INDETERMINAÇÃO E
COMPLEMENTARIDADE
Com as utopias em crise, a física quântica
contribui para a formulação de novos paradigmas
Frei Betto
Os paradigmas da
modernidade sustentam-se na filosofia de Descartes e na física de
Newton.
Racionalismo e determinismo seriam as chaves para se chegar
ao conhecimento científico, livre de
interferências subjetivas, preconceitos e superstições.
Levada ao paroxismo, a mecânica clássica -
que descreve as leis determinísticas que regem o
macrocosmo - sugeriu ao pensamento marxista a
idéia, tida como inelutável e científica, de que o
determinismo histórico regeria as sociedades para
formas mais perfeitas de convivência humana. Assim, o
materialismo histórico explicaria o avanço
do feudalismo ao capitalismo e, deste, ao socialismo, sem
indícios de retrocessos substanciais.
Ora, o Muro de Berlim caiu também sobre essa
transposição da mecânica clássica às ciências
sociais, soterrando o determinismo histórico e, com ele,
os paradigmas que davam uma aparente
consistência à modernidade. Para salvar-nos das hipotéticas
teorias do caos e do acaso, a
formulação de novos paradigmas deve levar em conta dois
parâmetros fundamentais, derivados da
física quântica (que trata do microcosmo ou das partículas
- quanta - existentes no interior do
átomo): o princípio da indeterminação ou da incerteza,
de Werner Heisenberg, e o princípio da
complementaridade, de Niels Bohr.
Um salto quântico e
epistemológico
A carteira de
identidade química do átomo encontra-se no número de prótons
contidos em seu
núcleo. São eles que determinam a carga elétrica do núcleo
que, por sua vez, fornece o número de
elétrons em órbita em torno do núcleo. Um átomo simples
de hidrogênio possui um único próton -
que é também o seu núcleo - cercado por um elétron. Os
átomos mais pesados possuem mais
prótons e nêutrons, e também mais elétrons que coroam o
núcleo.
Medir a localização e a trajetória de bilhões de
partículas e, com os resultados, prever o
movimento dos prótons, é física clássica. Heisenberg
pretendeu demonstrar que jamais poderemos
conhecer tudo sobre os movimentos de uma partícula. Mesmo
conscientes de que em ciência todo
resultado é provisório, não se pode deixar de admitir
que o princípio da indeterminação
revolucionou a visão que a física newtoniana tinha do
mundo. Agora, a física quântica desafia a
nossa lógica. Quando um fóton - que é um quantum -
atinge um átomo e obriga o elétron a passar
instantaneamente da órbita inferior para a superior, o elétron,
como um acrobata, o faz sem
atravessar o espaço intermediário. É o que se chama
salto quântico que, além de desafio científico,
é também um problema filosófico. É essa mesma incerteza
quântica que explica a colisão de próton
com próton no seio das estrelas - o que, à luz da física
clássica, parece tão impossível quanto um
boi voar.
É mais fácil acreditar no boi voador que acolher
sem interrogações a teoria quântica. O próprio
Einstein, um dos pioneiros desta teoria e que formulou a
hipótese do fóton como quantum de luz,
chegou a afirmar que estava intimamente persuadido de que
os físicos não poderiam se contentar
por muito tempo com essa "descrição insuficiente da
realidade". Discordou da interpretação
probabilística da mecânica quântica. Só que, em geral,
a insuficiência não está na natureza e sim em
nossas cabeças, o que não significa que possamos
alimentar a pretensão de penetrar todos os
segredos da natureza. Moça pudica, ela preservará para
sempre certos mistérios, como argumenta
a Escola de Copenhague ao demonstrar que certos acessos não
estão permitidos pela própria
natureza. Entretanto, quando Aristarco afirmou, quinze séculos
antes de Copérnico, que a Terra gira
em torno do Sol, os gregos apelaram para o bom senso e
convocaram os nossos sentidos como
testemunhas fidedignas de que a Terra não se move, mesmo
porque, se tal ocorresse, os habitantes
de Atenas seriam atirados pela ventania em direção ao
Leste, e os atletas de Olímpia dariam um
salto maior que as pernas. Séculos depois, a mesma lógica
foi aplicada, em vão, para tentar
descartar as teorias de Copérnico e de Galileu.
Realidades excludentes e, no
entanto, complementares
A ruptura
decisiva da física quântica com a física clássica ocorreu em
1927, quando o alemão
Werner Heisenberg estabeleceu o princípio da indeterminação
- pode-se conhecer a posição
exata de uma partícula - um elétron, por exemplo - ou a
sua velocidade, mas não as duas coisas ao
mesmo tempo. Impossível saber, simultaneamente, onde um elétron
se encontra e para onde ele se
dirige. Pode-se saber onde ele se encontra, mas jamais
captar, ao mesmo tempo, a sua velocidade.
Pode-se medir sua trajetória, nunca sua localização
exata. Numa câmara úmida podemos observar
a direção na qual um próton se move, até que ele passe
pelo vapor d'água, quando sua
desaceleração impedirá que saibamos onde se encontra. A
outra alternativa é irradiar o próton,
tomando uma foto dele, mas a luz ou qualquer outra radiação
usada em fotografia o desviará de sua
trajetória, de modo que jamais saberemos qual seria seu
percurso se não tivesse sido incomodado
pelo cientista-paparazzo.
Ao contrário do que supunha Einstein, Deus parece
jogar dados com o Universo. As imutáveis e
previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica
não se aplicam à dimensão microscópica
- eis a descoberta fundamental da física quântica. Na
esfera do infinitamente pequeno, segundo o
princípio quântico da indeterminação, o valor de todas
as quantidades mensuráveis - velocidade e
posição, momento e energia, por exemplo - está sujeito a
resultados que permanecem no limite da
incerteza. Isso significa que jamais teremos pleno
conhecimento do mundo subatômico, onde os
eventos não são, como pensava Newton, determinados
necessariamente pelas causas que os
precedem. Todas as respostas que, naquela dimensão, a
natureza nos fornece, estarão
inelutavelmente comprometidas por nossas perguntas.
Essa limitação do conhecimento não estaria
atualmente condicionada pelos recursos tecnológicos
de que dispomos? Não se poderia criar, no futuro, um
aparelho capaz de acompanhar o movimento
do próton sem interferir na sua trajetória? A incerteza
quântica não depende da qualidade técnica
dos equipamentos utilizados na observação do mundo subatômico.
Esta é uma limitação absoluta.
No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e
dialógica. Dual, e não dualista, no sentido
platônico, mas sim, como ressaltava Niels Bohr, numa
interação de complementaridade. Foi
também em 1927 que o físico dinamarquês Niels Bohr
formulou o princípio da complementaridade.
No interior do átomo, a matéria apresenta-se com aparente
dualidade, ora comportando-se como
partículas, que possuem trajetórias bem definidas, ora
comportando-se como onda, interagindo
sobre si mesma.
De fato, no mundo quântico onda e partícula não são
excludentes, embora o sejam à luz de nossa
linguagem que ainda não consegue se desprender dos parâmetros
da física clássica. Ao estabelecer
o princípio da complementaridade, Bohr articulou duas
concepções que, à luz da física clássica, são
contraditórias.
Bohr demonstrou que a noção de complementaridade
pode ser aplicada a outras áreas do
conhecimento, como a psicologia, que revela a
complementaridade entre razão e emoção; a
linguagem (complementaridade entre o uso prático de uma
palavra e sua definição etimológica);
ética (complementaridade entre justiça e compaixão) etc.
Em suma, há mais conexões do que
exclusões entre fenômenos que o racionalismo cartesiano
pretende distintos e contraditórios.
Se um elétron se apresenta ora como onda, ora como
partícula, energia e matéria, Yin e Yang, isso
significa que cessa o reino da objetividade: há uma
interrelação entre observador e observado.
Desmorona-se, assim, o dogma da imaculada neutralidade
científica. A natureza responde às
questões que levantamos. A consciência do observador
influi na definição e, até mesmo, na
existência do objeto observado. Entre os dois reina um único
e mesmo sistema. Olho o olho que me
olha.
Em 1926, numa conversa com Heisenberg, Einstein
dizia-lhe: "Observar significa que construímos
alguma conexão entre um fenômeno e a nossa concepção do
fenômeno". Assim, a física quântica
afirma que não é possível separar cartesianamente, de um
lado, a natureza e, de outro, a informação
que se tem sobre ela. Em última instância, predomina a
interação entre o observado e o observador.
É dessa interação sujeito-objeto que trata o princípio
da indeterminação. E, sobre ele, ergue-se a
visão holística do Universo: há uma íntima e indestrutível
conexão entre tudo o que existe - das
estrelas ao sorvete saboreado por uma criança, dos neurônios
de nosso cérebro aos neutrinos no
interior do Sol.
Uma visão holística do
real, onde diferença não coincide com divergência
Para o princípio
da indeterminação - que supõe o da complementaridade - há uma
intrínseca
conexão entre consciência e realidade. Assim como se
chega à plenitude espiritual também pela
abstinência, renunciando ao império dos sentidos, não é
possível entender a teoria quântica sem
abdicar do conceito tradicional de matéria como algo sólido
e palpável. Nos umbrais desse novo
paradigma - que um dia também será velho - devemos deixar
para trás idéias que, no decorrer de
gerações, foram tidas como universais e imutáveis.
Segundo os pais da teoria quântica, Heisenberg
e Bohr, na esfera subatômica, conceitos sensatos como distância
e tempo, e a divisão entre
consciência e realidade, deixam de existir. De modo que os
cientistas são obrigados a abrir mão da
simetria que tanto os seduz para se dobrarem à imposição
da natureza, pois quem governa o átomo
não é a mecânica newtoniana, mas a mecânica quântica.
Um dos grandes problemas em qualquer esquema de
pensamento é a migração de sentido. Assim
como achamos que, na esfera microscópica, a natureza deve
refletir o que estamos acostumados a
ver na esfera macroscópica, do mesmo modo achamos que os
outros deveriam pensar
politicamente como pensamos, ou que a nossa língua
expressa a realidade melhor que as outras, ou
que a nossa religião é mais autêntica que as demais, ou
que o nosso estilo individual de vida é bem
melhor que o do vizinho. Ao longo dos séculos, a migração
de sentido provocou muitas confusões.
Colonizados insistiam em imitar os colonizadores, como hoje
o estilo de vida dos ricos da
metrópole exerce fascínio em muitos pobres da periferia.
Teólogos, montados na carruagem bíblica,
teimavam em conduzir os cavalos empíricos na direção dos
pressupostos da fé. Psicólogos
reduziam a política a uma questão de sanidade mental.
Ora, a ciência é filha da dúvida. Quando era
considerado senso comum que o éter perpassa o Universo
como uma malha invisível, Einstein
ousou discordar, tirando a pesquisa científica de um beco
sem saída.
Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é
obrigada a ingressar no imprevisível e obscuro
reino das probabilidades. O princípio da indeterminação
revoluciona nossa percepção da natureza
e da história. E nos faz tomar consciência de que, na
natureza, a incerteza quântica não se faz
presente apenas nas partículas subatômicas. Bilhões de
anos após a predominância quântica no
alvorecer do Universo, um estranho e inteligente fenômeno
despontaria dotado de imprevisibilidade
inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos.
Resgate quântico do sujeito
histórico
O princípio da
indeterminação aplica-se também à história. A liberdade
humana é um reduto
quântico. Muitas vezes observamos pessoas que poderíamos
qualificar de "partículas", como os
políticos, e outras que mais parecem "ondas",
como os artistas. Em cada um de nós essa dimensão
dual também se manifesta, sobrepondo-se, como análise e
intuição, razão e coração, inteligência e
fé. Uma expressão humana tipicamente quântica é o jazz,
onde cada músico improvisa dentro das
leis da harmonia, interpretando com o seu instrumento a sua
própria melodia. Não se pode prever
exatamente a intensidade e o ritmo de cada improviso e, no
entanto, o resultado é sempre
harmônico.
Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará
um ser humano, ainda que seja um escravo. Lá no
núcleo central de nossa liberdade - a consciência - ninguém
pode penetrar. Nem mesmo à
aceitação da verdade o ser humano pode ser obrigado. São
Tomás de Aquino, que nada entendia
de física quântica mas muito sabia da condição humana,
chega a afirmar que é "ilícito até mesmo o
ato de fé em Cristo feito por quem, por absurdo, estivesse
convencido de agir mal ao fazê-lo".
O resgate da liberdade humana pela ótica quântica
e, por conseguinte, o abandono dos velhos
esquemas deterministas, reinstaura o ser humano como
sujeito histórico, superando toda tentativa
de atomização e realçando a sua inter-relação com a
natureza e com os seus semelhantes. Essa
visão holística descarta também as tentativas de
encarcerar o indivíduo num mundo sem história,
sem ideais e sem utopias, restrito aos meios de sobrevivência
e submisso às implacáveis leis do
mercado.
Toda síntese incomoda a quem se situa num dos
extremos. A reintrodução da subjetividade na
esfera da ciência mexe com bloqueios emocionais arvorados
em profundas raízes históricas. Em
nome da fé - uma experiência subjetiva - inúmeros
cientistas, taxados de hereges ou bruxos, foram
condenados à fogueira da Inquisição. Em pleno
Renascimento, Giordano Bruno morreu queimado e
Galileu viu-se obrigado a retratar-se. Com o Iluminismo, no
século XVIII, os cientistas assumiram a
hegemonia do saber e o controle das universidades,
identificando criatividade e liberdade com
objetividade, e relegando à subjetividade tudo que
parecesse irracionalidade e intolerância.
Na prática, ainda estamos longe do resgate da
unidade. No Ocidente, as universidades continuam
fechadas a métodos de conhecimento e vivência simbólica
como a intuição, a premonição, a
astrologia, o tarô, o I Ching e, no caso da América
Latina, às religiões e aos ritos e mitos de origem
indígena e africana. Tais "superstições" são
ignoradas pelos currículos acadêmicos, embora haja
professores e alunos que freqüentam terreiros e mães-de-santo,
e consultam as cartas do Zodíaco e
os búzios. Por sua vez, nas escolas de formação
religiosa ou teológica ainda não há espaço para a
atualização científica, nem se olha o céu pelas lentes
de astronomia ou a intimidade da matéria pelas
equações quânticas. A pluridisciplinariedade, rumo à
epistemologia holística, permanece como
desafio e meta. Porém, há razões para otimismo
quando se constata a abertura cada vez maior da
cartesiana medicina ocidental à acupuntura e o interesse
de renomados cientistas pela sabedoria
contida nas culturas da India e da China. Na política
fala-se cada vez mais em ética e, nas religiões,
recupera-se a dimensão mística. A ecologia re-humaniza a
relação entre os seres humanos e a
natureza e as comunicações reduzem o mundo a uma aldeia
global. Resta enfrentar o grande desafio
de fazer com que o capital - na forma de dinheiro, de
tecnologia e de saber - esteja a serviço da
felicidade humana, rompendo as barreiras das discriminações
raciais, sociais, étnicas e religiosas.
Então, reencontraremos as veredas que conduzem ao jardim
do Éden.
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* Frei Betto é escritor, autor de A Obra do Artista -
uma visão holística do Universo (Atica),
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