Direitos
Humanos, versão FHC
FREI BETTO
O presidente Fernando Henrique Cardoso
lançou, em seu primeiro mandato, o Programa Nacional de Direitos
Humanos. Se considerarmos que, em 1948, o Brasil aprovou e
assinou, na ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos -
que comemora 50 anos a 10 de dezembro - o programa do governo veio
com atraso de 48 anos. Ao longo desses anos, os direitos humanos,
em nosso país, têm sido violados, vilipendiados e
ridicularizados, inclusive por parte das forças militares e
policiais - as mesmas que estão obrigadas, por dever público
constitucional, a zelar para que sejam respeitados.
Entre numa delegacia policial, visite uma prisão,
vá a um hospital público, converse com crianças de
rua, negros, vendedores ambulantes e desempregados. Verá
como são tratados os direitos humanos. Experimente viver um mês
com salário de R$ 130,00. E conclua se ele assegura seu direito
de sobrevivência em um nível mínimo de dignidade humana.
Em 1968, a ONU convocou, em Teerã, uma Conferência
Mundial de Direitos Humanos. Constatou-se que, 20 anos após a
aprovação da Declaração, as violações prosseguiam: torturas,
assassinatos, censura, abuso de crianças e violência sobre a
mulher. Um programa foi traçado e todos concordaram que 25 anos
mais tarde deveriam sentar-se à mesa para avaliar os resultados.
O balanço foi feito em 1993, em Viena, na 2ª
Conferência Mundial de Direitos Humanos, convocada pela ONU.
Constatou-se que as violações têm sido crescentes, de genocídios
indígenas a massacres de camponeses (vide Corumbiara e Eldorado
dos Carajás), do cerceamento da liberdade de imigrantes ao
ressurgimento de grupos neonazistas. Na própria Áustria, país
anfitrião, denunciou-se, durante o evento, a existência de um
“viveiro” de crianças destinadas a serem sacrificadas em
benefício do tráfico de órgãos.
De nada adianta o programa de FHC se não é
acompanhado de medidas econômicas, urgentes e eficazes, para
reduzir o desemprego, aumentar a escolarização, erradicar o
trabalho infantil, pôr fim ao trabalho escravo, sanear as forças
militares e policiais e, sobretudo, promover a reforma agrária. O
programa de renda mínima às famílias carentes, sugerido pelo
senador Eduardo Suplicy, poderia ser adotado como um primeiro
passo significativo. Mas o que o governo propõe são pacotes
recessivos, sem ônus para os agiotas internacionais, os
especuladores e os detentores de grandes fortunas.
Hoje, o crescimento da pobreza, a ineficiência
do sistema judiciário, os desrespeitos aos direitos da mulher e
da criança, exigem medidas mais concretas que uma carta de boas
intenções recheada de discursos inflamados. Um tema prioritário
é a impunidade dos que violam (e violaram) os direitos humanos,
como a repressão policial-militar aos guerrilheiros do Araguaia e
os torturadores aquartelados pelo poder público. A impunidade
favorece o desprezo da lei. De nada adiantam programas, conferências
e acordos se governos e autoridades, responsáveis pela defesa dos
direitos humanos, são cúmplices de policiais que torturam, de
grupos de extermínio, do racismo, da violência sobre mulheres e
crianças, de interesses corporativos que excluem, do orçamento e
da pauta federais, a questão social.
Falar em direitos humanos no Brasil e na América
Latina é luxo. Aqui, ainda lutamos por direitos animais, pois
comer, abrigar-se do frio, educar a cria, são coisas de bicho. Há
milhões de crianças abandonadas e milhares de mendigos catando
restos em latas de lixo. Por que morrem, de subnutrição, cerca
de 350 mil crianças por ano no Brasil?
Há, porém, um dado tão grave quanto os
alarmantes índices sociais: hoje, no Brasil, denunciar violações
dos direitos humanos é crime aos olhos de certas autoridades. A
corrupção da alma é mais grave que a do bolso. E quase sempre
as denúncias resultam em impunidade para o denunciado e em
transtornos e riscos para o denunciante. Se o presidente e seus
ministros não forem os primeiros a dar o exemplo de atitudes
firmes, este programa será mais uma peça demagógica deste
governo que, no início de 1995, prometeu acabar com o trabalho
escravo, assentar 50 mil famílias e, agora, admite que “não
tem paixão pelo social”, como reconheceu o ministro Clóvis
Carvalho. Mas não disfarça sua paixão pelo continuísmo.
Há 110 anos a princesa Isabel assinou a abolição
oficial da escravidão. E este regime de trabalho perdura no
Brasil, sobretudo em latifúndios da Amazônia. Quando será que o
Brasil e os brasileiros deixarão de ser reféns da pecha
policialesca de que defender direitos humanos é sinônimo de
defender bandidos?
Frei Betto, frade dominicano e escritor, é reconhecido
internacionalmente por sua luta em prol dos direitos humanos.
|