Política
e Religião
Palestra realizada
por Frei Betto no auditório da Reitoria da Universidade Federal
da Paraíba, Campus I, João Pessoa, em 03/02/99
O tema que me propuseram abordar, o
tema da Religião e Política, é um tema oportuno por duas razões:
Primeiro porque nós estamos vivendo uma nova crise política no
Brasil... Uma crise que não é de agora... Uma crise que já
apresentava seus sintomas no ano passado (98), mas graças à cumplicidade
da mídia com o governo Fernando Henrique e às artimanhas do
Poder, esta crise foi relativamente encoberta, sobretudo encoberta
diante da grande opinião pública que não tem o hábito de ler
nas entrelinhas dos jornais, de modo a assegurar a recondução do
presidente Fernando Henrique à Presidência da República... E
uma vez garantida a recondução dele então a crise estourou.
Acontece que o Governo, de uma
maneira cínica, quis imputar a responsabilidade da crise ao
Governador Itamar Franco. Primeiro se esquecendo que Fernando
Henrique é presidente do Brasil graças a Itamar Franco que o fez
ministro da Economia e que foi quem criou, de fato, junto com
outros ministros e acessores, o Plano Real. Segundo, no mesmo dia
que o Governador Itamar Franco decretou a moratória de Minas -
que é uma moratória com data marcada: até março. Ele deixa de
pagar as dívidas de Minas com os credores internacionais para
poder pagar o funcionalismo do estado -, no mesmo dia, então, em
que ele decretou uma moratória retendo no estado 80 milhões de dólares,
o Governo Federal deixou sair do Brasil Um Bilhão de dólares.
Mas como a mídia, sobretudo alguns órgãos mais importantes,
atuam pela lógica do poder, seja ele quem for, evidentemente se
procurou colocar o peso da responsabilidade sobre um governador de
estado quando o peso da responsabilidade é do Modelo Econômico
que foi adotado no Brasil, em que o país esta penhorado à
agiotagem internacional, e agora de uma maneira escancarada porque
ontem nomearam um agiota internacional de profissão, um agiota
profissional, para Presidente do Banco Central (Arminio Fraga). Ou
seja, uma pessoa que tem um currículo de especulador - e o
especulador é aquele que faz multiplicar o dinheiro ainda que
isso signifique a fome, a miséria e a morte de milhões de
pessoas. O que o patrão do atual presidente do Banco Central
(George Soros) fez na Malásia é exatamente o que Hitler fez na
Tchecoslováqui, na Polônia e em outros países durante a Guerra.
Ou seja, com uma canetada, ele jogou a moeda da Malásia no chão
e milhões de pessoas na miséria.
E isso tem acontecido em vários países,
mas essa é a "lógica" do sistema Neoliberal em que
vivemos, e portanto do Governo Federal - esse governo que foi
reeleito por uma parte considerável do eleitorado - NÃO A
MAIORIA do eleitorado, porque hoje nós somos 106 milhões de
eleitores e Fernando Henrique foi reconduzido ao poder por 36 milhões
de eleitores porque o índice de votos nulos e brancos foi
excepcionalmente alto. Portanto ele não conseguiu ter nem a
maioria do eleitorado, porém, proprocionalmente, teve
mais de 50% dos votos válidos, o que legitimou a recondução
dele à Presidência. E vamos ter de suportá-lo pelos próximos
quatro anos.
A segunda razão é que a Igreja
Católica no Brasil mantém uma agenda social bastante importante
já há trinta anos, e que se caracteriza ou se centraliza em três
grandes eventos anuais:
* A Campanha da Fraternidade, que
todo ano se inicia na Quarta-Feira de Cinzas;
* As Semanas Sociais, que são
promovidas na maioria das Dioceses brasileiras;
* E O Grito dos Excluídos que
resgatou o significado da data da "Independência" do
Brasil, o 7 de Setembro, que antes era uma data do Dia das
Lavadeiras, porque só se via Tanques e Trouxas na rua...
Na medida em que a CNBB propôs o
Grito dos Excluídos, ou seja, fazendo um paralelo com o grito de
Dom Pedro, nós temos hoje em várias cidadades brasileiras um 7
de Setembro com uma grande mobilização popular centrada nas
demandas, nas aspirações populares... nos problemas maiores do
nosso povo. Ora, o tema da Campanha da Fraternidade deste ano (Desemprego,
por quê?), que se inicia daqui a duas semanas, é
um tema incômodo ao Governo: é o desemprego. Quase sempre, o
tema da Campanha é um tema social. E a questão do desemprego é
uma questão que interessa a todas as pessoas no mundo, porque o
desemprego não é um fenômeno brasileiro, é um fenômeno
internacional. Quer dizer, um dos frutos amargos do Neoliberalismo
globalizado é mundializar o fenômeno do desemprego e torná-lo
crônico na maioria dos países industrializados. No Brasil, hoje,
a situação é bastante grave. Nós temos um desempregado em cada
cinco trabalhadores brasileiros. O índice na grande São Paulo,
segundo o DIEESE no ano passado, foi de 18% da mão-de-obra. E o
índice nacional beira aos 8% - o índice oficial, o que dá quase
10 milhões de trabalhadores brasileiros desempregados, além do
fato de que os novos trabalhadores, os jovens que devem entrar
anualmente no mercado de trabalho, são cerca de dois milhões de
jovens ao ano, Brasil não conseguia, sequer quando não havia o
problema do desemprego, criar oitocentos mil novos empregos por
ano e atualmente isso deve estar entre 400 e 500 mil novos
empregos.
A questão é que o sistema
capitalista associou três fatores que na Idade Média, no Sistema
Feudal, não estavam tão intimamente ligados, que é o Emprego, o
Trabalho e o Salário. Muitas pessoas trabalhavam sem
necessariamente terem um emprego, e viviam de seu trabalho, como
os artistas independentes, os agricultores independentes, os artesãos...
Tinham trabalho, mas não tinham
necessidade do emprego. O caso mais extremo é o caso dos
índios, que trabalham, mas jamais se empregam - os índios
tribalizados. Então, eles trabalham pra viver e se dão
ao luxo de realizar uma proposta utópica que é trabalhar o
suficiente pra viver, enquanto nós, como máquinas (analogia
cara ao capitalismo), vivemos para trabalhar. Consumimos mais da
metade da nossa existência ou dormindo ou trabalhando. Estamos
ainda muito distante do tempo em que poderemos trabalhar para
viver, e viver bem. Esse luxo só é acessível, no Brasil, a
16 milhões de pessoas. Isso constitui menos de 10% da população
brasileira que concentra em suas mãos 47% da renda nacional. Isso
significa que os ricos brasileiros são sumamente ricos
e, proporcionalmente, em termos de distribuição de renda, mais
ricos do que os ricos europeus.
Um dos problemas da política atual
é que o Brasil é um dos maiores mercados para a indústria
Norte-Americana. Mas não só para a indústria Norte-Americana.
Assim como quem tem uma sobra de dinheiro deposita na caderneta de
poupança, faz uma aplicação, o Brasil é A Caderneta de
Poupança dos capitais que sobram em outras partes do mundo, mas
principalmente do capital americano. O investidor americano - se
ele colocar o seu dinheiro na poupança nos Estados Unidos, ele
vai ter no máximo um rendiment de5% ao ano. Se ele colocar na
poupança chamada Brasil, no cassino Brasil, seguramente ele vai
ter o dobro por ano... porque um país que hoje tem juros a 39% -
e a tendência não é diminuir, a não ser nos discursos, na prática
a tendência é subir porque o governo de tal forma é dependente
do atravessador deste capital, que é o FMI, que ele não pode
lesar o aplicador estrangeiro, principalmente o aplicador
norte-americano. Ele tem de primeiro deixar sair muito dinheiro do
país, por isso que as nossas reservas, em poucos meses, baixaram
de 74 bilhões de dólares para 36 bilhões de dólares oficialmente,
porque alguns economistas já avaliam que elas são inferiores -
estariam entre 26 e 30 - mas oficialmente estão em 36. Então é
preciso que o aplicador recebe, tenha o retorno do rendimento
esperado antes que o Brasil possa corrigir a sua crise econômica.
Então nós vamos ficar a assistir esta sangria e, detalhe: a
sangria da saída de dólares do país ainda não foi estancada
mas na semana passada o Banco Central baixou uma portaria
proibindo que se divulgue o quanto de dólar sai do país
diariamente. Então é aquela situação do general que fala:
"Nós não vamos agora acabar com os comandos suicidas porém
deixaremos de comunicar à nação o número de mortos". É
isso: as pessoas continum morrendo à míngua, mas como ninguém
sabe então faz-se de conta que não há nenhum problema, tá tudo
azul, tá tudo maravilha.
Ora, o problema do desemprego é um
problema de um mundo em que os mercados se internacionalizaram e
em que nós não temos um modelo alternativo ou compensador
concreto diante do Neoliberalismo, graças à derrubada do Muro de
Berlim, e, por outro lado, temos o fracasso do sistema capitalista
nos países como a Rússia, que correram ao pote da chamadas
"liberdades democráticas" e se depararam com a
desigregação do seu tecido social, que eles não conheciam desde
a Revolução Soviética de 1971. Em outras palavras, hoje o Leste
Europeu é uma região em franco processo de Latino-Americanização...
O futuro da Bulgária, da Romênia... O futuro da Hungria, o
futuro da Polônia, o futuro da Rússia é o presente da América
Latina. O que mostra que nós vivemos num sistema neoliberal de
altíssima concentração de renda, onde o capital especulativo
tem muito mais importância que o capital produtivo e que propicia
uma evolução da tecnologia muito rápida, que substitui a mão-de-obra,
do esforço humano. Nós não podemos por a culpa do desemprego na
evolução tecnológica, não se trata de voltar ao carro de boi e
de ignorar os avanços das tecnologias. A questão é outra, a
questão é como esta tecnologia avançada deve ser condizente com
uma política de establidade e de ampliação dos postos de
trabalho. Não existe no Brasil - apesar das promessas de campanha
onde se diziam até que se iam criar 7 milhões de novos empregos
e não conseguem resolver o problema da Ford em São Bernardo do
Campo, com 2800 trabalhadores. A questão é como coadunar a evolução
tecnológica com uma política de emprego, que não existe a nível
nacional. O Brasil não tem, atualmente, nenhuma política social.
Não só não tem, como não tem as instituições que antes se
envolviam, bem ou mal, com algum tipo de política social, como a
Legião Brasileira de Assistência, a LBA, que foi extinta pelo
Governo. Então, hoje o Governo parece que tem horror ao social.
Fernando Henrique, num discurso, no primeiro mandato, chegou a
dizer que a miséria é um preço a ser pago pela modernização,
ou seja, não interessa o social, interessa sim a preservação do
capital, a estabilidade da moeda, ainda que isso signifique a instabilidade
da nação e o sofrimento de milhões de pessoas.
O problema que nós enfrentamos
hoje neste país é o de um atrelamento servil aos mandos do FMI
ao ponto de se aceitar que o FMI agora mantenha um escritório
dentro do Banco Central - e há uma missão praticamente
permanente dirigindo a nossa política econômica, mandando
buscar nos Estados Unidos um especulador para ser o novo
Presidente do Banco Central... E isso é exatamente como um náufrago
pedindo socorro ao navio que o atirou ao mar. Ou seja, o Brasil
está quebrado por culpa do FMI, mas como o atrelamento é
visceral - a elite brasileira só raciocina em termos em termos da
defesa e da multiplicação do seu capital e não em termos da Nação,
e esse Governo que ai está gerencia os interesses dessa elite,
que é uma elite de raízes escravocratas, uma elite latifundiária,
uma elite canavieira... Uma elite profundamente imersa na ilusão
primeiro-mundista, uma elite que tem horror ao Brasil brasileiro,
uma elite entorpercida por uma cultura maiamizada, a elite da
sacola eletrônica em que todos os filhos na primeira idade já
tem de passear pela Disneylândia mas que tem horror às terras
indígenas, aos povos indígenas do Brasil, chegando até a por
fogo em índios que dormem inocentemente pelas ruas; que querem
conhecer os museus de dinossauros nos Estados Unidos mas não
querem conhecer o Pantanal Matogrossense que é um dos maiores e
mais ricos ecossistemas do planeta... Enfim, esta elite que tem
horror ao Brasil, esta elite manda neste país, mantém este país
com tacão de ferro sem criar nenhuma alternativa para a questão
social.
Ora, eu falo de tudo isso porque é
o tema da Campanha da Fraternidade e porque fica uma pergunta no
ar: E o que é que tem a Igreja a ver com isso? E é ai que eu
quero entrar no conteúdo mais profundo do tema que me foi pedido.
Tem haver o seguinte: todos nós
cristãos, querendo ou não, somos discípulos de um
prisioneiro político. Jesus não morreu nem de hepatite, na cama,
nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém. Começa já
por ai. Então, se nós somos discípulos de alguém que foi
assassinado por razões políticas sob dois processos políticos,
um movido pelos romanos e outro pela elite sacerdotal judáica, não
há simplismo, ingenuidade ou má fé maior do que dizer que
religião não tem nada haver com política.
Quando eu era criança em Minas,
havia lá o Padre Pedro, na minha cidade, que era considerado um
santo homem porque ia benzer as capelas das fazendas dos latifundiários
da região... Capelas com imagens barrocas, possivelmente roubadas
de Outro Preto e Mariana. Então todos diziam que o Pe. Pedro era
um santo porque era muito bom, atendia e havia então nesse dia um
churrasco para a piãozada, pros vaqueiros...Ia benzer as agências
bacárias inauguradas na cidade... No 7 de Setembro estava lá o
Pe. Pedro encima do palanque ao lado do prefeito, do coronel, do
delegado... Um santo homem... Até que um dia o Bispo mudou o Pe.
Pedro porque ele ficou idoso, e pos o Pe. José.
Até então muitos diziam que o
Padre Pedro era santo porque não se metia em política... E o Pe.
José foi convidado para fazer uma benção numa capela de uma
fazenda... E ele disse: "Não vou",
disse pro fazendeiro, "porque o senhor dá mais
assistência médica, com um veterinário contratado, ao seu gado
do que aos seus empregados. No dia que o senhor inverter a
prioridade eu irei". - "Ah, esse Padre é
maluco", dirão alguns. "Esse padre tem umas idéias
complicadas", começaram a dizer na cidade... O chamaram pra
benzer a agência do banco. "Não vou porque o
sindicato dos bancários dá a informação e eu estou sabendo
qual é a situação dos bancários aqui da cidade, e enquanto
certos direitos deles não estiverem assegurados, eu não irei
benzer nenhuma agência. Eu vor é dar a benção ao sindicato e
à na luta deles". - "Ah, esse padre é de
esquerda... Esse padre é perigoso"... Ele foi chamado pro
Sete de Setembro e falou: "Também não. Eu não vou
ver desfile militar. Sete de Setembro é feriado e eu tenho um
trabalho com as favelinhas que estão começando a aparecer ai na
beira da cidade e eu vou lá ficar com o povo." -
"Ah, esse padre é comunista!"
Então, como bem diz Dom Hélder -
que esta semana estará completando 90 anos, ele que é uma das
figuras mais importantes da História do Brasil e seguramente a
mais importante da História da Igreja Católica no Brasil no século
XX... Dom Hélder é para nós o que Luther King foi para os
americanos e Gandhi foi para os indianos, e talvez a gente ainda não
tenha bem a dimensão da grandeza desse homem, até por sermos
seus contemporâneos dele - "Quando eu falo da
pobreza todos me chamam de cristão, mas quando eu falo da causas
da pobreza, me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos
devem ajudar os pobres, me chamam de santo. Mas quando eu falo que
os pobres têm que lutar pelos seus
direitos, me chamam de subversivo."
E é isso. Eu pergunto: o padre Pedro não fazia política e o
padre José era o político? Não, os dois são políticos porque
não há ninguém que não faça política. Há muita gente que pensa
que não faz, isso é outra questão. A minha avó, aos 95 anos,
podia achar que não fazia política. Fazia, porque política ou
se faz pela participação ou se faz pela omissão, mas não há
ser humano que não faça política. O problema é que o padre
Pedro fazia a política dos "grandes", e quando alguém
faz a política dos grandes é alvo de todas as homenagens, de
todos os privilégios e de toda a boa fama...E o padre Pedro fazia
a política dos "pequenos" e isso
incomoda a quem tem o poder de manipular a opinião pública,
como Jesus incomodou.
Eu vou ler pra vocês umas três ou
quatro frases que mostra bem qual é a causa desta crise do
Brasil, qual é a causa deste desemprego crônico, qual é a causa
desta brutal desigualdade que nós vivemos neste país. O Brasil não
é campeão mundial de futebol mas é o campeão mundial em
desigualdade social. Agora tá desputando o primeiro lugar com
Serra Leoa, que é um pequeno país da África... Antes disputava
o primeiro lugar com um outro país da África, que agora me fugiu
o nome, mas que este já conseguiu melhorar as suas condições de
distribuição de renda, que não é o caso do Brasil.
Primeira afirmação deste senhor: "O
Neoliberalismo é um pecado social porque rompe a harmonia entre
as comunidades de uma nação e de um continente inteiro".
Segundo: "O
Neoliberalismo baseia-se numa concepção economicista do homem,
valorizando o lucro e as leis do mercado em detrimento da
dignidade e do respeito à pessoa e ao povo".
Terceiro: "A
Globalização é dirigida apenas por leis do mercado aplicada
segundo as conveniências dos mais poderosos..."
São palavras de João Paulo II em
sua recente viagem ao México, na última semana de janeiro. Ou
seja, está muito claro, até para o Papa - e às vezes falam: A
Teologia da Libertação acabou? e eu respondo: Com um Papa
dizendo isso não há a menor necessidade mais de se lutar para se
divulgar a Teologia da Libertação. Teologia da Libertação é
necessária enquanto o poder da Igreja não tinha sensibilidade
para as questões sociais. Então era preciso um movimento que
vinha de baixo pra cima para ver se conseguia mudar aquela Igreja
elitista, eurocentrada, branca e machista. Mas quando o Papa, também
ele, começa a fazer eco às teses da Teologia da Libertação
vemos que ela já cumpriu a sua tarefa, a sua missão... Porque
hoje o Papa expressa em nome da fé, porque a fé tem seríssimas
implicações éticas, ela diz respeito à vida humana, o Primeiro
Capítulo da Bíblia nos diz que nós fomos criados para viver num
Paraíso e se não vivemos a culpa não é de Deus a culpa é
nosso, porque nós abusamos da nossa liberdade e instauramos uma
relação desigual entre os seres humanos através da opressão,
através da exploração, através do sofrimento por causa da
briga pelo poder... e nós vamos ter de resgatar
esse Paraíso. Portanto é muito importante que, à luz da palavra
de Deus, a Igreja denuncie esses pecados sociais e aponte esse
sistema que está ai, que não é eterno e nem será,
como nenhum deles foi no passado, embora tivessem a pretensão de
o ser, deverá ser mudado, mas deverá ser mudado pela nossa
esperança, pela nossa militância, pela nossa luta e pela nossa
capacidade de sair do comodismo, do pessimismo, do derrotismo, da
cabeça baixa achando que as coisas não têm solução. Tem sim,
sempre tiveram e terão.
Eu acabo de voltar de Cuba, que é
um país do tamaho de Pernambuco, tem 11 milhões de habitantes e
que fez uma Revolução ao ponto de se dar ao luxo - com todos os
erros que tem a revolução cubana, e os tem, não sou ingênuo de
pensar que não tem. Mas a gente tem de reconhecer: não há páis
em todo o terceiro mundo, Ásia, África e América Latina que dê
a todo o seu povo melhores condições básicas de vida, vida
digna, como Cuba. Quando o Papa chegou em Cuba em janeiro de 98
havia um enorme cartaz no aeroporto de Havana. Crianças cubanas
de uniforme escolar, sorrindo, e os seguintes dizeres: "Esta
noite milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma
delas é cubana".
Qual país pode estender um cartaz
como esse na sua porta de entrada ao receber três mil jornalistas
internacionais que tiveram a mais absoluta liberdade de fazer o
que quisessem dentro de Cuba durante a visita do Papa, porque
qualquer um deles podia fotografar crinça de rua e dizer que isso
é uma mentira. Ou seja, Cuba é um país pobre, mas não é um país
de miseráveis. É um país que tem e sobrevive com uma extrema
dificuldade por força do criminoso
bloqueio imposto pelos EUA. Vocês ja imaginaram Cuba bloqueando o
porto de Nova York? Pois os Estados Unidos bloqueiam o país
inteiro! Vocês já imaginaram Cuba tendo uma base naval militar
na Califórnia? Pois os Estados Unidos têm uma base em Guantânamo,
dentro de Cuba, naquela região de onde vem aquela música que de
fato é o grande hino de Cuba, Guantanamera... E ninguém diz
nada! O Presidente do Brasil acha isso normal! Né? O absurdo é o
Iraque que foi armado até os dentes pelo Reagan resolver ser
independente da hegemonia das ordens americanas. Esse é o
absurdo. Ninguém xia porque há cem anos os EUA ocuparam e
dominam, sob o tacão de ferro, um país que anteriormente era
livre e soberano, chamado Porto Rico. Ninguém xia... E se nós não
agirmos e reagirmos, o Brasil vai caminhando pra isso... Porque
hoje vem a missão do FMI, amanhã vem o FBI dizer que tem de se
combater as drogas aqui, depois vem as tropas americanas dizendo
que têm de ajudar o FBI e daqui a pouco nós estamos como colônia
do império mundial sediado na Casa Branca.
E, levando-se adiante o ideal
materialista, descartável e consumista do capitalismo atual, isso
irá nos levar à miséria pois já está matematicamente
comprovado: se toda a humanidade hoje, e são 5 bilhões e 600
milhões de pessoas, tivesse o padrão de vida do americano médio
a primeira condição para se chegar a isso seria a de que o
plante Terra se clonasse, se auto-clonasse, se duplicasse com as
mesmas riquezas de minerais, de fontes de água, de vegetais que
ele possui hoje. Quer dizer, precisaríamos de dois planetas Terra
para assegurar ao conjunto dessa população atual o padrão de
vida médio americano. E que padrão é esse? É o padrão do
consumismo, e um dos maiores crimes pedagógicos que se comete
hoje no mundo, especialmente no Brasil, primeiro através da mída
e segundo através de certas famílias fascinadas pela miragem do
consumo desenfreado, é incutir nas crianças e no jovens que o
consumismo é um ideal de vida. Ora, como é impossível a realização
desse ideal, qual é o resultado disso? É a frustração, e a
frustração leva a um trauma da subjetividade que tem que ter
escapatória por algum lugar, que é geralmente pela bebida e pela
droga... O empresário americano sabe que o mercado infantil é o
filé mignon do consumismo, porque criança tem duas vantgens: não
tem critérios e tem o poder de seduzir os pais. O pai acaba
comprando pra se ver livre da chateação do filho que quer algo
porque a televisão associou o objeto a alguma outra coisa que a
criança toma como prazerosa. O problema é como fazer da criança
uma consumidora, porque a criança possui um artifício natural
que é um perfeito mecanismo anti-consumo: a fantasia. Eu, por
exemplo, fui criança sem consumismo, como o pessoal da minha geração
também foi aqui. Ou seja, o máximo de consumismo que eu recordo
foi ter pedido ao meu pai que ao retornar do trabalho trouxesse
uma caixa de pregos, porque nós fazíamos os nossos brinquedos. Tínhamos
as brincadeiras de rua, em contato com outras crianças, que
dependiam de criatividade e imaginação... Não precisava comprar
nada! Dinheiro entrou no meu universo pessoal quando eu tinha de
12 para 13 anos. Eu não tinha a menor idéia do diabo do quepe ou
do tênis que eu usava, qual era a marca daquilo, e não tinha a
menor importância essa questão de marca, ou seja não havia
consumismo. Eu consegui viver, vivenciar mesmo, uma infância sem
nunca lidar com dinheiro. Então, é muito complicado transformar
uma criança em consumidora, mas o sistema capitalista descobriu a
fórmula: se você consegue erotizar precocemente esta
criança... Se você consegue que ela aos quatro ou cinco anos
comece a prestar demasiada atenção ao próprio corpo, ela vira
uma consumidora precoce. Basta ver os modelos que nos são dados
pela mídia. Ela entra ai de cabeça para se identificar com os
modelos fabricados. Só que tem um problema: cria-se nela uma
defasagem entre a idade biológica e a idade Psicológica. Ela é
uma criança, mas pensa que é um adulto homem ou que é uma
adulta mulher.
Isso é mais ou menos administrado
até a puberdade. A puberdade é a idade com o encontro com a
realidade. Então começa a reduzir esta distância. Para manter o
controle, o sistema passa a, meio que disfarçadamente, a
propiciar o sonho químico. E como não há mais utopias, como a ditadura
militar ainda nos deixou até hoje a herança de castrar
das novas gerações o poder de mobilização, de ter bandeiras de
luta, de viver em função de utopias, de ir pra bazinhos tomar
chopp discutindo as questões nacionais, internacionais... de
discutir quais são as novas linguagens no cinema e no teatro,
tudo isso que a gente viveu nos anos 60, porque nós somos seres
humanso com portas e janelas. Somos os únicos animais que não
nos suportamos. Uma vaca, por exemplo... Eu na outra encarnação
vou querer ser vaca, porque a vaca está na sua plenitude "vacal"...
Você passa ai no interior e ela tá la no seu pasto, na sua
sombrinha, pacífica, vegetariana tranquila... Aqui tem a seca e
ai ela não pode tá muito gorda, mas lá em São Paulo a gente vê
aquelas vacas gordas, mansas, não faz mal a ninguém, tranquilas,
que dão o leitinho delas, criam os bezerros... Enfim, porque a
vaca não tem sede de sonho, a vaca não tem vocação para a
transcendência como cada um de nós tem. Nós fomos criados para
a comunhão com o absoluto. Nós temos a profunda nostalgia de
Deus. Então não há como viver sem sonhos. Mas o sonho ou vai na
direação da Utopia e da Mística, ou vai na direção da química...
Não tem saída... Por algum lugar a gente precisa sonhar. E
quando a gente sonha pela direção errada, a gente se frustra, e
ai vem a depressão, a tristeza, a insatisfação de vida, a
irritação e a amargura, e você fica infeliz e fazas outras
pessoas à sua volta infelizes.
O que Jesus veio trazer pra nós na
sua missão num tempo em que não havia divisão entre religião e
política. Em que todo o ser religioso fazia política e que todo
o ser político fazia religião - porque essa é uma conquista
da modernidade, a separação entre as instituições políticas
e religiosas. Não se pode dizer que Jesus não fez política. Mas
ele não fez a política e nem devemos todos nós fazer a política
profissional político que exerce um mandato ou que pertence a
alguma estrutura de partido. Há diferentes maneiras
de interferir na pólis, no Estado, na busca do bem
comum, na busca de uma sociedade justa... E é justamente esta a
proposta mais ampla que Jesus veio trazer : Fazer uma política
que seja RADICALMENTE CONTRA todo o tipo de injustiça e a favor
de uma sociedade solidária, de uma sociadedade que seja símbolo
vivo do que ocorre na mesa eucarística. A Eucaristia simboliza a
repartição para todos, sem discriminação, do mesmo pão e do
mesmo vinho. Assim deveria ser a vida social. Que todos tivessem o
mesmo acesso à comida e à bebida, sem discriminação. Por isso
quando eu vou à Europa e me perguntam: como é no Brasil a luta
de vocês por Direitos Humanos? Eu respondo: Direitos Humanos? No
Brasil não tem isso. Isso é luxo no Brasil! No Brasil nós ainda
estamos lutando pela conquista de Direitos Animais! Porque comer,
abrigar-se do frio e do calor, educar a cria é coisa de bicho e
que infelizmente a maioria da população do meu país não tem
ainda assegurada. Não será o caso de que o estatuto das
sociedades de proteção aos animais não seria mais interessante
do que a Constituição Brasileira aplicada aos seres humanos
desse país? Talvez tivesse mais resultado...
Eu queria ler dois textos aqui
sobre a prática de Jesus, como, em Jesus, essa síntese entre a fé,
a fidelidade ao projeto de Deus, o Amor aos seres humanos,
principalmente aos injustiçados... como se realizava esta síntese.
O primeiro texto está no Capítulo
X de Marcos:
"Quando Jesus saiu de
novo a caminhar, um homem veio correndo, ajoelhou-se diante Dele e
perguntou: - Bom Mestre, que devo fazer para herdar a vida
eterna?"
Vê que o sujeito já chega com uma
atitude de puxa-saquismo: "Bom Mestre" e tal...
"Jesus respondeu: -
Por que você me chama de bom? Só Deus é bom, e ninguém
mais"
ou seja, Cristo não gostou da atitude
do camarada... Interessante que nos quatro Evangelhos, essa
pergunta: "O que devo fazer para ganhar a vida eterna"
nunca sai da boca de um pobre. Você pode analisar os Quatro
Evangelhos. Sempre sai de alguém que já tem assegurada a vida
terrena e agora quer saber como investir na poupança celestial.
É esta a pergunta do Doutor da Lei na parábola do Bom
Samaritano, é a pergunta do Nicodemos, é a pergunta de Zaqueu...
E o que os pobres pedem a Jesus? Mestre, o que devo fazer para ter
vida nesta vida: Minha filha está doente, eu quero vê-la sã; eu
não tenho um olho, preciso enxergar; minha mão tá seca, preciso
trabalhar; o meu irmão morreu, quero vê-lo ressuscitado... Os
pobres pedem "vida" nesta vida, e a estes Jesus atende
com misericórdia e com seriedade, aos outro não, Jesus
ironiza...
Vamos ver o diálogo, então:
"Jesus disse para o
homem:
- Você
conhece os Mandamentos: Não mates..." vocês que
fizeram o catecismo contem ai nos dedos a lista de mandamentos de
Jesus... "...Não cometas adultério, não roubes, não
levantes falso-testemunho, não enganes, honra a teu pai e tua mãe..."
Quantos Mandamentos? Seis...
Ora, na verdade Jesus só cita seis
porque ele omite os outros quatro que dizem respeito a Deus... Ele
só cita os mandamentos que dizem respeito ao próximo porque a
proposta cristã é uma proposta onde quem se coloca diante de
Deus e de costas para o próximo não entendeu nada. Mas quem
se coloca diante do próximo automaticamente já serve a Deus,
porque o próximo é a Imagem e Semelhança de Deus, é o
sacramento de Deus. Não há como servir a Deus, no cristianismo
evangélico, se não através do serviço do próximo. Não há
meio termo. Se eu não sou capaz de ir em direção ao meu próximo,
toda a concepção de Deus é equivocada. É a concepção de um
Deus à minha imagem, semelhança e
conviniência e não àquilo que o Evangelho me pede, que é ser
capaz de amar ao próximo. E nisso o Evangelho é tão radical que
no Capítulo XXV de Mateus Ele diz: "Eu tive fome e me deste
de comer, tive sede e me deste de beber", veja, Jesus se
coloca no lugar do oprimido, e fala: "Muitos dirão: Senhor,
quando foi que te vimos com fome e com sede? A toda vez que a cada
um destes pequeninos fizeste a Mim o fizeste". (Continua)
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