
primeiros socorros, para fazer coisas absolutamente triviais do
nosso cotidiano, porque a escola separa a cabeça das mãos, não
nos abarca na totalidade, na formação do ser como tal para a
vida. Ela dá instrumentos de compreensão e modificação da
natureza, que constituem a cultura, mas não propriamente de uma
interação com a natureza.
Por fim, o Estado. O Estado hoje,
devido à globalização e ao papel que os grandes conglomerados
empresariais desempenham no mundo, é parceiro de um projeto de
desenvolvimento, mas não é mais o fator determinante desse
projeto. A transnacionalização da economia rompe com as
fronteiras nacionais, questiona o conceito de soberania e traz um
momento de crise. Isso porque a globalização é inevitável, os
meios de comunicação transformaram o mundo numa pequena aldeia.
Minha avó, em São João del Rei, via pela janela de sua casa o
mundo se transformar a cada dez ou 15 anos. Hoje, a janela pela
qual vemos as mudanças do mundo é a telinha da televisão. Se
para a minha avó as mudanças levavam dez anos, para nós elas
acontecem em dez segundos. Essa aceleração das mutações mexe
profundamente com nossos valores tradicionais e tem reflexos sérios
do ponto de vista dos paradigmas da modernidade.
Quais são os setores mais
atingidos por essa crise? Na modernidade, falava-se em
desenvolvimento. Encíclicas papais e políticos falavam disso. O
conceito de desenvolvimento tem uma dimensão ética. Hoje a
palavra é modernização, cujo conceito tem uma dimensão mais
tecnológica, no qual nem sempre se inclui o bem-estar de todos,
como no conceito de desenvolvimento. Aliás, já não existem
projetos de países ricos para o desenvolvimento de áreas pobres
do mundo. Falávamos em produção. Hoje falamos em especulação.
O mundo virou um cassino global (está aí a crise das Bolsas), em
que dinheiro rende dinheiro. Há mais dinheiro virtual do que
real. Falávamos em trabalho; o trabalho era, na modernidade, o
fator de identificação do ser humano. Hoje, fala-se de mercado,
quem está e quem não está no mercado. A Bíblia, lida por certa
ótica, diz que o trabalho é um castigo: "Comerás o pão
com o suor do teu rosto". Viviane Forrester, em Horror econômico,
lembra que, hoje, o trabalho é uma bênção: "Feliz de quem
tem um trabalho".
Minha geração deve ter sido a última
que teve o luxo de ter vocação. A gente chegava aos 15 anos
perguntando: "Qual será a minha vocação?" É muito
difícil achar um jovem, hoje, que esteja terminando o curso
colegial e fale em vocação, tenha idéia de qual é a sua vocação.
Trabalho na Pastoral Operária. Há dez anos, via muitos operários
dizerem: "Eu tenho profissão". No meio operário há
uma diferença entre aquele que tem profissão e o que não tem.
Hoje, profissão também está ficando um luxo. A questão é a
seguinte: como faço para ter um emprego? Antônio Ermírio de
Moraes, certo dia, disse na televisão: a empresa dele tinha, há
dez anos, 62 mil funcionários, hoje tem 40 mil. Quando cheguei a
São Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Volkswagen tinha 45 mil
funcionários e fabricava 750 veículos por dia. Hoje produz 1,25
mil diariamente, com 25 mil funcionários. A Benetton inaugurou em
Milão, na Itália, uma máquina de confecção automatizada e, no
dia seguinte, despediu 3 mil funcionários. Estamos vivendo um
processo angustiante de avanço tecnológico sem uma reflexão, não
digo nem política, porque a questão é muito mais ampla, uma
reflexão sobre a questão do trabalho, do emprego, das condições
sociais geradas pela globalização. Eu faria até um paralelo: é
como querer ganhar a guerra. Você pode ganhar a guerra com a
bomba atômica, como afinal se ganhou a Segunda Guerra em
Hiroshima e Nagasaki. O custo humano, porém, é muito grande. Será
que ele não pode ser evitado? Será que não podemos ganhar a
guerra do desenvolvimento tecnológico e científico com menos
custo para as pessoas?
Educação televisiva
Falávamos em bem comum. Essa
expressão está sumindo até dos documentos da Igreja. Hoje,
falamos em tecnologia de ponta. Falávamos em nação, hoje
falamos em globalização. Falávamos em cultura. Hoje, de tal
maneira os veículos de cultura estão atrelados à publicidade
que estamos tendo menos cultura e mais entretenimento. A sensação
que tenho, depois de passar uma semana vendo a televisão
brasileira, é de ter ficado mais pobre espiritualmente, sobretudo
no domingo, que é o dia nacional da imbecilização geral. Na
segunda-feira, a gente tem ressaca moral, precisa de um tempo para
se refazer, depois de ver o ser humano sendo tão degradado,
ridicularizado e ainda com um toque de humor.
Vivemos uma esquizofrenia social.
De um lado, queremos defender os nossos valores religiosos, morais
etc., e, de outro, temos, dentro de casa, uma pessoa da família,
eletrônica – a telinha –, que não foi convidada, não pede
licença, não dialoga e nos impõe valores que nem sempre
conferem com os nossos. É a história da minha cunhada, que me
disse: "Betto, fui aluna de colégio de freira, por isso
paguei muitos anos de análise para me livrar da idéia de que
tudo é pecado. Espero que meus filhos, quando adultos, escolham
se querem ou não ter uma religião, mas não pretendo
ensinar-lhes nenhuma religião". Eu lhe disse: "Você,
como mãe, tem todo o direito de fazer essa opção. Mas, como
pessoa, não tem o direito de ser ingênua. Ou você educa ou a
Xuxa educa. Não pense que existe neutralidade. Se você não
educar, a televisão vai ensinar a seus filhos o que é bem, o que
é mal, o que é certo, o que é errado, o que é justo, o que é
injusto". É uma questão de opção.
Falávamos em valores, hoje falamos
de sucesso. E introduzimos cada vez mais na linguagem e na prática
a idéia da competitividade. Às vezes, faço treinamento de
recursos humanos em empresas, e os treinamentos são interessantes
porque não se trata de fazer palestras, trata-se de captar o pano
de fundo da cultura da empresa. Um dos detalhes mais interessantes
é o seguinte: os funcionários de uma mesma empresa praticam
entre si a competitividade. A idéia da competição com outras
empresas é internalizada de tal maneira, que a coisa emperra
porque a competitividade está lá dentro, onde deveria haver
cooperação. A competitividade vai entrando de tal forma que as
pessoas já não sabem estabelecer um nível mínimo de cooperação.
Falávamos de realidade, hoje
falamos de virtualidade. A realidade virtual é positiva, do ponto
de vista da interação no planeta, que se transforma numa pequena
aldeia, mas perigosa do ponto de vista da abstração dos valores.
Em outras palavras, do meu quarto no convento no bairro das
Perdizes, em São Paulo, posso ter um amigo íntimo em Tóquio,
mas não quero nem saber o nome do vizinho de porta. Então sou um
amigo virtual. Há até o sexo virtual, por computador, que está
trazendo um problema para a teologia moral: o adultério virtual.
Sofremos o risco de entrar numa concepção de virtualidade que
nos leva a falar em cidadania e continuar jogando lata de
refrigerante e cerveja pela janela do carro, invadindo a faixa de
pedestre etc. Vamos criando toda uma linguagem que é virtual e não
tem incidência no real. Na vida real, ficamos cada vez mais
agressivos, mais violentos, mais competitivos.
Falávamos em história. Esse é
outro fator da crise da modernidade: estamos perdendo a idéia do
tempo como história. Daí a dificuldade das novas gerações de
construir um projeto. Nossa geração foi educada pela literatura
e não pela televisão. Somos a última geração literária da
humanidade. O que isso muda? Quem foi educado pela literatura
percebe o tempo como passado, presente e futuro, como projeto. A
televisão rompe a historicidade do tempo e introduz a
circularidade. Ao mesmo tempo que vejo na metade da tela Ayrton
Senna vivo, na outra metade vejo-o morto. Então, na cabeça das
novas gerações não há história. Daí a dificuldade de seu
filho ou de seu neto fazerem projeto. A geração deles é tudo
"aqui e agora". Por que hoje não se fala em QI, mas em
inteligência emocional? Porque muitas empresas constatam que seus
executivos, do ponto de vista do QI, são geniais, mas são garotões,
emocionalmente infantilizados, e isso afeta profundamente sua relação
com as pessoas, na medida em que hoje há um processo de perenização
da juventude, o que é saudável de um lado e perigoso de outro.
As pessoas malham muito o corpo,
mas esquecem de malhar o espírito. Não tenho nada contra o fato
de malhar o corpo. Minha preocupação é a seguinte: como é que
se malha o espírito? A cidade de Ribeirão Preto (SP), em 1960,
tinha seis livrarias e duas academias de ginástica; hoje tem 60
academias de ginástica e seis livrarias. Como se resolve isso?
Por fim, estamos perdendo, na crise
da modernidade, a idéia da contextualidade das coisas, ou seja,
que tudo está relacionado com tudo – que é o novo paradigma
holístico. Não há eu de um lado e a natureza de outro. Todos
somos frutos da evolução do universo. Cada um de nós tem 15
bilhões de anos. Foram precisos 15 bilhões de anos de evolução
para que o universo um dia se singularizasse na sua pessoa.
Enquanto não existíamos, enquanto não existia o ser humano (a
menos que haja vida inteligente em outro planeta. Até acredito
que sim, mas tendo captado nossas transmissões de TV eles
chegaram à conclusão de que na Terra não há vida inteligente,
e, então, não convém se aproximar, não vale a pena o esforço),
o universo era cego, não sabia que era belo. Então o universo
criou a nós, que somos seus olhos e sua mente. Através de nós o
universo sabe que é belo e, por isso, o chamamos de cosmo, que
tem a mesma raiz grega da palavra "cosmético", aquilo
que traz beleza.
Um sentido para a vida
Esse paradigma holístico que a pós-modernidade
procura reatar – os gregos de certa maneira tinham isso – vai
nos dando a dimensão de que, na natureza, há mais cooperação
do que segregação, do que seleção, como o neodarwinismo tanto
defende. E na sociedade também esse processo de cooperação deve
prevalecer sobre a competição.
A holística, hoje, nasce da emergência
do fenômeno ecológico, mas se estende para o campo social e
filosófico. Dentro disso, há uma percepção das pessoas a
respeito dos limites da razão e há um certo cansaço do
racionalismo. Isso leva a um fenômeno novo, que é a emergência
da espiritualidade. Hoje, em qualquer livraria de qualquer país,
a literatura religiosa, esotérica e espiritualista tem uma grande
aceitação. Isso significa que as pessoas estão ficando mais
religiosas? Não necessariamente. É que as pessoas estão ficando
saturadas de tanto racionalismo. Elas estão buscando algo que o
consumismo não oferece, um sentido para a vida. Ou seja, não
posso encontrar o sentido para minha vida no automóvel novo que
comprei ou na lata de cerveja que bebo. E a modernidade, com o
excessivo racionalismo e o processo de secularização, foi
clandestinizando a questão do sentido: por que vivo, qual a razão
desta minha única experiência de ser no mundo, neste breve espaço
dos meus anos de vida? A sede de sentido é que explica a busca
desenfreada de religiosidade. Somos o único ser aberto à
transcendência, o único ser que tem fome de Deus. Um cavalo está
na sua plenitude eqüina; uma samambaia, no canto da sala, deve
nos olhar com muita pena, dizendo: "Coitados, ainda têm que
trabalhar, viver emoções atribuladas. Eu estou aqui na minha
plenitude vegetal, preciso apenas de um pouco de água e
sol".
É aí que entra o desafio que se
apresenta para nós hoje: como resgatar a espiritualidade? Quando
falo em espiritualidade, falo em algo que vai além das religiões
institucionais. Estou falando em como resgatar a subjetividade
humana, como resgatar os valores da subjetividade, como voltar a
uma cultura onde o trabalho, o pragmatismo ceda lugar à contemplação,
à reflexão, à sabedoria, ao aprofundamento dos valores. Como
restabelecer vínculos humanos que estão se perdendo com a
aceleração da tecnologia? Às vezes brinco dizendo que sonho
escrever uma peça de teatro sobre uma família que vive numa casa
no campo, onde o acesso à cidade mais próxima não é fácil. De
repente, a luz acaba nessa casa e, por uma semana, ninguém pode
ver televisão. O que aconteceria nessa família obrigada pela
circunstância a dialogar entre si? É capaz de o pai falar para a
filha: "Mas, moça, como é que você se chama mesmo?"
Enfim, isso para mostrar que há uma sede de recuperação desses
valores. Se não abrirmos esses espaços, corremos o risco de tê-los
como núcleos fundamentalistas de retrocesso. Quando as coisas não
encontram espaço na cidade, na polis, elas surgem, como contestação,
de uma maneira fundamentalista, sectária, perigosa.
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