FREI
BETTO
O FREI CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, FREI BETTO, É FRADE
DOMINICANO, ESTUDOU JORNALISMO, ANTROPOLOGIA, FILOSOFIA E
TEOLOGIA. É ESCRITOR E CONSULTOR DO MST E DO PT,
ARTICULISTA DO BOLETIM REDE DE CRISTÃOS. EM 1983, GANHOU O
PRÊMIOS"JABUTI", O PRINCIPAL PRÊMIO LITERÁRIO
DO BRASIL, CONCEDIDO PELA CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, POR SEU
LIVRO "BATISMO DE SANGUE" EM 1986, FOI ELEITO
"INTELECTUAL DO ANO", PELOS ESCRITORES FILIADOS À UNIÃO
BRASILEIRA DE ESCRITORES, QUE LE DERAM O PRÊMIO "JUCA PATP".EM
1987 "DIREITOS HUMANOS" DA FUNDAÇÃO BRUNO
KREISKY, EM VIENA. NA ITÁLIA, FOI A PRIMEIRA PERSONALIDADE
BRASILEIRA A RECEBER O PRÊMIO "PAOLO E. BORSELINO", POR
SEU TRABALHO EM PROL DOS DIREITOS HUMANOS, CONCEDIDO EM MAIO DE
1998. EM DEZEMBRO DE 1998, RECEBEU O PRÊMIO CONCEDIDO
PELA ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CRÍTICOS DE ARTE, DE MELHOR OBRA
INFANTO-JUVENIL, COM O LIVRO "A NOITE EM QUE JESUS
NASCEU".
FOI, DURANTE CINCO ANOS, MEMBRO DA FUNDAÇÃO SUECA DE DIREITOS
HUMANOS .É MEMBRO DO INSTITUTE FOR CRITICAL RESEARCH,
AMSTERDÃ E DIRETOR DA REVISTA "AMÉRICA LIBRE". É
ARTICULISTA DE VÁRIOS JORNAIS E REVISTAS DO BRASIL E DO EXTERIOR.
COM OBRAS EDITADAS EM VÁRIOS PAÍSES,
TEM 38 LIVROS PUBLICADOS, EM DIVERSOS IDIOMAS .
ENTRE SUAS OBRAS, DESTACAM-SE NA ÁREA
DA FICÇÃO: "A MENINA E O ELEFANTE" E "UALA , O
AMOR", INFANTO-JUVENIS E "O VENCEDOR" E
"ENTRE TODOS OS HOMENS".
NA ÁREA DO ENSAIO: FIDEL E A
RELIGIÃO, BATISMO DE SANGUE, CARTAS DA PRISÃO, ESSA ESCOLA
CHAMADA VIDA ( CO-AUTORIA COM PAULO FREIRE), MÍSTICA E
ESPIRITUALIDADE ( CO-AUTORIA COM LEONARDO BOFF). O
PARAÍSO PERDIDO - NOS BASTIDORES DO SOCIALISMO, ALUCINADO SOM DE
TUBA, SINFONIA UNIVERSAL - A COSMOVISÃO DE TEILHARD DE CHARDIM E
A OBRA DO ARTISTA - UMA VISÃO HOLÍSTICA DO UNIVERSO.
NESTE ESPAÇO, PODERÃO SER
ENCONTRADOS, UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA, CONCEDIDA AO
JORNAL IGREJA NOVA, EM SETEMBRO DE 1997 E OS ARTIGOS PUBLICADOS
NO JORNAL .
ENTREVISTA
EXCLUSIVA
ABRIL/MAIO/JUNHO
- 1997
IGREJA NOVA: Frei Betto, se
o senhor tivesse plenos poderes aqui no Brasil, quais as três
medidas que tomaria urgentemente para mudar o curso deste país ?
FREI BETTO
: Bem, primeiro eu espero que um dia o povo tenha estes plenos
poderes e espero que, neste caso, as três medidas prioritárias
sejam os três direitos fundamentais: alimentação, saúde e
educação; nesta ordem.
Então, para resolver a questão da
alimentação o mais urgente é promover a reforma agrária. Para
resolver a questão da saúde o mais urgente é erradicar as
causas como a miséria, a pobreza e a desigualdade que produzem a
doença.
Doença física e psíquica é
resultado da miséria. Para resolver a questão da educação é
criar uma nova concepção onde educação seja uma concepção
abrangente e portanto não meramente curricular, escolar, mas que
mobilize toda a sociedade brasileira para erradicar o
analfabetismo e para criar uma cultura educacional sobretudo na mídia
brasileira.
I.N.: O senhor sabe que
aqui em Olinda e Recife nós sofremos na pele o contraste entre
Igreja chamada progressista do modelo Vaticano II e a Igreja que
se tenta implantar atualmente, ou se implanta a nível mundial,
uma Igreja mais conservadora. Se os plenos poderes aos quais nos
referimos na pergunta anterior lhes fossem dados para mudar um
pouco a Igreja hierárquica, enquanto corpo social, como o senhor
agiria ?
F.B.: Bem, eu acho que a Igreja tem
que ser fiel ao Evangelho, portanto a Igreja deve se despojar das
suas marcas imperiais, que são heranças do constantinismo, do
momento em que a Igreja do século quarto aderiu ao império
romano, isso foi acentuado pela tradição medieval e
posteriormente pelo monarquismo e sobretudo pelo absolutismo monárquico.
De modo que é preciso despojar a instituição da Igreja de todas
estas marcas de "nobreza" que não têm nada a ver com o
Evangelho. Não há nenhuma razão de ser.
I.N.: Então, qual seria
sua proposta ?
F.B.:
Ora, mas para isso não é preciso que eu faça a proposta, é
preciso que a Igreja assuma propostas que ela já consagrou, como
por exemplo a concepção do Vaticano II, de uma Igreja Povo de
Deus em marcha na história, de uma igreja dirigida por uma "colegialidade",
pela colegialidade episcopal, uma igreja muito mais comunitária,
de uma igreja não euro-centrada, de uma igreja onde a autoridade
seja serviço e não poder de mando e submissão de súditos e por
aí vai...
I.N.: Então devemos lutar
por estes valores ...
F.B.:
Isso são valores que a própria Igreja já trabalhou no seu seio
e acredito que enquanto houver esta desigualdade social vai
perdurar também as contradições internas da Igreja. Eu não
quero criar ilusão de que nós teremos uma Igreja fraterna, uma
Igreja totalmente sintonizada...não teremos nunca, ainda que as
desigualdades desapareçam, porque há um limite. Evidente que nós
precisamos criar uma Igreja menos autocrática, mais democrática,
porém é preciso saber que haverá sempre diferenças entre nós.
O importante é saber não transformar diferenças em divergências.
I.N.: O senhor concorda que
as diferenças são saudáveis em qualquer contexto da vida,
principalmente em relação à vida em comunidade?
F.B.:
A começar do fato de haver quatro Evangelhos e não um só. São
quatro óticas diferentes de Jesus. Seria terrível se alguém
quisesse nos impor um dos Evangelhos jogando fora os outros três.
Então é isso, é o testemunho que o próprio Senhor quis uma
Igreja em comunhão com diferenças, onde há diversas óticas e
ao mesmo tempo estas diversas óticas convivem com harmonia e
vivem o projeto pastoral.
IGREJA NOVA: Frei Betto,
para finalizar, , nos pediríamos uma mensagem de esperança para
o povo, leigos e padres, que está engajado, para manter viva esta
tradição da Igreja que tivemos e temos ainda com D. Hélder ,
este grande profeta.
FREI BETTO
: Eu acho que a esperança é ser fiel à herança de D. Helder,
ser fiel a tudo aquilo que D. Helder tem testemunhado ao longo da
sua vida, as grandes aspirações que ele encarnou, ser fiel à
grande revolução que representou o Vaticano II para a Igreja,
ser fiel às linhas pastorais da CNBB, ser fiel a toda esta
postura crítica que a CNBB tem diante do neoliberalismo, ser fiel
enfim, a todo esse movimento de uma Igreja latinoamericana que se
aproxima dos pobres, de uma Igreja que vive a fidelidade a Jesus
na comunhão com todos, mas especialmente com os mais
necessitados.
I.N - Muito obrigado.
RAINHA
SETEMBRO/OUTUBRO
- 1997
ARTIGO PUBLICADO NO
"BOLETIM REDE", DE 17 DE SETEMBRO - INFORME REDE DE
CRISTÃOS - CENTRO ALCEU AMOROSO LIMA PARA A LIBERDADE
José
Rainha , um dos líderes dos sem-terra, voltará ao banco dos réus
agora em setembro. Delegações e personalidades do Brasil e do
exterior irão ao Espírito Santo manifestar apoio aquele que, em
primeira instância, recebeu a condenação de 26 anos e 6 meses
de prisão, e repudio ao caráter injusto do processo.
São Tomás de
Aquino ensina que não se deve confundir o legal e o justo. Há
sentenças legais, porém injustas. Em nome da lei cometem-se
erros judiciais irreparáveis. Sou vítima de um deles. Preso pela
ditadura militar, fui condenado a 2 anos de reclusão e cumpri 4.
Cassaram meus direitos políticos por 10 anos e nos últimos 2
anos de cárcere negaram-me o regime de prisão especial a que têm
direito os prisioneiros com curso superior. Passei dois anos entre
presos comuns nos pavilhões do Carandiru, da Penitenciaria do
Estado e de Presidente Venceslau.
Essa ‘descida aos
infernos’, levou-me à comunhão com os mais sofridos.
Libertado do cárcere,
fui trabalhar com as Comunidades Eclesiais de Base. Ao assessorar
um encontro de CEBs, ao norte do Espírito Santo, conheci um jovem
lavrador franzino, espigado, de olhos perscrutadores e um jeito
pausado de falar. Era José Rainha. Tornou-se um dos mais
destacados animadores dos grupos de cristãos de base e dos que
eram enxotados de suas terras pelo latifúndio.
Em 11 de junho
deste ano, Rainha foi julgado em Pedro Canário por um crime que não
cometeu. Nem poderia ter cometido, pois testemunhas idôneas
viram-no, entre maio e junho de 1989, época do delito, no sertão
do Ceará.
Há fotos que
registram ali sua presença. Por que será que o levam a
julgamento exatamente quando o MST está em evidência e ele, na
mira dos que crêem que terra ociosa é direito divino? Mera
coincidência?
A 5 de junho de
1989 foram assassinados em Pedro Canário o fazendeiro José
Machado Neto e o policial Sérgio Narciso da Silva. Na mesma data,
o padre Pedro Paulo Cavalcanti registrou a presença de Rainha na
fazenda Reunidos de São Joaquim, em Madalena, CE. Inúmeros
assentados da fazenda estiveram com Rainha. No arquivo da Casa
Militar do governo cearense há uma foto na qual Rainha aparece
dialogando com o governador Tasso Jereissati, em 30 de maio de
1989.
Não há provas da
culpa de José Rainha. E há provas e testemunhas de sua inocência.
A dificuldade reside na implicação política do julgamento,
neste país em que batedores de carteiras apodrecem nas cadeias
enquanto fraudadores de bancos, falsificadores de precatórias e
cambistas de votos desfrutam da cegueira ou da brandura de uma
justiça que proclama não ser grave o delito de queimar um índio
vivo numa rua do Distrito Federal. É a nossa cidadania sendo
consumida na pira da impunidade.
Estará no banco
dos réus, em setembro, a legítima aspiração de reforma agrária
da nação brasileira. Como não há como prender direitos e
sonhos, procuram condenar quem os encarna.
Não há sentença
injusta que altere a história de um país. Filhos de latifundiário
também aprendem na escola quem são os heróis na nação
brasileira: Zumbi, Tiradentes, Frei Caneca, Antonio Conselheiro,
Chico Mendes - todos injustamente perseguidos pela elite
gananciosa de seu tempo, como hoje José Rainha.
A
IGREJA CATÓLICA E AS ELEIÇÕES -
SETEMBRO
- 1998
O
bispo de Jundiaí (SP), dom Amaury Castanho, divulgou lista de
candidatos que merecem o voto do eleitorado católico. Uma prática
reprovada por seus próprios fiéis, já que não se pode
dissociar o bispo da instituição eclesiástica e nem admitir que
esta deixe de cumprir seu papel de iluminar as consciências à
luz do Evangelho para intrometer-se diretamente no pleito.
A posição da
Igreja católica diante das eleições suscita tantas tolices que
convém relembrar certos princípios. Sisudos articulistas usam,
ao tratar da Igreja, dois pesos e duas medidas. Ontem, louvavam a
Igreja da Polônia que apoiava abertamente o ex-movimento sindical
e atual partido político Solidariedade e, hoje, condenam os cristãos
que, no Brasil, buscam uma mediação política à exigência
evangélica de opção pelos pobres.
O problema não
reside na presença da Igreja na política. Para a doutrina católica,
esta é uma questão resolvida. Todos os documentos pontifícios e
episcopais insistem no dever de o cristão participar ativamente
da vida política. O Papa Paulo VI acentuava que "a política
é a mais perfeita forma de caridade". E ele próprio chegou
a pedir votos para a Democracia Cristã quando a prefeitura de
Roma estava ameaçada de passar às mãos do PCI ( Partido
Comunista Italiano). Em outubro de 1989, o cardeal Poletti voltou
a repetir o gesto. E quem se intrometeu mais na política interna
dos países do Leste europeu que o papa João Paulo II?
De fato, a presença
da Igreja na política incomoda quando se trata de favorecer o
interesse popular. Durante séculos, a oligarquia manipulou
setores da Igreja em prol de seus negócios escusos. A sombra da
cruz, a América Latina foi invadida, os índios mortos, as
riquezas saqueadas. Em nome de Deus, a supremacia do capita1 sobre
o trabalho virou dogma inquestionável. Apesar de tanta miséria
ainda ousam chamar o nosso Continente de cristão... Será esta a
sociedade desejada por Cristo? Todos sabemos que não, pois diante
de Deus a vida não pode ser privilégio de uns poucos em
detrimento da morte de muitos.
Enquanto
a Igreja incensou governos ditatoriais como Franco ou Somoza,
freqüentou mansões de famílias aristocratas, pregou aos
pobres a abnegação frente aos sofrimentos deste mundo, a
ideologia dominante jamais se viu incomodada com sua presença
na política.
Porém,
quando ela retoma o caminho de Cristo e exige justiça - a ponto
de proclamar que a fome de justiça é uma bem-aventurança -
então dizem que ela "foge de sua verdadeira missão".
Ainda bem que Jesus advertiu: "Se a mim chamaram de
Belzebu, que não dirão dos membros de minha casa'."
(Mateus 10, 25).
O
modo de a Igreja participar da vida política não pode ser o
mesmo de um partido político. Não cabe a ela organizar núcleos
partidários, apontar candidatos, sacralizar regimes. Sua missão
é formar e alertar a consciência dos fiéis. Se um bispo ou um
padre apoia explicitamente um candidato, o faz em nome próprio,
como cidadão revestido de todos os direitos políticos, e não
em nome da instituição eclesiástica. Esta, porém, tem a
obrigação moral de expressar as exigências éticas de uma
ordem democrática, como faz a CNBB.
Toda
a linha pastoral da Igreja católica no Brasil insiste na urgência
da reforma agrária, em priorizar saúde e educação, no
resgate da cidadania e no fortalecimento da democracia. Basta
ler os documentos da CNBB. E seria aconselhável comparar o
conteúdo com os programas, as palavras e, sobretudo, a prática
dos candidatos a governador e presidente da República.
O
beija-mão de candidatos que acorrem aos bispos não os absolve
nem canoniza. Pelo contrário, foi com um beijo que Judas selou
a morte de Jesus.
SONHOS
E LOUCURAS DE CLEONICE
OUTUBRO
- 1998
A Folha de S. Paulo (31/5) publicou
entrevista da desempregada nordestina Maria Cleonice Souza Silva,
22, de Ouricuri (PE), que costuma ficar três dias sem comida. Ela
declarou que, instigada pela miséria, é "capaz de fazer
qualquer coisa".
Cleonice agrediu a mãe, tentou
comer gilete e bebeu água sanitária. O Brasil sonega a essa moça,
que habita o país que se destaca como o produtor mundial de
frutas e um dos seis maiores produtores de alimentos, algo
elementar: "comer alface, queijo, cenoura, beterraba, essas
coisas que as outras pessoas comem".
Cleonice sonha com direitos básicos:
trabalho e comida. O primeiro, um direito humano; o segundo, um
direito animal. Trabalho o Brasil nega a cerca de 12 milhões de
pessoas. Comida, a 40 milhões. Recursos para acabar com a fome não
faltam: há terra em abundância, armazéns do governo repletos de
grãos, cerca de US$ 60 bilhões estocados no Banco Central e mais
US$ 95 bilhões na caderneta de poupança.
O que falta à nação é algo tão
essencial quanto a comida que pede Cleonice: governo. O que temos
não é mau, nem se regozija com a fome que assola o Nordeste. O
problema é que o governo FHC fez a opção neoliberal. Governa de
olhos no Primeiro Mundo e de costas para a questão social
brasileira. Até gostaria que a fome não provocasse o efeito
Cleonice e os pobres suportassem resignadamente a miséria, até
serem ceifados pela morte precoce.
Cleonice, contudo, demonstra que
ninguém suporta a falta de pão. Ela produz revolta e demência.
No sertão, Cleonice agride a mãe. Na cidade, milhares de
Cleonices apelam para o crime em busca de sobrevivência.
Os donos do poder gostariam que
essa turba de Cleonices tivesse a mesma paciência com que aguarda
chuvas para esperar as migalhas das políticas emergenciais. Porém,
desde os anos 70 os pobres do Brasil decidiram fazer a hora e não
esperar acontecer. Criaram o PT, a CUT, o MST e a CMP (Central de
Movimentos Populares). Fizeram o que o sociólogo FHC defende como
dever e direito: organizar a sociedade civil brasileira.
A CUT conta com cerca de 18 milhões
de filiados. O MST coordena aproximadamente 15 milhões de
sem-terra. Os donos do poder não condenam a existência de tais
movimentos. Sem eles, toda aquela malta estaria engrossando o
cinturão de favelas que cercam nossas cidades, multiplicando o número
de crianças de rua e o índice da violência urbana.
O que provoca a ira dos donos do
poder é esses movimentos sociais serem representativos e
atuantes. Como Cleonice, eles reagem à falta de emprego, salário,
terra e moradia. Mas ao contrário de Cleonice, não comem gilete
nem bebem água sanitária. Ocupam terras ociosas, promovem saques
em situações extremas, denunciam o descaso do governo com a
questão social.
A demência provocada pela fome
superlota o maior hospital psiquiátrico do sertão nordestino, a
Casa de Saúde Santa Tereza, no Crato. A posologia preventiva é
simples: comida. Mas as autoridades apelam ao velho recurso:
camisa-de-força.
O MST perderia muito de sua força
se houvesse reforma agrária. O governo, porém, prefere satanizá-lo
e acusá-lo de "ideológico e partidário". Parte da mídia
vai atrás e carrega nas tintas, indignada por viver numa nação
cujas camadas populares se organizam e mobilizam (no fundo, o
horror à democracia real). Como se houvesse, sobre a face da
Terra, um movimento social sem implicações ideológicas e partidárias.
E o efeito Cleonice: preferível diagnosticá-la como louca que
oferecer-lhe um prato de comida.
Movimentos sociais são
interessantes nas monografias da USP. Congregando milhões de
pessoas e fora do controle dos donos do poder, viram bicho-papão.
Como se subversiva e baderneira não fosse a fome, essa aliada
eleitoral de oligarquias acostumadas a ofertar cestas básicas,
carros-pipas e serviço em frentes de trabalho, mas jamais terras,
poços artesianos e empregos.
O governo saqueia da nação seu
direito de organizar-se e conquistar necessidades básicas,
adotando a mesma postura paternalista do coronelismo responsável
pela miséria do Nordeste. A elite organiza-se em um amplo leque
de siglas e entidades, exerce todo tipo de pressão sobre o
governo - mas isso é palatável pelas autoridades e pela mídia
(que, aliás, é instrumento de pressão dos grupos que a
comandam).
Eis o Brasil: Cleonice é louca, Stédile
é raivoso e os donos do poder uma legião de anjos...
exterminadores.
SAUDADES
DO FUTURO
NOVEMBRO
- 1998
Advento é tempo de espera, momento
de renascer "nos mesmos sentimentos de Cristo" como
sugere são Paulo. Ne1e esperamos o cessar dos cortes que
infeccionam nosso tecido social, a paz sonegada ao coração
aflito a saúde ameaçada pela enfermidades que nos reduz à dor
Na régua do tempo, miramos o
passado, ora com olhos nostálgicos, ora com supremo alívio de
quem sobreviveu à borrasca. O futuro é ilusão temperada na fé.
Dele nada se sabe e, no entanto, tudo se espera: o amor ávido: o
bem-estar diletante, a irrupção final e feliz do ser que somos e
não temos sido. Apropriar-se de si mesmo, dando-se o direito de
ociosidade criativa e sobretudo, orante. Deus como preguiça da
alma. Agora é o presente, minúsculo microssegundo de uma
constatação que já se faz passado pelo futuro implacável.
Nessa espera, vislumbramos minudências:
guardar no olvido a sonegação da ternura, reinventar a vida ao
amanhecer, perfumar espinhos, criar asas no lugar dos braços e alçar
vôo. Aplacar a sede de Deus no gesto libertário e provar o Verbo
que se fez carne para ter certeza que tem mesmo sabor de justiça.
Espera-se a abolição cabal de
todos os determinismos, inclusive o que decreta o fim da história,
e o reconhecimento de que o próprio compasso dialético
encontra-se quanticamente indeterminado, sujeito aos protagonistas
individuais e coletivos que agem de modo imprevisível.
Espera-se Jesus, sublinhando os
valores que ele encarnou: o cuidado dos pobres, a misericórdia
aos faltosos, a tolerância para com o diferente, o pão de cada
dia a todos nós, o coração dilatado à misteriosa e sedutora
presença do Amor.
Graças inacessíveis àqueles que
nada esperam, inflados em seu ego, prepotentes geômetras da razão,
arautos de uma opulência que ofende o haitiano cenário de nossas
metrópoles repletas de corpos deambulantes.
Esperar é ousar renascer, advir,
vir de novo, recomeçar, na fulgurante arte de tecer a vida, nisso
que ela tem de mais íntimo e cotidiano, com os fios invisíveis
da aventura espiritual e da poesia.
Um pouco menos de
tarefas, agendas e inadiáveis compromissos. Um pouco mais de
ociosidade, de gratuidade amorosa e de alegria despudorada, pois não
duvido que estejamos levando muito a sério esse episódico
existir, singular brincadeira de Três Pessoas que, no clima de
Natal, voltam a ser crianças e se diverte m coma bola do
Universo.
E nos revelam
segredos escatológicos, inclusive o de que, no ponto final
seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer eternos. Porque
Ele é terno.
FAZER
RENASCER O NATAL
DEZEMBRO
- 1998
O melhor da festa é esperar por
ela, diz o provérbio. O melhor do Natal é ter passado por ele,
sentem muitos sem dizer.
É insuportável a fissura
desencadeada pelas festas de fim de ano. O consumo compulsório de
produtos, o apetite compulsivo de comilanças, a máscara da
alegria estampada no rosto para encobrir o bolso furado, a corrida
aos espaços de lazer, as estradas engarrafadas, as filas intermináveis
nos supermercados, os sinos de papel envoltos nas fitas vermelhas
dos shopping centers, aquela mesma musiquinha marota, tudo satura
o espírito.
Seria esse anticlima um castigo
divino à nossa reverência pagã à figura de Papai Noel?
Natal é pouco verso e muito
reverso. Em pleno trópico, nosso mimetismo enfeita de neve de
algodão a árvore de luzinhas intermitentes. O estômago devora
castanhas, nozes, avelãs e amêndoas, quando a saúde pede
saladas e legumes.
Já que o espírito arde de sede
daquela Água Viva do poço de Jacó ( João 4 ), afoga-se o corpo
em álcool e gorduras. A gula de Deus busca, em vão, saciar-se no
ato de se empanturrar à mesa.
Talvez seja no Natal que nossas carências
fiquem mais expostas. Damos presentes sem nos dar, recebemos sem
acolher, brindamos sem perdoar, abraçamos sem afeto, damos à
mercadoria um valor que nem sempre reconhecemos nas pessoas. No íntimo,
estamos inclinados à simplicidade da manjedoura. O mal-estar
decorre do fato de nos sentirmos mais próximos dos salões de
Herodes.
No Brasil, este Natal é de reis
"magros". A nação, condenada a pagar as aventuras político-financeiras
de governantes e economistas que tentaram salvar a moeda
sacrificando o povo, dá as costas às alegrias do presépio para
trilhar, com recessão, salários arrochados e tributos
aumentados, o caminho do Calvário.
Sem que fôssemos consultados, o
Brasil foi penhorado ao capital da pirataria especulativa, que
saqueia nossas Bolsas, quebra nossas pequenas e médias empresas,
leiloa nosso patrimônio público, dilapida nosso sistema de
ensino e gangrena o de saúde. E ainda insistem em nos convencer
de que esta é a melhor rota para o futuro e que devemos reeleger
aqueles que seqüestram nossos anseios de felicidade.
Mudemos nós e o Natal . Abaixo
Papai Noel, viva o Menino Jesus ! Em vez de presentes, presença
– junto à família, aos que sofrem, aos enfermos, aos
soropositivos, aos presos, às famílias das vítimas de crimes,
às crianças de rua, aos dependentes de droga, aos (d)eficientes
físicos e mentais, aos excluídos.
Façamos da ceia cesta a quem
padece fome e do abraço laço de solidariedade a quem clama por
justiça. Instalemos o presépio no próprio coração e deixemos
germinar Aquele que se fez pão e vinho para que todos tenham vida
com fartura e alegria.
Abandonemos a um canto a árvore
morta coberta de lantejoulas e plantemos no fundo da alma uma oração
que sacie nossa fome de transcendência.
Deixemo-nos, como Maria, engravidar
pelo Espírito de Deus. Então, algo de misteriosamente novo haverá
de nascer em nossas vidas.
DOM
HELDER CÂMARA, 90 ANOS
JANEIRO/FEVEREIRO
- 1998
Completa 90 anos de idade, no próximo
dia 7 de fevereiro, Dom Helder Câmara, arcebispo emérito de
Olinda de Recife. Em 1962, indicado pela Ação Católica de
Minas, integrei a equipe de coordenação nacional do JEC (
Juventude Estudantil Católica), no Rio. O assistente nacional da
Ação Católica era Dom Helder, bispo-auxiliar do cardeal do Rio,
Dom Jaime de Barros Câmara.
Durante três anos, convivi com o
bispo que fundou a CNBB, a Cruzada de São Sebastião, o Banco do
Providência e, no Nordeste, a Operação Esperança, que deu
acesso à terra a vítimas do latifúndio.
Magro, rosto chupado, a calvície
mal disfarçada por uma réstia de cabelos, Dom Helder andava
sempre de batina, mesmo após ser permitido aos bispos, o uso de
roupas comuns. De baixa estatura, o padre Helder – como prefere
ser chamado pelo círculo de amigos mais próximos, alcunhado de
"família mecejanense", em alusão ao seu chão de
origem, no Ceará – parecia um gigante ao abrir a boca, quando
ainda pregava em público.
Não era um orador sacro à moda
antiga, nem um pregador retórico pleno de pomposidade e vazio de
conteúdo. Não se apresentava com a carranca dos arautos do Vale
de Lágrimas, como se o inferno fosse o destino natural de todos nós,
pecadores costumazes.
Dom Helder pregava com vivacidade e
entusiasmo – que significava etimologicamente "estar cheio
do Espírito de Deus"- o olho faiscando, as mãos esqueléticas
e os braços finos em gestos exuberantes que lhe compensavam a
estatura; o corpo erguido na ponta dos pés, como se a ênfase lhe
brotasse do impulso de querer voar; o sotaque nordestino rasgando
as vogais de suas mensagens em frases curtas, sem vírgulas ou
circunlóquios.
O bispo brasileiro que mais
influenciou o Concílio Vaticano II sempre teve idéias claras,
articulando o ardor da fé com o clamor de justiça. Profeta, de
sua mente jorravam projetos que mudariam a face da Igreja Católica.
É dele a iniciativa de organizar os bispos em conferências
episcopais, os planos de pastorais e o exercício da colegialidade
entre os prelados. Graças a ele, parcela significativa da Igreja
resgatou suas origens evangélicas no compromisso de justiça com
os setores mais pobres da população.
Compadre de Roberto Marinho, Dom
Helder resistiu quando JK quis fazê-lo prefeito do Rio. Marcado
por sua malfadada passagem pelo integralismo, nos anos 30, Dom
Helder jamais entrou na política partidária. Assim como jovens
esquerdistas fanáticos tendem a se tornar reacionários moderados
na idade adulta, Dom Helder fez o percurso inverso. Nunca aceitou
o marxismo, malgrado a sua fama de "bispo vermelho".
Defensor intransigente dos pobres, toda a sua atuação se pautou
pela busca de uma alternativa que superasse tanto o comunismo
quanto o capitalismo. Por essa utopia correu o mundo, aprendeu a
falar inglês com sotaque cearense e mobilizou multidões em metrópoles
de países desenvolvidos.
No início de 1964, Dom Helder foi
nomeado arcebispo de São Luís do Maranhão. Quando se preparava
para a posse, morreu o arcebispo do Recife. O papa João XXIII
decidiu transferi-lo para a arquidiocese pernambucana.
Na última semana de março, eu me
encontrava em Belém do Pará, no congresso latino-americano de
estudantes. A 1º de abril, estourou o golpe militar. Escondi-me
no seminário. Mas o arcebispo, Dom Gaudêncio Ramos, passou a
colaborar com a polícia, interessada em deter os padres
"subversivos". Ora, se nem o clero podia contar com o
bispo, o que seria de nós leigos?
Corri para a agência da Varig.
Minha passagem Belém-Rio, tinha sido dada pelo Betinho, chefe de
gabinete do então ministro da Educação, do governo Jango, Paulo
de Tarso dos Santos, deposto pelo golpe.
A atendente desapareceu com o meu
bilhete. Retornou pouco depois. Comunicou que todas as passagens
cedidas pelo governo anterior estavam canceladas. Fiquei ali
aturdido entre inúmeras pessoas que tentavam deixar a capital
paraense. Na capa do bilhete, um carimbo nítido:
"Cancelado". Rasguei a capa e estendi a passagem para
outra atendente:
-Já que não há mais lugar para o
Rio, pode desdobrar minha viagem via Recife? Fui atendido.
Desembarquei no aeroporto de
Guararapes no dia da posse de Dom Helder. Cheguei ao palácio
episcopal de Manguinhos na hora da recepção. Ao saudar o novo
arcebispo, manifestei interesse ma falar-lhe em particular. O
homenageado largou a festa, trancou-se comigo numa sala e ouviu
atento o que eu tinha a relatar sobre a igreja de Belém do Pará.
Ao longo das últimas décadas,
encontrei-o em viagens e eventos eclesiais. Nele identifico o
principal inspirador da "opção pelos pobres",
compromisso que propôs a um grupo de cardeais e bispos durante o
Concílio. Ele é, portanto, o precussor da Teologia da Libertação.
Dom Helder é para a Igreja o que
Paulo Freire representa para a educação e os movimentos sociais.
Sem a "pedagogia do oprimido" não haveria MST, CUT, CMP
ou PT. Sem Dom Helder talvez não houvesse comunidades eclesiais
de base e pastorais sociais, Campanha da Fraternidade e Grito dos
Excluídos.
Estivemos juntos em Puebla, no México,
na conferência episcopal latino-americana de 1979. Eu, do lado de
fora, em companhia de duas dezenas de teólogos da libertação;
ele, do lado de dentro, repassando nossos subsídios aos bispos e,
deles, às comissões e aos textos.
Vale definir Dom Helder como um
"conspirador"- alguém capaz de conspirar a favor do bem
com arte, verve, delicadeza e alegria. Nunca conheceu o desânimo
e o luxo. Sempre se alimentou como um passarinho, de preferência
em botequins nas imediações de seu local de trabalho.
A ditadura manteve o nome dele
distante do noticiário nacional. Mas o êxito de suas pregações
no exterior levou o Itamaraty a empenhar-se para que não
recebesse o prêmio Nobel da Paz. Talvez articulações
semelhantes expliquem por que não mereceu também o chapéu
cardinalício.
Perdeu o Nobel, perdeu a Igreja.
Dom Helder engrandeceria um e outro, pois ele sintetiza e
simboliza o que de mais evangélico ocorreu na Igreja Católica
nesta Segunda metade do século XX.
Padre Helder, feliz idade!
CARNAVAL
E CINZAS
MARÇO
- 1999
Carnaval significa
"festa da carne" e era, em seus primórdios,
uma festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante da
perspectiva de passar quarenta dias em abstinência de carne, os
cristãos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a
"terça-feira gorda". Na quarta, revestiam-se de cinzas,
evocando que do pó viemos e para o pó retornaremos, e
ingressavam no período em que a Igreja celebra a paixão, a morte
e a ressurreição de Jesus Cristo.
A modernidade secularizou a
cultura e, de certo modo, esvaziou o significado das
festas religiosas, hoje apreendido apenas por cristãos vinculados
à comunidade eclesial. Com certeza ganhou a autonomia da razão e
perdeu a consistência da subjetividade. Trocou-se São Nicolau,
que no século V distribuiu sua herança aos pobres, pela figura
consumista de Papai Noel; transformou-se o carnaval em festa da
carne em outro sentido; e fez-se da Semana Santa um período extra
de férias.
Essa reificação dos ritos
de passagem torna-se mais evidente nesse momento em que a
humanidade enfrenta a crise de paradigmas. Destituído o leninismo
da condição de ciência da história, e constatado o fracasso crônico
do neoliberalismo nos países da América Latina, da África e da
Ásia, ocorre uma emergência espiritual em todo o mundo.
Parafraseando Rimbaud,
há uma "gula de Deus", que favorece o encontro da mística
oriental com a doutrina cristã ocidental, introduz a new age e
agnose de Princeton, mas também abre campo aos mercenários da
salvação, que pregam de olho na cobiça, convencidos de que
"no princípio era a verba" e, se Jesus é o Caminho,
pague-se a eles o pedágio...
A Quarta-Feira de Cinzas
instiga-nos a refletir sobre esta experiência inelutável: a
morte. O processo reificador da modernidade tende a tornar descartáveis
também os ritos de passagem que se sobrepõem às esferas
religiosas, como o nascimento, o casamento e a morte. Outrora,
morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia choro, vela
e fita amarela.
Criança em Minas,
acorri a enterros que eram uma festa, com toda a força paradoxal
da expressão. Havia velório e carpideiras, cachaças e empadas,
coroas de flores e procissão fúnebre, missa de corpo presente e
encomendação no cemitério. Hoje, morre-se quase
clandestinamente, e o enterro se faz antes que os amigos possam
ser avisados, como se resistíssemos à idéia de que esta vida
escapa ao nosso absoluto controle.
A evocação da morte
incomoda porque remete ao sentido da vida. Só assume morrer quem
imprime à vida um sentido altruísta, capaz de transcender aexistência
individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da vida.
Porém, já não se
enfatiza a questão do sentido da vida. Na
escola,aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a ciência,
a técnica e o patrimônio cultural de que somos herdeiros. Pois não
há disciplina que prepare os alunos para as crises quase inevitáveis
da existência: o fracasso profissional, a ruptura afetiva, a doença,
a falência, a morte. Socializada a ambição, toda as vezes que o
desejo esbarra na frustração, privatiza o consolo: o alcoolismo,
as drogas, o ressentimento, o lobo que nos devora o coração.
Na Quarta-Feira de Cinzas,
a CNBB lança, em todo o Brasil, a Campanha da Fraternidade, neste
ano dedicada ao desemprego. Há no país cerca de 10,3milhões de
desempregados, um em cada cinco trabalhadores brasileiros. Ora, a
fé cristã não faz o panegírio da morte, mas proclama o seu
fracasso ao centrar seu eixo na ressurreição da carne. Isso
significa a recusa de todasas situações de morte, do pecado
individual às estruturas sociais queexaltam o capital e humilham
o trabalho, incapazes de assegurar a tantos jovens e famílias um
futuro melhor.
Proclamar que a vida tem
a palavra final, inclusive sobre a morte, implica também
empenhar-se para que a nossa juventude não se transforme numa
geração perdida. Nos anos 50, o Rio viveu o pesadelo da
Juventude Transviada e do assassinato de Aída Curi. Nos anos 60,
a utopia incendiou de esperanças o movimento estudantil e
deslocou o foco dos inferninhos de Copacabana para a Bossa Nova, o
Cinema Novo, a UNE, o sonho de arrancar o Brasil do
subdesenvolvimento.
Como nos enredos
carnavalescos, parece que regressamos ao passado. As
gangues ressurgem nas areias da praia e o assassinato de jovens já
nem causa o impacto provocado pela morte de Aída Curi. O governo
pode cortar verbas, mas comete um crime de lesa-pátria ao cortar
sonhos. E sonhos deixam de ser químicos e se transformam em
esperanças, que afloram em projetos de uma sociedade
verdadeiramente humana, quando se investe em educação,
oportunidades de trabalho, cultura e o sadio orgulho de ser
brasileiro. Sem isso, nossos jovens estarão condenados a portar
armas para se defenderemsegundo as leis da selva. E as vítimas
seremos todos nós.
PÁSCOA,
A ARTE DE SER CRIANÇA
ABRIL
- 1999
A Páscoa judaica iniciou-se em 31
de março. A cristã, domingo, 4 de abril. Em ambas religiões,
ela tem igual significado: celebrar a libertação dos hebreus
escravizados no Egito do faraó Ramsés II, cerca de 1250 a.C. À
fé cristã, acresce-seeste evento que imprime à festa consistência
e centralidade: a ressurreição de Jesus.
Pessach, passagem, travessia. Páscoa
é abrir-se às possibilidades de vida. Nesse sentido, alunos da
escola judaica Isaac L. Peretz, de São Paulo, passaram por cima
de preconceitos e visitaram o colégio católico Madre Cabrini. As
criançasjudaicas partilharam com as católicas pães ázimos e
outros alimentos próprios do seder.
Nós, adultos, temos muito a
aprender com as crianças. Comungamos a mesma aventura da vida, a
mesma crença na transcendência e os mesmos desafios dessa
atribulada conjuntura nacional/internacional. No entanto, erguemos
muros em nome de nossa concepção de Deus. Como se não fôssemos
todos feitos do mesmo pó estelar, filhos da mesma Terra e
igualmente vocacionados ao inelutável abraço da morte, que nos
conduzirá à vida definitiva.
Quisera ver o mundo governado por
crianças. Elas têm mais bom-senso que esses adultos que despejam
bombas sobrepopulações civis e ainda acreditam, contra os
recentes avanços da biologia, que a cor da pele determina a
distinção deraças.
Criança vê o mundo pelos olhos do
coração. A menos que o adulto lhe meta na cabeça que negro é
inferior ao branco, muçulmano é inimigo do judeu, pobre é
preguiçoso e índio é lixo que merece ser queimado.
O ovo é o símbolo da Páscoa.
Contém vida, que só aflora se ele for quebrado. Assim é. Sem
quebrar tabus epreconceitos ficamos isolados em nossas razões
insensatas. O mau juízo é marido da ignorância. Quem não se
desloca de sua esfera religiosa para, a exemplo das crianças
judaicas, sentar-se à mesa com fiéis da sinagoga e da mesquita,
doterreiro de candomblé e do santo daime, e tantas outras formas
de pressentir Deus, cai na arrogância de considerar a suareligião
a única com selo de qualidade divina e garantia de salvação
eterna.
Se as crianças não são melhores,
a culpa é dos adultos. Por que as escolas não seguem o exemplo
da Isaac L. Peretz elevam seus alunos a um ritual afrobrasileiro?
Ou não imitam o colégio Santa Cruz, que promove visitas ao Vale
do Jequitinhonha (MG) e estimula os estudantes ao trabalho social?
Seria educativo e, no futuro, evitaria fazer da questãosocial
mero derivativo de primeira-dama.
Pode-se educar ignorando as raízes
espirituais e culturais do Brasil? Há pais que se gabam de levar
o filho à Disney. Eis a riqueza esbanjada por força da pobreza
espiritual! A cabeça de nossas crianças seria outra se
visitassem ao menos um dos 215 povos indígenas que vivem neste país
e falam 185 idiomas! A exuberância do Pantanal, a beleza da
Chapada Diamantina, os mistérios da Amazônia ou a criatividade
artística do sertão do Nordeste, supera qualquer boneco de rato
ou pato estilizado. O problema é que o colonizado tende a ver o
mundo pelos olhos do colonizador, como ensinou Paulo Freire. É
como o pássaro que se orgulha do requinte de sua gaiola.
Páscoa é renascer, aceitar o
convite de Jesus para voltar a ser criança (Mateus 18, 1-4).
Despojar-se dessa mulher ou homem velho que torna a nossa existência
amarga. Soltar a fantasia, a criatividade, desamarrar o afeto,
esbanjar sorrisos, recolher-se em oração, amar despudoradamente.
Assim, dar a volta por cima desse sistema que satura os sentidos,
proíbe a razão de pensar com o coração e nos aprisiona na
ditadura do econômico.
Páscoa é tocar a mão amada em
silêncio profundo e sentir, no íntimo, a brisa divina. Pura fruição,
sem nada em mente, exceto o prazer de, como propunha Murilo
Mendes, descobrir o alfabeto das formigas.
O
PRESIDENTE,A IGREJA E A POLÍTICA
MAIO
- 1999
O presidente Fernando
Henrique Cardoso não gostou da crítica dos bispos
brasileiros ao fracasso de sua política econômica. Movido pela
incontinência verbal, declarou na Alemanha que "assim como não
me meto nos dogmas da Igreja, a Igreja não deve se meter na política".
Toda vez que o
presidente se pronuncia sobre
questões religiosas o resultado é desastroso. Outrora
declarou-se ateu e, agora, faz profissão de fé de que nunca
disse o que disse a milhares de telespectadores, entre os quais me
incluo, ao responder pergunta de Boris Casoy.
Dom Ivo Lorscheider,
bispo de Santa Maria e ex-presidente da CNBB, ao defender o
documento da Igreja comparou o presidente ao general Médici.
Frente à afirmação de Dom José Maria Pires, então arcebispo
de João Pessoa, de que "a Igreja fala de questões sociais
por se preocupar com o homem", Médici retrucou: "É por
se preocupar tanto com homem que os senhores vestem saias".
Não se pode separar
fé e política, assim como não
seria possível fazê-lo na Palestina do século I. Na terra de
Jesus, quem detinha o poder político, detinha também o poder
religioso. E vice-versa. Talvez soasse estranho, hoje, a certos
ouvidos religiosos introduzir a leitura do Evangelho falando de
Clinton e Nelson Mandela, Tony Blair e Yasser Arafat. No entanto,
ao introduzir os relatos da prática de Jesus, Lucas primeiro nos
situa no contexto político, informando que "já fazia quinze
anos que Tibério era imperador romano. Pôncio Pilatos era
governador da Judéia, Herodes governava a Galiléia e seu irmão
Felipe, a região da Ituréia e Traconites. Lisânias era
governador de Abilene. Anás e Caifás eram os presidentes dos
sacerdotes" (3, 1-2).
Foi sob o símbolo da
cruz que a colonização ibérica
na América Latina promoveu o genocídio de 30 milhões de indígenas
e o saque das riquezas naturais. Sob a silenciosa cumplicidade da
Igreja católica, mais de 10 milhões de negros foram trazidos da
África, como escravos, para o nosso continente. Com a conivência
das Igrejas cristãs, instalou-se em nossos países o sistema
burguês de dominação capitalista. Portanto, não se trata de
vincular fé e política somente quando se refere à defesa dos
mais pobres.
O fato de que fé
e política estejam sempre vinculados em nossas vidas concretas,
como seres sociais que somos – ou animais políticos , na
expressão de Aristóteles - não deve constituir uma novidade senão
para aqueles que se deixam iludir por uma leitura fundamentalista
da Bíblia, que pretende desencarnar o que Deus quis encarnado. A
fé é um dom do Pai a nós que vivemos neste mundo. No Céu,
nossa fé será vã, pois veremos a Deus face a face, assegura são
Paulo.
Portanto, a fé é um
dom politicamente encarnado,
que tem razão de ser nesta conflitividade histórica na qual
somos chamados, pela graça, a vivenciar o projeto salvífico de
Deus.
Nem mesmo em Jesus
é possível ignorar a íntima relação entre fé e política,
ainda que, para alguns cristãos pareça estranho aplicar certas
categorias Àquele que nos assegura, por sua ressurreição, a vitória,
em última instância, da vida sobre a morte e da justiça sobre a
injustiça. Que Jesus tinha fé o sabemos pelos textos que falam
dos longos momentos que ele passava em oração (Lucas 4, 16; 5,
16; 6, 12). A oração é para a fé o que o adubo é para a terra
ou o gesto de carinho para o casal que se ama. O Evangelho nos
fala até mesmo das crises de fé de Jesus, como as tentações no
deserto (Mateus 4, 1-11; Marcos 1, 12-13; Lucas 4, 1-13) e o
abandono que ele sentiu na agonia no horto das oliveiras (Mateus
26, 36-46; Marcos 14, 32-42; Lucas 22, 39-46).
Há quem insista que
Jesus se restringiu a comunicar-nos uma mensagem religiosa que
nada tem de política. Tal leitura só é possível se reduzimos a
exegese bíblica à pescaria de versículos, arrancando os textos
de seus contextos. Ora, não é só o texto bíblico que revela a
Palavra de Deus, mas também o contexto social, político, econômico
e ideológico, no qual se desenrolou a prática evangelizadora de
Jesus.
Todos nós, cristãos,
somos inelutavelmente discípulos de um prisioneiro político.
Mesmo que na consciência de Jesus houvesse apenas motivações
religiosas, sua aliança com os oprimidos, seu projeto de vida
para todos (João 10, 10), tiveram objetivas implicações políticas.
Por isso ele não morreu na cama, mas na cruz, condenado à pena
de morte.
Já na introdução
de seu evangelho, Marcos mostra
como as curas operadas por Jesus - o homem de espírito mau, a
sogra de Pedro, os possessos, o leproso, o paralítico, o homem de
mão aleijada - desestabilizaram de tal modo o sistema ideológico
e os interesses políticos vigentes, que levaram dois partidos
inimigos - o dos fariseus e o dos herodianos – a fazerem aliança
para conspirar em torno de "planos para matar Jesus" (3,
6). Assim, vê-se que as implicações políticas daação salvífica
de Jesus tornaram-se tão graves e ameaçadoras, que induziram
Caifás, em nome do Sinédrio, a expressar que era "melhor
que morra apenas um homem pelo povo do que deixar que o país todo
seja destruído" (João 11, 50).
E como situar, no
contexto da Palestina do século
I, a questão ideológica? Lucas registra que "Jesus crescia
tanto no corpo como em sabedoria" (2, 52). Era pois um homem
de seu tempo e que, segundo Paulo, "pela sua própria vontade
abandonou tudo o que tinha e tomou a natureza de servo e se tornou
semelhante ao homem" (Filipenses 2, 7). A divindade de Jesus
não transparecia por uma consciência que pudesse emergir
completamente de seu contexto cultural e sobrepairar, onisciente,
acima do tempo e do espaço. Tal possibilidade adequa-se à imagem
grega de deus e não à imagem bíblica.
Jesus era Deus
encarnado e possuía a mesma
natureza do Pai. Segundo o Novo Testamento, "Deus é amor.
Quem vive no amor vive em união com Deus e Deus vive em união
com ele" (1 João 4, 16). Portanto, Jesus era Deus porque
amava assim como só Deus ama. E nisto consiste a nossa imagem e
semelhança com Deus: é divina a natureza de todo amor de que
somos capazes. E o somos como abertura a Deus, que nos habita mais
profundamente do que o nosso próprio eu, e nos faz acolher o próximo.
No entanto, nossa consciência, como a de Jesus, permanece tributária
de nosso lugar social e de nosso tempo histórico. Em Jesus, Deus
acolhe preferencialmente os oprimidos, em cujo lugar social se
encarna e a partir do qual anuncia a universalidade de sua
mensagem de salvação. Não há pois neutralidade. Jesus assume a
ótica e o espaço vital dos pobres. Seu ponto de vista é a vista
situada a partir de um ponto - o da Promessa que ressoa como
bem-aventurança aos que injustamente foram privados da plenitude
da vida.
Há também em Jesus um
vínculo profundo entre sua fé e a ideologia apocalíptica, que o
fez esperar com tanta expectativa a eclosão do Reino de Deus
ainda para a sua geração (Marcos 9, 1). Muitos exegetas estão
de acordo que a crise maior de Jesus foi constatar que não
haveria coincidência entre seu tempo pessoal e seu projeto histórico.
O Reino, que se antecipou em sua vida e ressurreição, exigiria a
Igreja como sacramento histórico capaz de anunciá-lo, testemunhá-lo
e prepará-lo na acolhida do dom de Deus.
Nesse sentido,
a opinião de que a Igreja não deve ser meter em questões
sociais e políticas revela uma soberba ignorância quanto à
natureza e à missão da comunidade fundada por Jesus. Assim como
todo cristão, inclusive o neófito FHC, tem o direito de debater
inclusive questões dogmáticas da Igreja, pois a fé, como ensina
meu confrade Tomás de Aquino, "é um dom da inteligência".
A
ARTE DA TOLERÂNCIA
JUNHO/JULHO
- 1999
Tolerância é a capacidade de
aceitar o diferente. Não confundir com o divergente. Intolerância
é não suportar a pluralidade de opiniões e posições, crenças
e idéias, como se a verdade fizesse morada em mim e todos
devessembuscar a luz sob o meu teto.
Conta a parábola que um pregador
reuniu milhares de chineses para pregar-lhes a verdade. Ao final
do sermão, em vez de aplausos houve um grande silêncio. Até que
uma voz se levantou ao fundo: "O que o senhor disse não é a
verdade". O pregador indignou-se: "Como não é verdade?
Eu anunciei o que foi revelado pelos céus!" O objetante
retrucou: "Existem três verdades. A do senhor, a minha e a
verdade verdadeira. Nós dois, juntos, devemos buscar a verdade
verdadeira".
Só os intolerantes se julgam donos
da verdade. Assim ocorre com Milosevic, ao manter-se intransigente
e não admitir os direitos dos kosovares, e com Clinton, ao
decidir que seus mísseis são o melhor argumento para convencer o
mundo de que a Casa Branca tem sempre razão.
Todo intolerante é um inseguro.
Por isso, aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua
que o mantém à tona. Ele não é capaz de ver o outro como
outro. A seus olhos, o outro é um concorrente, um inimigo ou,
como diz um personagem de Sartre, "o inferno". Ou um
potencial discípulo que deve acatardocilmente suas opiniões.
O tolerante evita colonizar a
consciência alheia. Admite que, da verdade, ele apreende apenas
alguns fragmentos, e que ela só pode ser alcançada por esforço
comunitário. Reconhece no outro a alteridade radical, singular,
que jamais deve ser negada.
Pode-se aplicar ao tolerante o
perfil descrito por são Paulo no Hino ao Amor da 1ª carta aos
Coríntios (13, 4-7): "é paciente e prestativo, não é
invejoso nem ostenta, não se incha de orgulho e nada faz de
inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita
nem guarda rancor. Não se alegra com a injustiça e se rejubila
com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta."
Ser tolerante não significa ser
bobo. Tolerância não é sinônimo de tolice. O tolerante não
desata tempestade em copo d’água, não troca o atacado pelo
varejo, não gasta saliva com quem não vale um cuspe. Ele jamais
cede quando
se trata de defender a justiça, a
dignidade e a honra, bem como o direito de cada um ter seus princípios
e agir conforme sua consciência, desde que isso não resulte em
opressão ou exclusão, humilhação ou morte.
Das intolerâncias, a mais
repugnante é a religiosa, pois divide o que Deus uniu.
Quem somos nós para, em nome de
Deus, decretar se esses são os eleitos e, aqueles, os condenados?
Só o amor torna um coração
verdadeiramente tolerante. Porque quem ama não contabiliza ações
e reações do ser amado e faz da sua vida, um gesto de doação.
ANISTIA
PARA O POVO BRASILEIRO
AGOSTO
- 1999
Comemoram-se 20 anos,
a 28 de agosto, da anistia concedida, pela ditadura militar, a suas
vítimas e algozes. Os cárceres foram abertos em 1979, e os
exilados e banidos puderam retornar ao país.
O decreto do general
Figueiredo não foi um gesto de
benevolência, mas fruto da mobilização de milhares de
brasileiros, sobretudo mulheres lideradas por Therezinha Zerbini,
em São Paulo; Helena Greco, em Minas; Nildes de Alencar Lima, no
Ceará; Heloneida Stuart, no Rio etc. Entre os homens, um nome
merece ser destacado, o do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh,
presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia. Neste país, em matéria
de direitos nada se dá. Tudo se conquista.
Fui beneficiado pela
anistia. Ela zerou meu prontuário
na polícia (mas não no consulado americano, que exige, a cada
solicitação de visto, que eu explique em detalhes por que estive
preso...). Fez-me recuperar os direitos políticos, cassados por
dez anos em 1972.
Ao deixar a cadeia,
em 1973, descobri um curioso paradoxo da justiça castrense: o
frade havia sido cassado, o cidadão não. Eu podia e não podia
votar, algo semelhante ao fenômeno físico do gato de Schrödinger,
que fica morto e vivo ao mesmo tempo. Se o cidadão votasse, o
frade incorreria em crime. Se o frade não votasse, o cidadão
deveria se explicar à Justiça eleitoral. Optei pela única saída:
nas eleições, ausentava-me do domicílio eleitoral e
justificava-me numa agência dos Correios.
A tradição jurídica
brasileira é uma história de
aberrações, como a recente absolvição dos oficiais responsáveis
pelo massacre de Eldorado dos Carajás. E a lei da anistia não é
exceção. Ela assegura a impunidade dos torturadores. O que
encerra uma confissão de culpa do regime militar. O
corporativismo predominou, espécie de 30 moedas pagas a Judas
pelo trabalho sujo. Hoje, a tortura é crime inafiançável. Um
avanço no papel. Na delegacia da esquina, o pau come solto.
A anistia marcou o
processo de abertura política
do país. Abertura formal, limitada pelos interesses das elites,
cuja concepção de democracia ainda exclui os direitos dos
sem-terra, dos sem-teto, dos aposentados e dos desempregados.
Assim como, na colônia, nação e cidadania excluíam índios e
escravos, analfabetos e assalariados.
Outro paradoxo é
constatar que o governo presidido por um ex-cassado e exilado,
Fernando Henrique Cardoso, promove o "fechamento" econômico.
Segundo dados da ONU e do Banco Mundial, o Brasil é campeão
mundial de desigualdade social, com 63,4% da renda nacional em mãos
de 20% da população. Nossa indústria é sucateada pela abertura
irresponsável ao capital estrangeiro; nosso patrimônio público
privatizado, encarecendo os serviços prestados, nem sempre de
qualidade satisfatória; nossa agricultura carece de política
adequada e continua refém do latifúndio.
Apenas 1% dos
proprietários rurais controla
44% das terras do país. São aqueles 6%, entre 22 mil devedores
do Banco do Brasil, que arcam com 80% da dívida e, agora, exigem
anistia fiscal.
Há no Brasil 18,5
milhões de aposentados. Ganham
em média 1,8 salário mínimo. Do total, 11 milhões sobrevivem
com apenas um salário mínimo. De novo, o garrote econômico
aperta o pescoço da maioria. Os aposentados pelo Congresso
Nacional (ex-deputados e senadores) recebem, em média, 57,8 salários
mínimos; pelo poder Executivo federal, 14,4; e pelo Judiciário,
43,7 salários mínimos. Os militares são aquinhoados, na expressão
de Lillian Witte Fibe, com "aposentadorias hereditárias".
Enquanto isso, o
governo reduz o pecúlio dos aposentados da iniciativa privada,
condenando-os à mendicância.
Em julho, a presidência
da República gastou cerca de
R$ 9 milhões por dia com material de consumo (copa, cozinha,
alimentação, combustível, homenagens, roupas de cama etc). Em
junho, foram previstos R$ 16 mil para a compra de frutos do mar,
R$ 5 mil de bacalhau, e R$ 7 mil de queijos e frios. E, no
entanto, o Incra propôs ao MST cesta básica de R$ 20 para cada
família assentada.
A tortura da fome de
47 milhões de brasileiros é mais dramática que o terror de
Estado sob a ditadura. Entre tantos brasileiros, eu esperava que
FHC tivesse um mínimo de sensibilidade para o social. Iludi-me.
Agrava-se o leque de questões sociais: saúde, educação,
emprego, moradia. A reforma agrária só existe em discursos
oficiais. Basta conferir a força da bancada ruralista no
Congresso. E, ainda por cima, velhas raposas da política
brasileira tripudiam sobre a nação ao falar em acabar com a
pobreza. Como se a natureza de suas raízes com o sistema de
exclusão social permitisse que, súbito, se tornassem defensoras
do galinheiro...
A 26 de agosto,
milhares de pessoas estiveram em Brasília para proclamar um
Basta! a essa política que anula, na esfera econômica, as
conquistas políticas simbolizadas pela anistia de 1979. O povo
brasileiro merece ser anistiado de tanta miséria e injustiça!
Quando comandantes
de massacres de agricultores são absolvidos, assim como o foram
os torturadores pela lei de anistia, é hora de regressarmos às
ruas, antes que a falência da democracia nos empurre para um novo
ciclo autoritário. Então, será tarde demais.
HELDER
CAMARA (1909-1999)
SETEMBRO
- 1999
Dom Helder Câmara até
ontem, como diz são Paulo na 1a. Carta aos Coríntios,
conhecia Deus "como por um espelho, de modo confuso".
Agora, conhece-O "face a face".
Meu primeiro contato
com o "arcebispo
vermelho" foi em 1961, quando eu era dirigente, em Minas, da
Juventude Estudantil Católica e ele, bispo responsável pela Ação
Católica Brasileira. No ano seguinte, levou-me para o Rio, para
participar da direção nacional da JEC.
Convivemos durante três
anos. Ele tinha seu escritório
no palácio São Joaquim, no Largo da Glória. Do outro lado da
praça, sob o Outeiro, ficava a sede da CNBB, da qual dom Helder
foi o fundador e, por muitos anos, secretário-geral.
As refeições, ele
tomava num botequim da esquina, entre pedreiros e cachaceiros.
Na Igreja católica,
foi o pioneiro do movimento renovador conhecido por "opção
pelos pobres". Fundou a Cruzada São Sebastião, empenhado em
sua utopia de erradicar as favelas cariocas. Não deu certo.
Instalados em apartamentos, os favelados, instigados pela miséria,
arrancavam torneiras, encanamentos e instalações elétricas para
vender, e muitos sublocavam a moradia em busca de renda.
Dom Helder Câmara
descobriu então que uma só andorinha não faz verão e que a
pobreza não resulta da indolência, mas de "estruturas
injustas", conforme faria constar, em 1968, no documento
episcopal de Medellín.
Durante o Concílio
Vaticano II (1962-1965), o
"bispo dos pobres" promoveu uma articulação entre
cardeais e bispos de todo o mundo em favor da inserção da Igreja
nos setores populares. Propôs ao papa João 23 entregar o
Vaticano e suas obras de arte aos cuidados da UNESCO, como patrimônio
cultural da humanidade, enquanto o papa passaria a morar, na
qualidade de bispo deRoma, numa paróquia da capital italiana. Ele
sonhava com uma Igreja menos imperial e mais parecida com a
comunidade dos pescadores da Galiléia.
No Rio, dom Helder Câmara
contava com o apoio de um grupo
de leigos, homens e mulheres, conhecido como "a família
messejanense" - referência à Messejana, distrito cearense
no qual nasceu. A "família" teve o privilégio de
receber, em forma de cartas, o diário do arcebispo durante o Concílio,
onde ele narra, sem censura, os bastidores do conclave - documento
de inestimável valor a ser divulgado após a sua morte.
Dom Helder nunca
cedeu às pressões de quem
pretendeu torná-lo, como JK, prefeito do Rio, senador e até
presidente da República. Arcebispo de Olinda e Recife, jamais
aceitou morar em palácio. Fez dos fundos de uma igreja sua casa e
ali ele próprio atendia à porta a quem batia. Com certeza,
nenhum brasileirofoi tão biografado. A maioria das obras é
assinada por autores estrangeiros, embora ele tenha conseguido o
milagre de ser profeta em sua própria terra.
Integralista na
juventude, progressista na
idade adulta, dom Helder sempre surpreendeu a quem quis enquadrá-lo
em jargões. Sob a ditadura militar, dialogou com os generais que
o censuravam na mídia e socorreu os perseguidos e os presos políticos
na defesa intransigente dos direitos humanos.
Sua fama no exterior
- entre brasileiros, só comparável à de Pelé - levou a Polícia
Federal, sob o regime militar, a oferecer-lhe segurança. Brasília
temia que ele sofresse um atentado. Dom Helder disse aos
policiais: "Não preciso dos senhores. Já tenho quem cuida
de minha segurança". Os agentes pediram os nomes. Precisavam
de registro nos órgãos oficiais. O bispo não se fez derogado:
"São o Pai, o Filho e o Espírito Santo".
Certa noite
familiares aflitos procuraram
dom Helder. Um homem tinha sido preso e estava sendo espancado na
delegacia. O prelado ligou para o delegado: "Aqui é dom
Helder. Está preso aí o meu irmão". O policial levou um
susto: "Seu irmão, eminência?" Dom Helder explicou:
"Apesar da diferença de nomes,somos filhos do mesmo
pai". O delegado desmanchou-se em desculpas e mandou soltar o
preso irmão do arcebispo. Filhos do mesmo Pai...
Assim era dom Helder,
um homem evangélico, simples, sem firulas episcopais.
E como tinha muita fé,
jamais conheceu o medo. E amou de todo o coração essaIgreja que
tanto quis ver renovada e, no entanto, jamais concedeu-lhe o
merecido título de cardeal.
Faltou este homem na
galeria do Prêmio Nobel da
Paz. Com certeza o futuro cumprirá a justiça de entronizá-lo
entre aqueles que são venerados como santos.
O
FATOR H
OUTUBRO
- 1999
O
evangelho centraliza-se no fator H: o ser humano
é a obra-prima de Deus. A ponto de o próprio Deus assumir, em
Jesus de Nazaré, a condição humana.
Assim,
para o evangelho toda pessoa é
sagrada, vocacionada à comunhão com o Absoluto, morada viva do
Espírito Santo. Contra um ser humano não se admite nenhum gesto,
quanto mais uma estrutura social, de opressão, humilhação ou
exclusão.
Jesus
chega a identificar-se com as vítimas
da injustiça, demonstrando que Deus se coloca não apenas do lado
delas, mas também na pele delas: "Tive fome, sede, estive
doente, preso" (Mateus 25, 35).
Para
quem se considera discípulo de
Jesus, o fator humano deveria ser o alfa e o ômega de todos os
governos, civis e religiosos. Ocorre que o poder tem uma diabólica
força de tornar-se seu próprio fim.
Tornam-se
pedras, no caminho de muitos,
três coisas que deveriam estar direcionadas ao bem: o poder, o
dinheiro e o sexo. Das três, o poder é a mais sedutora, porque
permite morder o fruto do Paraíso e experimentar a ilusória
sensação de ser deus.
Dom
Helder Camara morreu sem ver realizado
o seu sonho: o ano 2000 sem miséria em nosso país. Isso porque
os nossos governos não consideram o fator H. Rege-nos uma
economia virtual. Fala-se de ajuste fiscal, queda dos juros, alíquotas,
moedas podres etc, numa linguagem esdrúxula que o vulgo não
entende e da qual desconfia.
A
cada seis meses temos um novo pacote de
medidas sociais, sem que haja um programa de governo centrado no
social. E nada modifica o panorama visto debaixo da ponte.
Lá
estão os sem-teto, os desempregados,
a escória dessa sociedade que produz uma terrível e temível
aberração: crianças de rua.
Para
que serve uma economia incapaz
de incorporar, no direito ao pão, à saúde e à educação, o
fator humano?
Todos
nós agimos segundo paradigmas que
abraçamos. Os paradigmas da equipe econômica do governo FHC não
são os pobres, os doentes, os famintos, os aposentados e os
desempregados. É o FMI. Governa-se para cumprir metas impostas
por aquela instituição que, em toda a sua história, jamais
arrancou um país da miséria. Pelo contrário, agravou a situação
econômica e social dos países asiáticos. E endividou todos que
recorreram à sua ajuda.
O
governo FHC promete investir R$
33 bilhões em 2000 na área social, de um total de R$ 112 bilhões
previstos para os próximos quatro anos. E vai desembolsar, no próximo
ano, R$ 69 bilhões para pagar juros da dívida federal! Eles
contraem a dívida, nós pagamos, sem que os benefícios cheguem
à população. O povo padece. As elites se locupletam.
Se não
houvesse a Marcha dos 100 mil e
o Grito dos Excluídos, o governo proporia o pacote de medidas
sociais? É óbvio que não. O que demonstra que ele não tem rumo
nem proposta. Age ao sabor das pressões momentâneas. E reage à
base de promessas. "Nada é pra já", como diz um verso
de Chico Buarque. Tudo é para o ano que vem. Parafraseando Stefan
Zweig, o Brasil é mesmo o país do futuro.
Para
a lógica evangélica, é muito
estranho essa idolatria do capital. Da vida só se leva o que
trazemos no espírito. A morte é inelutável. O resto fica aqui e
apodrece. Mas não é fácil sair de si e pensar no outro.
O
amor é fruto de intensa educação.
Mas não consta no currículo de nenhuma escola. A ponto de as
pessoas pensarem que amor é esse fluxo de sentimento gregário
que nos deixa encantado pela presença do outro. Por isso a morte
dói, porque quebra o nosso ego. Os místicos não temem a morte
porque estão possuídos por um Outro a quem anseiam ver face a
face.
O
fator H nasce da capacidade de
amar o outro como semelhante, ainda que haja diferenças de idade,
raça, sexo e condição cultural ou social. Traduz-se em pequenos
gestos da vida cotidiana: o modo de tratar o próximo, a justiça
como princípio, a transparência nas relações, a tolerância
com o diferente, o cuidado em não difamar, caluniar, nem cometer
agressões verbais.
Quem
ama é compassivo, sente-se
ofendido com a injustiça cometida a outrem, impede que seu coração
naufrague em iras e mágoas. Quem ama não inveja e nem se julga
melhor ou pior do que ninguém. Humildade vem de humus, terra.
Quem ama tem os pés na terra. Não se julga dono da verdade, mas
guarda em si uma voraz fome de justiça, que Jesus qualifica de
bem-aventurança.
Todas
as alquimias economicistas podem
encher de brilho a boca de seus oráculos, mas de nada valem se não
enchem de pão a mesa e de paz o espírito da gente. Isso é o que
importa. E o que falta.
A
SEMELHANÇA E A DIFERENÇA
NOVEMBRO
- 1999
Os grupos e movimentos religiosos,
até dentro de uma mesma Igreja, dividem-se entre aqueles que
buscam a semelhança e aqueles que buscam a diferença em relação
a outros grupos eclesiais e/ou sociais.
Ao longo da história das religiões,
os grupos da diferença aparecem com mais nitidez.
Eles constróem sua identidade a
partir da crítica aos demais. A seus fiéis importa mais o que não
são do que o que são. É o caso dos grupos católicos que não
aceitam a teologia da libertação ("que mistura religião e
política"); não acreditam em mortos que retornam
("como os espíritas"), não negam a infalibilidade do
papa e a virgindade de Maria ("como os protestantes"); não
crêem em reencarnações ("como os budistas") etc.
Vale para os grupos evangélicos
que não fumam, não ingerem bebidas alcóolicas, não aceitam a
autoridade do papa, não se põem de joelhos diante de imagens, não
consideram o celibato uma virtude etc.
Para os adeptos da diferença, o
outro é visto pelo que "falta" a ele. Ou melhor,
assumem-se como dotados de uma especial vocação e missão
sobrenaturais, que os faz sentirem-se mais próximos de Deus do
que o comum dos mortais, imersos na cegueira e nas frivolidades da
vida mundana.
Assim era a visão que escribas e
fariseus tinham do grupo de Jesus. Este merecia ser censurado e
marginalizado porque não acatava a autoridade do Templo de
Jerusalém, não cumpria os preceitos de purificação, não
evitava o contato com os "malditos", como pecadores,
prostitutas, aleijados e endemoninhados.
Os adeptos da semelhança encaram
os outros realçando os valores que eles possuem.
A graça de Deus manifesta-se a
todos, talvez os meus olhos é que não percebam o que os outros têm
a me ensinar, pensam eles. Essa foi a atitude de Jesus diante da
mulher cananéia (Mateus 15, 21-28), dos samaritanos, da mulher adúltera,
do modo como os pobres acolhiam o dom de Deus (Mateus 11, 25-26).
O branco tende a olhar o índio por
aquilo que ele, branco, tem a seu alcance carro, telefone,
aparelhos eletrônicos e o índio não tem. É o olho do
colonizador, que em nenhum momento se pergunta: o que têm os indígenas
que eu não tenho? Por que será que entre eles não há homicídios,
dependentes químicos, desprezo às crianças e aos idosos? Por
que os povos indígenas tribalizados não se preocupam em acumular
riquezas e são felizes se dispõem de recursos mínimos?
O fato de eu ser católico não me
torna necessariamente melhor nem pior do que ninguém, a menos que
eu ceda ao farisaísmo, que Jesus criticou com fina ironia ao
descrever a oração do fariseu: "Ó Deus, eu te agradeço,
porque não sou como os outros homens, que são ladrões,
desonestos, adúlteros" (Lucas 18, 11).
Mas, serei um bom cristão? A Bíblia,
em seu realismo, não inferioriza o ser humano diante da grandeza
de Deus. Ao contrário, afirma que nós somos "imagem e
semelhança" de Deus. Mas não somos deuses. Marcados pela
contradição, que a linguagem religiosa chama de pecado, nem isso
nos torna desprezíveis aos olhos divinos, mas suscita o amor de
Deus, que nos enviou seu Filho e nos deu seu Espírito.
Esses nos ensinam a prática da
semelhança pelas virtudes da tolerância, do perdão, da compaixão
e da humildade. Sobretudo do amor, que é a matéria-prima com a
qual se tece a semelhança.
A ótica da diferença é narcísica,
fascista, prepotente. Por ela os europeus julgaram-se no direito
de aniquilar os índios ("que não tinham alma"); os
homens submeteram as mulheres ("seres imperfeitos,
inferiores"); os brancos discriminaram os negros ("não
são como nós"); os nazistas assassinaram os judeus
("que não traziam sangue puro"); a inquisição
supliciou os que não acatavam a autoridade eclesiástica
("os hereges"); os estalinistas fuzilaram os seus críticos
("traidores e revisionistas"); a ditadura militar
torturou e matou seus opositores ("os terroristas").
A ótica da semelhança é autocrítica,
sensata, ecumênica, capaz de apreciar o que o outro tem a
ensinar, a dizer, a revelar em sua singularidade e mistério. O
critério de juízo dessa ótica não é a sua própria identidade
enquanto grupo, mas os valores que a justificam: a vida, os
direitos humanos, a cidadania, a democracia real. Ela acata a
unidade na diversidade e se empenha pela solidariedade na
pluralidade.
Quem exclui, na verdade se exclui.
Mas abraçar a semelhança não é ceder ao desfibramento de quem
não tem princípios. É buscar para todos, sem exceção, os
direitos fundamentais que asseguram a cada um dignidade, justiça,
liberdade e paz.
Nesse sentido, a semelhança marca
diferença em relação àqueles que consideram as desigualdades
sociais tão inevitáveis e naturais como a chuva e os ventos. Mas
não os discrimina. Antes, procura criar uma sociedade onde a vida
seja estruturalmente assegurada, para todos, como dom maior de
Deus e expressão melhor da evolução do Universo.
FELIZ
TERCEIRO MILÊNIO
DEZEMBRO
- 1999
Na noite de 31 de dezembro
para 1º de janeiro, milhares de pessoas irão celebrar um equívoco:
o início do século 21 e do Terceiro Milênio.
Vamos apenas ingressar no ano 2000,
o último do século e do milênio. Basta a elementar aritmética
para saber que um século, que enfeixa 100 anos, não pode ter
somente 99. Nem dois milênios 1999 anos.
A era cristã foi calculada pelo
monge Dionísio, o Pequeno, no século 6. Então, os europeus não
conheciam o zero, já incluído na matemática dos maias e dos
indianos. Portanto, não tendo havido o ano 0, a dezena, a centena
e o milhar só se completam no 10, no 100 e no 1000. Stanley
Kubrick acertou ao intitular seu filme de "2001, uma odisséia
no espaço".
Não faz mal, teremos, este ano, o
réveillon psicológico. Ano que vem, o cronológico.
Para a alegria das agências de
turismo. Aliás, os mais atentos sabem que já ingressamos, há
tempos, no ano 2000 da era cristã.
Dionísio, o Pequeno, errou no cálculo
da data de nascimento de Jesus. O rei Herodes morreu no ano 4 a.C.
E Mateus registra que Jesus nasceu "no tempo do rei
Herodes" (2, 1), provavelmente entre os anos 8 e 6 antes da
era cristã. O que significa que, ao ser assassinado no ano 30,
ele teria de 36 a 38 anos de idade.
Há cem anos, houve o mesmo debate
quanto à mudança do século, a ponto de irritar o fleumático
"The Times". Cansado da polêmica, o jornal inglês deu
um basta, no editorial de 26 de dezembro de 1899: "O século
atual só terminará no dia 1º de janeiro de 1901, não mais
discutiremos este fato. É uma discussão tola e infantil, que não
faz mais que expor o desejo dos cérebros daqueles que teimam em
manter uma posição contrária à nossa."
Nos últimos meses, muitos se viram
diante da pergunta: aonde você vai passar o réveillon? A maioria
passará trabalhando, para que os mais afortunados possam se
divertir. Garçons, copeiros, cozinheiros e empregadas domésticas
verão uma pessoa gastar, em poucos minutos, o que eles não
ganham em um mês de trabalho. Sem falar naqueles que pagaram uma
fortuna para se deslocar de casa para um lugar emblemático em
suas cabeças, como Nova York, Paris ou na ilha Pitt, na Nova Zelândia,
onde o Ano Novo chegará primeiro.
Trafegamos entre a vaidade de, mais
tarde, dizer "eu estive lá", e a ânsia espiritual de
vivenciar um rito de passagem. Esses ritos são raros na vida,
como o nascimento, o ingresso na maioridade e o casamento. No
fundo, vamos sempre em busca de nós mesmos.
Porém, seres narcísicos,
necessitamos de espelhos. De preferência, os olhos alheios.
Não quaisquer olhos, mas os de
nossos pares na condição social, no prestígio e no poder.
Porque já não sabemos ser felizes sem provocar inveja nos
outros. Daí o medo da solidão, sobretudo para quem dependura a
mesquinhez d’alma num momento de alegria.
De que vale mudar de ano, de século
e de milênio sem que haja mudança em nossas vidas? Vivemos
assaltados pelos fantasmas projetados pelo próprio desejo. Amanhã
haveremos de meditar, comer menos, andar mais, dialogar com os
filhos, tratar melhor os subalternos, ler os livros empilhados,
visitar o amigo doente.
Amanhã. Hoje, não. Hoje é a
sofreguidão dos modismos, a administração dos bens, os
atropelos dos sentimentos, as intenções sempre adiadas, as
preocupações que dilaceram o espírito e estragam o prazer de
viver.
Os povos antigos sentiam
necessidade de renovar o mundo periodicamente. Na Mesopotâmia, a
criação do mundo repetia-se ritualmente nas festas do Ano Novo.
Celebrava-se a vitória de Deus sobre o vazio primordial, como
registra o "Gênesis", que descreve, em seus primeiros
capítulos, a passagem do Caos ao Cosmo (mesma raiz grega de cosmético,
o que torna belo).
Sentimos também o desejo de
renovar nossas vidas, como Nicodemos que, ao procurar Jesus de
madrugada, recebeu dele o convite a nascer de novo, pelo Espírito
(João 3, 1-8). Introduzidos inconscientemente no ciclo
morte-ressurreição, somos atraídos pela utopia de que
"amanhã será outro dia", como assegura o poeta.
Réveillon significa, em francês,
despertar na passagem de um dia para o outro. Ainda que a noite de
31 de dezembro seja apenas um momento de festa e confraternização,
que tal deixar que o "bug" ocorra em nossas vidas,
zerando os nossos débitos de amor, e acatar a proposta de Jesus a
Nicodemos?
FELIZ
ANO NOVO AOS CORAÇÕES VELHOS
JANEIRO/FEVEREIRO
- 2000
Feliz Ano Novo aos que praguejam
sobre o solo árido de suas vida sem garimpar alegrias, e aos que
amarram o espírito em teias de aranha sem se dar conta de que os
dias tecem destinos. Também aos que desaprenderam o sorriso e
abandonaram ao olvido a criança que neles residia.
Feliz Ano Novo aos que perambulam
às margens da memória e semeiam ódio no quintal da amargura;
guardam dinheiro na barriga da alma e penhoram a felicidade em
troca de ambições; são náufragos de lágrimas, cegos aos
arquipélagos da esperança, e fantasiam de asas as suas garras,
voejando em torno do próprio ego.
Feliz Ano Novo aos que sonegam
carinho e ainda cobram atenção, alpinistas da prepotência que
os conduz ao abismo; àqueles que, alheios ao que se passa em
volta, ilham-se na indiferença enquanto o mar arde em fogo; e a
quem gasta saliva tentando se justificar por se disfarçar em
pomba e agir como raposa.
Feliz Ano Novo aos que escondem o
Sol no armário, sopram a luz das estrelas e põem espessas
cortinas no limiar do horizonte. Aos que nunca tiveram tempo para
a dança, ignoram por que os pássaros cantam e jamais escutaram
um rumor de anjos.
Feliz Ano Novo aos que bordam iras
com agulhas afiadas e desperdiçam palavras no furor de suas emoções
desabridas; seqüestram dignidades e, como os colecionadores de
borboletas, sentem prazer em espetá-las no interior de cavernas
obscuras.
Feliz Ano Novo aos faquires da angústia
e aos que, equilibrados num fio de sal, trafegam por cima de
montanhas de açúcar. Também aos que jamais dobraram os joelhos
em reverência aos céus e acreditam que a história do Universo
tem início e fim neles.
Feliz Ano Novo às mulheres que
destilam antigos amores em cápsulas de veneno e aos homens que,
ao partir, mostram, às costas, a face diabólica que traziam
mascarada sob juras de amor.
Feliz Ano Novo aos jovens enfermos
de velhice precoce e aos velhos que, travestidos de adolescentes,
bailam aos desafinados acordes do ridículo. E aos que atravessam
o tempo sem se livrar de bagagens inúteis e ainda sonham em
ingressar numa nova era sem tornar carne o coração de pedra.
Feliz Ano Novo aos que já não
sabem conjugar os verbos no plural; agendam sentimentos e estão
sempre atrasados na vida; mendigam admiração e se prostituem
frente à sedução do poder.
Feliz Ano Novo àqueles que dão
"mau-dia" ao acordar, afogam em trevas interiores a
alegria que lhes resta, encaram a vida como madastra de história
infantil. E aos que julgam que laços de família se cortam com a
ponta afiada da língua e ignoram que o sangue escreve letras
indeléveis.
Feliz Ano Novo aos que se apegam ao
poder como a fuligem ao lixo, infantilizados pelas mesuras,
prenhes de mentiras ao agrado do ouvido alheio, solícitos às
providências que assassinam a ética. Sejam também felizes os
que tentam corromper os filhos com agrados materiais e nunca dispõem
de tempo para olhá-los nos olhos do coração.
Feliz Ano Novo aos navegadores
cibernéticos, mariposas de noções fragmentadas,amantes virtuais
que se entregam, afoitos, ao onanismo eletrônico, digitando a própria
solidão.
Feliz Ano Novo aos poetas que não
sabem tragar emoções e engolem com ira palavras que trariam vida
ao mundo. E aos que abominam a arte por desconhecerem que o ser
humano é modelado em barro e sopro.
Feliz Ano Novo a todos que temem a
felicidade ou consideram, equivocadamente, que ela resulta da soma
dos prazeres. E aos que enchem a boca de princípios e se retraem,
horrorizados, diante do semelhante que lhe é diferente.
Feliz Ano Novo às mulheres que se
embelezam por fora e colecionam vampiros e escorpiões nos lúgubres
porões do espírito. E aos homens que malham o corpo enquanto
definha a inteligência, transgênicos prometeus acorrentados ao
feixe dos próprios músculos.
Feliz Ano Novo a todos os
infelizes, aos que o são e aos que se julgam, cegos às
infinitas possibilidades da luz e
das rotas. Sejam todos agraciados pela embriaguez da alegria
divina, abertos ao Deus que os habita e ao amor que, como um rio
cristalino, jamais nega água a quem se ajoelha, reverencia o
milagre da vida e aprende a beber do próprio poço.
MULHER,
USO E ABUSO
MARÇO
- 2000
A 8 de março comemora-se o Dia
Internacional da Mulher. Neste ano, a data coincide com a
Quarta-Feira de Cinzas. Instaura-se o paradoxo. A beleza
defronta-se com o espectro da morte. Após o Carnaval da nudez
despudorada, as cinzas.
A sociedade de consumo, privilégio
de poucos, gira em torno do lucro obtido com a venda de bens e
serviços. E de aplicações financeiras que multiplicam o
dinheiro. Aos olhos da publicidade, o cidadão reduz-se a mero
consumidor movido a desejos. Toda a propaganda transforma-se num
jogo de sedução.
Quanto mais emoções e ilusões,
menos razões e valores, mais vulneráveis nos tornamos aos apelos
consumistas, cuja principal isca é a mulher.
O mercado, onde outrora o homem
figurava como único provedor, exceto para as compras da feira e
das crianças, hoje tem na mulher u’a mantenedora de mão cheia.
Daí a publicidade dirigida à consumidora, à mulher que tem
profissão e renda própria. Na escolha de bens e serviços, ela
agora concentra um poder de decisão equiparável ao do homem.
A propaganda vende quimeras. Não
se compra apenas um sabonete, uma roupa ou uma bebida.
Compram-se sobretudo o sonho de ser
mais uma entre as dez atrizes que se banham com aquele produto, a
fantasia de tornar-se tão sedutora quanto a jovem que entra no
jeans, a aspiração de desfrutar da alegre ociosidade de tanta
juventude a borbulhar no gargalo da garrafa.
Reificada, coisificada, destituída
de mente e espírito, a mulher é reduzida a formas e trejeitos,
sem que os movimentos feministas consigam fazer ouvir sua voz de
protesto. Como um ninho de serpentes, moças retorcem-se em
gemidos no prostíbulo televisivo, enquanto no filme e na
telenovela o adultério é propagado como direito à liberdade.
Nos programas humorísticos, a mulher é imbecilizada e
ridicularizada.
Não só homens fazem da mulher
objeto do desejo. Basta uma olhada nas capas das revistas
femininas. Mulher se compara a mulher na busca de melhor
performance social, sexual e estética. Se, além da roupa, a moda
dita um corpo esquálido como o de uma africana abatida pela fome,
a anorexia impõe-se como salário da vaidade. A medicina cria um
novo ramo para atender ao luxo da ditadura estética, como se o
corpo que foge ao modelo imperante fosse portador de doenças e
anomalias. A ponto de, recentemente, uma mulher Eva na contramão
arrancar costelas para renascer bela no corpo atrofiado.
Essa cultura da glamourização
move as lucrativas indústrias de cosméticos, publicações,
esportes e academias de ginástica. Sua isca é a mulher reduzida
à aparência e destituída de direitos, essência, subjetividade,
idéias e valores. Dócil aos caprichos da publicidade, o corpo
vai à leilão na feira de amostras das revistas maculinas.
Ora, como estranhar que, na esfera
da realidade, as relações sejam conflitivas e até violentas?
Proliferam delegacias de mulheres. Pois não há de ser essa
propagação da mulher como mero objeto de consumo que suscitará
no homem respeito e alteridade. Uma coisa é uma coisa.
Manipula-se, usa-se, descarta-se.
Enquanto a mulher aceitar esse jogo
de marketing, movida pela quimera de ser tão bela quanto a fera,
será difícil cegar os olhos do machismo, tanto o masculino, que
a submete, quanto o feminino, de quem aceita ser submetida e,
portanto, humilhada. A exposição erótica da mulher é uma notória
humilhação do feminino, pois torna a beleza resultado da soma de
atributos físicos exacerbados pela protuberância das formas e os
ditames da moda.
Belas, a meus olhos, são Fernanda
Montenegro, Adélia Prado, Lygia Fagundes Telles, Odete Lara e
Zilda Arns Neumann. Elas correspondem ao que Marcello Mastroianni,
que entendia de mulheres, e com quem estive em 1986, qualificou de
mais fascinante que pode haver numa mulher: a coerência de sua
história de vida. Mas isto não está à venda. É uma conquista.
PÁSCOA,
O LADO AVESSO DA PELE
ABRIL/2000
Uma das
características da pós-modernidade é a redução da cultura a
mero entretenimento e a exacerbação dos sentidos em detrimento
da razão e do espírito. Para estimular o consumismo, utilizam-se
como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar
menos. Isso vale para a publicidade, certos programas televisivos
e até rituais religiosos.
Dissemina-se uma
cultura centrada no epidérmico, na qual há mais estética que ética,
nádegas que cabeças, urros que melodias, ambições que princípios,
devaneios que utopias. Tudo é aqui e agora, a ser devorado por
olhos e ouvidos, o corpo entregue a um frenesi de sensações que
faz do prazer e do sexo simulacros da felicidade e do amor.
Seres relacionais e
racionais, como acentuam os filósofos desde Sócrates, somos
agora reduzidos a seres extrofiados, revirados para fora,
estranhos a nós próprios, como lamentava Kierkegaard, pois nossa
auto-estima passa a depender do que vem de fora da gula e da
antropofagia visual aos arremedos de fama, fortuna e poder.
Páscoa significa
travessia, passagem. Talvez uma das mais difíceis é a que nos
faz percorrer o caminho entre a epiderme e a vida interior, não
para dualizar polaridades, mas para resgatar a unidade. O budismo
tibetano tem razão ao afirmar que, malgrado todo avanço científico
e tecnológico, cada pessoa é ontologicamente a mesma desde que o
símio tomou consciência de que o galho de árvore em sua mão
poderia servir-lhe de arma de ataque e de defesa.
Aristóteles
sintetizou-nos em esferas sensitiva, racional e espiritual, como
unidade que exige equilíbrio. A exacerbação de uma resulta na
atrofia das outras. Só a predominância do espiritual é capaz de
imprimir sensatez "às loucas da casa", como diria o
poeta, evitando o sabor de náusea dos sentidos, descritos por
Sartre, bem como o racionalismo que, ao contrário de Tomás de
Aquino, julga equivocadamente que a razão é a suprema expressão
da inteligência.
Fazer Páscoa em si
mesmo é cultivar a subjetividade. "Beber do próprio poço",
sugerem os místicos. Desnudar-se de ilusões egocêntricas,
jejuar os sentidos, adequar a razão a seus limites, orar e
meditar para poder contemplar.
Somos seres
vocacionados à transcendência. Como dizia Hélio Pellegrino, uma
samambaia desfruta de sua plenitude vegetal. Nós, não; escravos
do desejo, temos buracos no corpo e na alma. É a "gula de
Deus", da qual falava Rimbaud.
Ao deixar de
trilhar as veredas que conduzem ao Absoluto, corremos o risco de
nos perder no acidentado terreno que cotidianiza o absurdo: iras e
mágoas, inveja e competição, medo e, sobretudo, uma incômoda
sensação de não saber exatamente o que fazer desse breve período
de existência.
A Páscoa é
precedida de morte que, emblematicamente, a tradição cristã
qualifica de paixão, um ato de amor, de entrega, que faz refluir
tudo aquilo que dispersa, aliena e ilude. Jesus no túmulo
simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçar
a solidão sem se sentir solitário.
Ressuscitar,
renascer na ousadia de assumir valores altruístas e empenhar-se
para que a justiça seja o fundamento da paz.
Tudo que existe pré-existe,
subsiste e coexiste. É Universo, e não pluriverso. Comunhão e
luz. Não é em vão que os orientais chamam o centro energético
do nosso ser, lá onde se situa o coração, de plexo solar. O silêncio
das galáxias no infinito é um convite para que se saiba fechar
os olhos para ver melhor. E descobrir, no âmago de si, a presença
amorosa de Deus, que impregna o lado avesso da pele e anseia fluir
por todo o corpo, palavras e atos, de modo a fazer de nós seres
vitalmente pascais, cuja existência coincida com a sua essênci.
.
SABER
VIVER, SABER MORRER
MAIO
- 2000
O tema da
vida é, paradoxalmente, uma evocação da morte. Nesta árdua
aventura existencial que não escolhemos e, no entanto, assumimos,
vida e morte não são polos antagônicos, mas faces de um mesmo
rosto: o do sentido que imprimimos à nossa existência. Do mais
íntimo do nosso ser - lá onde tateia a psicanálise - ao mais
social e público - onde balbuciam as ciências políticas - a
dialética da vida e da morte é expressão de nossos anjos e demônios.
De algum modo, cada
um de nós é dois. "Não faço o bem que quero, mas o mal
que não quero", dizia são Paulo (Romanos 7, 19). Sem
regredir ao maniqueísmo e, muito menos, negar a unidade ontológica
do ser humano, é um fato que a ideologia da morte impregna em
nossa existência o amargo sabor do egoísmo. Subvertem a nossa
bondade intencional o Pinochet que nos habita, o Hitler que nos
leva à ira, o aprendiz de ditador que se manifesta em nosso
reduzido universo de poder.
Sim, como é difícil
praticar, na esfera pessoal, a democracia apregoada em público!
Nesse espaço cotidiano de interrelações, toda espécie de
opressão pode brotar: palavras que agridem, omissões que
prejudicam, infidelidades que minam, ambições que poluem a
transparência dos propósitos. Em nome da vida, semeia-se a morte
alheia. Assina-se, assim, a própria sentença, pois a vida só alça
vôo e transcende o próprio eu na medida em que se faz amor para
os outros.
Falar da vida é
erguer-se contra o sistema que estruturalmente se alimenta da
morte. A agonia diária do trabalhador explorado, a morte cívica
dos direitos humanos negados, a marginalização política de quem
não participa da escolha de seus governantes - são sinais da
necrofilia de uma ordem social.
A violência não
está engatilhada apenas no tambor de um revólver. Ela o precede,
engendrando economicamente o contingente de excluídos do sistema.
Nasce da decisão política de arrancar o pão da boca da
coletividade, para que o valor de troca prevaleça sobre o valor
de uso. Revestida de fetiche, a mercadoria entra no ritual dos
lucros e exclui do templo toda a multidão de fiéis que não está
revestida do manto sagrado da propriedade privada dos meios de
produção ou do capital.
Mas não é só de
pão que temos fome. Como diz o poeta cubano Onélio Cardoso, a
fome de pão é saciável, fruto da justiça; voraz e insaciável
é a fome de beleza - essa compulsiva atração que sentimos pela
transcendência, a razão saturada em seus labirintos geométricos,
o sabor estético que, em nosso silêncio, toma emprestado a música,
a letra, a imagem, a forma e as cores, que exprimem o sentido do
nosso existir.
É a sabedoria
brotada da intuição que nos aponta o caminho adequado. É tão
profundamente humana essa experiência de tocar o Inefável, que a
fé denomina Deus.
No amor, o gesto
traduz essa sede, como quem ergue o copo repleto até a borda,
bebe e constata, surpreso, que a sede foi apenas aplacada, jamais
saciada. Pois só a Fonte de Água Viva, à beira do poço de Jacó,
liberta o ser humano das seduções do Absurdo e lhe dá a
conhecer a plenitude do Absoluto. Pois Ele veio para dar a vida a
todos e vida em abundância (João 10, 10).
CARTA
AOS AMIGOS
S. Paulo, 29 de fevereiro de 2000
Querido(a) amigo(a)
Só daqui a quatro anos teremos um
novo 29 de fevereiro. Contudo, pode-se fazer o bem a qualquer
momento.
Como muitos já sabem, todo ano, na
Quaresma, promovo campanha em prol de crianças carentes. Apoio
projetos sérios, que fazem bom uso do dinheiro e, em geral, não
contam com recursos públicos.
Em 1998, inúmeros amigos e amigas
ajudaram a manter o Projeto Cintilar, de São Lourenço (MG),
tocado por uma amiga que já passa dos 70 anos, mas conserva o
mesmo ardor dos 20 em matéria de justiça social. Ano passado, a
beneficiada foi a Casa Vida, que acolhe crianças com aids,
monitorada pelo bravo padre Júlio Lancellotti.
Este ano, a Campanha da
Fraternidade pela primeira vez promovida por sete Igrejas (católica,
luterana, metodista, anglicana, cristã reformada, presbiteriana
unida e ortodoxa siriana) tem como tema "Um novo milênio
sem exclusões". Nessa direção, escolhi como alvo de nossa
solidariedade a Casa Taiguara, em São Paulo, a qual retornei na
manhã de hoje.
Fundou-a meu amigo Daniel Fresnot,
um francês que, sob a ditadura, esteve exilado na FrançaŠ Tem
51 anos, é escritor e empresário, dono da Fibratam (usina de
tambores de fibra) e dotado de um profundo e genuíno espírito
gandhiano ou franciscano, tamanho seu despojamento.
A Casa Taiguara, fundada em 1996,
fica no centro de São Paulo, na rua Vicente Prado 93, Cep:
01321-020, Telefax: 239-3146. Até dezembro de 1999, atendeu 315
crianças e jovens de rua. Desses, 40 retornaram à escola. E mais
da metade já retomaram seus vínculos familiares. Neste início
de ano, 14 foram matriculados na escola estadual da Moóca.
Pasmem: a diretora da escola contou
que tem alunos da 6ª série que dormem sob os viadutos da cidade.
Por que esses meninos(as) vão pra
rua? As principais causas são a violência doméstica (briga
entre casais, embriaguez, estupro da filha etc) e desintegração
da família (perda damoradia devido o preço do aluguel,
desemprego, pai preso e mãe que faleceu etc).
A Casa Taiguara respeita a
liberdade das crianças. Elas entram quando querem e, ali, têm
direito a refeições, banho, lavar roupas, ganhar roupas novas e
dormir. Mas também têm deveres: jamais ingressar com armas,
drogas ou objetos roubados; evitar brigas; eparticipar das
atividades internas, como ajudar na limpeza e freqüentar as aulas
deportuguês e matemática. Há também cursos de eletricidade e
informática. Agora, organiza-se uma biblioteca (aceitam-se doações,
sobretudo de livros infanto-juvenis, dicionários e didáticos). A
cada mês, passam pela casa cerca de 60 crianças e jovens, de 7 a
17 anos.
Os dependentes de drogas são
enviados, por livre vontade, a clínicas de desintoxicação.
Isso custa caro à casa. Cada criança
precisa ficar pelo menos 6 meses na clínica. E a mensalidade é
de
R$ 200,00.
Hoje, trabalham na Casa Taiguara 12
educadores, cada um com salário de R$ 600,00. O custo mensal de
manutenção é cerca de R$ 20 mil. Daniel Fresnot tem conseguido
chegar aos R$ 12 mil E está comprando a casa, ao preço de 120
mil reais. Já conseguiu pagar a metade. Tudo à base de doações.
E atenção: sem um tostão do poder público. Como ele escreveu
em artigo na Gazeta Mercantil (23/11/99) "uma cidade como São
Paulo, que movimenta bilhões de dólares, tem apenas um abrigo
aberto 24 horas para crianças de rua, mantido sem nenhuma ajuda pública
nem de fundações; a Casa Taiguara". Isso é Brasil.
Basta dizer que, para registrar a
obra, Daniel Fresnot levou um ano e meio enredado nas burocracias
municipal e estadual!
Como não convém misturar crianças
e jovens, ele tem outra moradia em vista, no Bexiga, onde pretende
inaugurar a Casa Taiguarinha. A proprietária, em apoio ao
projeto, topou vendê-la pelo mesmo preço da atual: 120 mil.
Falta recolher a grana.
Vale a pena investir neste projeto.
Se você está disposto, remeta sua contribuição, ainda que seja
o que gastaria num jantar em restaurante, em nome da MORADIA
ASSOCIAÇÃO CIVIL, para uma dessas três contas:
… Banco Itaú agência 0048
conta 03348-4
… Banco Bradesco agência 0614
conta 054560
… Banco Banespa agência
0115-13 conta 002526-6
Se necessita de recibo, remeta fax
do comprovante pelo nº (XX 11) 3664-7938 e seu nome e endereço.
Desejo a você uma Páscoa de
profunda alegria no Senhor da justiça, com a minha amizade e paz,
FREI BETTO
CORPO
CÓSMICO
JUNHO/JULHO
- 2000
A festa de
Corpus Christi, no dia 22 de junho, convida os cristãos a
refletirem sobre a materialidade do ser. O cristianismo, malgrado
as tendências espiritualistas, é a religião da concretude:
fatos históricos, como a vida e a morte de Jesus; o pão e o
vinho como símbolos da nossa comunhão com Deus; a
"ressurreição da carne" proclamada no Credo.
Somos um corpo.
Assim como a árvore brota da terra, o corpo humano emerge da
evolução do Universo. Somos todos feitos de matéria estelar.
Nosso corpo tem a idade aproximada de 15 bilhões de anos! Sua
gestação teve início quando o calor da explosão inicial do
Universo ofereceu, a olhos nenhum, a primeira festa cósmica de São
João. Fogueiras acesas no firmamento pontilharam de luz a escuridão
do céu.
Ali, no bojo dos
fornos estelares, o hidrogênio, cozido a temperaturas altíssimas
e diferenciadas, engendrou o magnífico colar da escala atômica.
Todos os átomos do
nosso corpo adquiriram, nas entranhas das estrelas, existência e
consistência. Eram, então, como notas da escala musical que
ainda não encontraram o instrumento capaz de fazê-las ressoar em
música.
Muito tempo depois,
os átomos de nosso corpo ganharam pele nas moléculas e
vestiram-se com a roupa das células, construindo esse ser que
somos. Já não faz sentido falar que somos um corpo dotado de
alma. Menos platônico, São Paulo fala em "corpo
espiritual" (I Coríntios, 15,44).
O corpo contém o
espírito assim como o espírito se consubstancia no corpo. Os
jogos labirínticos dos redutos quânticos fazem a energia pulsar
em matéria e a matéria expressar-se em energia, unidas no
aparente paradoxo das partículas que fluem como ondas e das ondas
que se exibem em partículas.
Faces sutis de um
mesmo perfil coroado pelos elétrons, que brilham em torno do
picadeiro desse fantástico circo onde prótons e nêutrons
produzem, na proporção exata, o espetáculo do ser.
Tudo isso é o
corpo que somos, no qual a carne é tão espiritual quanto o espírito
tão carnal, indivisíveis, dualidade sem dualismo, semente
contida na árvore contida na semente que contém tronco e galho,
seiva, folha e flor, assim como, desde seu início, o Universo nos
continha e, desde sempre, Deus nos enlaça em seu abraço amoroso.
Esse corpo que
somos é o corpo personificado do Cosmo. Teilhard de Chardin
contempla o Universo como Corpo Cósmico de Cristo. "Nele
vivemos, nos movemos e existimos", acentua os "Atos dos
Apóstolos" (17,28).
Agora, em nosso
corpo, o Universo abandona sua bilenar cegueira e ganha olhos em
nossos olhos - espelhos em que ele se contempla e descobre,
maravilhado, que é belo. Daí o nome que provém da mesma raiz
grega de cosmético, aquilo que embeleza.
Somos a Terra em
sua expressão humana. Nós, homens e mulheres, não somos qual o
barco colocado sobre as águas. Somos a água moldada em ondas e
espumas. Filhos da Terra, trazemos em nosso corpo a mesma proporção
de água e sal encontrada neste planeta. Da natureza emergimos e
graças a ela nutrimos a nossa vida, e encontramos em nosso corpo
matas em forma de pêlos, superfícies lisas e ásperas, reentrâncias
e protuberâncias, fendas, canais, fontes e cavernas.
Esse corpo que
somos dorme e sonha, sofre e goza, sabe-se feliz ou contrai-se em
tristeza, esbanja saúde ou fragiliza-se na doença. Sobretudo, é
capaz de algo inacessível a todos os outros animais: sorrir. E,
no entanto, ainda vivemos num mundo submerso em lágrimas. Porque
esse corpo, provido de sentimentos e emoções, guarda rancores,
iras e ódios, embora tão capaz de compaixão, ternura e amor.
Esse corpo que
somos é morada divina. Porém, ainda profanado pelo trabalho
opressivo, abatido pelas guerras, prostituído pela miséria,
excluído pelo Estado de mal-estar social. Corpo feito para se
revestir de dignidade, pleno de direitos.
Corpo copo que
acolhe vinho e carinho e se projeta em palavras, como o pássaro
lança-se ao vento que imprime vôo às suas asas.
Esse nosso corpo,
criado à imagem e semelhança de Deus, é idêntico ao
corpo de Cristo e,
como ele, vocacionado ressurrecionalmente à eterna idade,
lá onde o tempo se
despe do espaço e cede lugar à plenitude do amor.
O
PRIMADO DA VIDA
AGOSTO/2000
Doutrina e
teologia da Igreja católica conheceram consideráveis avanços
neste século, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II
(1962-1965).
Outrora, o
planejamento familiar dependia da abstinência sexual; o carinho
entre o casal era considerado pecado; os protestantes e os judeus,
abominados; o ecumenismo, impensável; o latim, obrigatório nas
missas; a batina, única indumentária social do padre.
Hoje, celebra-se em
língua vernácula; o papa reúne-se em Assis com representantes
de diversas religiões e visita a sinagoga de Roma; deixa-se
fotografar em trajes esportivos, ao esquiar nas férias; e pede
perdão pelo anti - semitismo da Igreja, pelos erros da Inquisição,
pela condenação de Galileu e das teorias de Darwin.
Mesmo a teologia da
libertação, encarada com suspeita na década de 80, incorpora-se
agora aos discursos papais. Basta reler seus pronunciamentos em
Cuba (1998) e no México (1999), condenando o neoliberalismo e a
globalização, bem como seus insistentes apelos em prol da
reforma agrária e da suspensão do pagamento da dívida externa.
A cidadela inexpugnável
é, ainda, a teologia moral. Sobretudo o capítulo concernente à
moral sexual, que proíbe relações sexuais sem finalidade
procriatória; condena o homossexualismo; impede os casais de
segundas núpcias, exceto na viuvez, de acesso aos sacramentos; e
veta o uso de preservativos, malgrado a Aids ter tirado a vida, em
1999, de cerca de 4 milhões de pessoas em todo o mundo.
As autoridades da
Igreja católica, felizmente, demonstram maior tolerância nesse
mundo pluralista pós-moderno, em que não se pode pretender que a
moral preceituada à instituição seja imposta ao conjunto da
sociedade.
Talvez isso
explique o fato de João Paulo II, em sua última visita ao Rio,
ter acolhido no altar cantores que já passaram por vários
casamentos, e alguns prelados sentirem-se à vontade entre figuras
públicas que estão longe de ser exemplo de virtudes na esfera
conjugal.
Frente à ameaça
da Aids, o que o padre Valeriano Paitoni declarou ao repórter
Armando Antenore, na Folha (2/7), em nada destoa do que antes
dissera dom Paulo Evaristo Arns, que o preservativo é "um
mau menor".
O magistério
eclesiástico sabe que é direito e dever dos teólogos pois é
este o carisma deles - debater todas as questões concernentes à
vida de fé, e que "alguns documentos magisteriais não estão
livres de deficiências. Os pastores nem sempre perceberam todos
os aspectos e todas as complexidades de algumas questões"
(Congregação para a Doutrina da Fé, 1990).
A questão sexual
à luz das fontes da Revelação cristã situa-se num contexto
mais amplo, que engloba desde o papel da mulher na Igreja, ainda
hoje impedida de acesso ao sacramento da ordem, até o fim do
celibato obrigatório para os padres seculares, bem como a volta
ao ministério dos que se encontram casados. Como uma lente que se
abre progressivamente, tais temas devem ser tratados com menos
preconceito e mais estudos bíblicos, menos autoritarismo e mais
diálogo com a comunidade dos fiéis, como fez dom Cláudio
Hummes, ao receber, semana passada, entidades solidárias aos
portadores do vírus HIV.
A tradição ou
história da Igreja é uma boa mestra quando não se quer repetir
equívocos. Os irmãos Cirilo e Metódio evangelizaram a Morávia,
no século IX.
Criaram o alfabeto
cirílico, base do russo atual. Traduziram para o eslavo os textos
bíblicos e litúrgicos. Os bispos alemães protestaram, alegando
que Deus só podia ser louvado nas três línguas da cruz:
hebraico, latim e grego.
Cirilo morreu em
869. Metódio foi preso por ordem dos bispos alemães. O papa João
VIII negociou sua libertação em troca do latim na liturgia.
Metódio recusou-se
a abrir mão do eslavo. Dois anos depois, o papa cedeu e, séculos
adiante, João Paulo II exaltaria os dois irmãos na encíclica
Slavorum apostoli.
Condenada pela
Igreja, ela foi queimada viva, a 30 de maio de 1431, como
"herege, relapsa, apóstata e idólatra". Camponesa e
analfabeta, tinha 19 anos, vestia-se de homem e andava armada.
Canonizada em 1920, hoje é venerada nos altares como santa Joana
D¹Arc.
Na encíclica
Mirari vos, de 1832, Gregório XVI condenou o mundo moderno, as
liberdades de consciência e de imprensa, e a separação entre a
Igreja e o Estado. Em 1864, o Syllabus de Pio IX reafirmava a
sentença, repudiando proposições como "o romano pontífice
pode e deve reconciliar-se e chegar a um acordo com o progresso, o
liberalismo e a civilização moderna" (DS 2980).
Continua vigente o
decreto do Santo Ofício de 1949, assinado por Pio XII e
confirmado por João XXIII em 1959, pelo qual todos os católicos
que votarem ou se filiarem a partidos comunistas, escreverem
livros ou artigos filocomunistas estão excluídos dos
sacramentos. "Ninguém pode, ao mesmo tempo, ser bom católico
e socialista verdadeiro" (Pio XI).
Hoje, João Paulo
II admite que "o socialismo continha sementes de
verdade", visita Cuba, utiliza todos os recursos da moderna
tecnologia da mídia, mostra-se encantado com a Internet, louva os
progressos científicos e
técnicos, e
percorre o mundo em viagens aéreas. "Eppur si muove",
malgrado o decreto de 1616, do Santo Ofício, condenando aqueles
que diziam que a Terra se move. Não só o nosso planeta, mas também
os costumes e a hermenêutica dos fundamentos da doutrina cristã.
Jesus não condenou
a mulher adúltera (João 7), nem a samaritana que estava no sexto
marido (João 4), nem deixou de escolher Pedro para chefiar o
grupo apostólico porque ele era casado (Marcos 1). Ao contrário,
cobriu-os de compaixão, revelando-lhes o coração amoroso de
Deus.
É hora de o magistério
católico se perguntar se o preservativo pode ser descartado,
quando se sabe que até mulheres casadas são infectadas por seus
maridos pelo vírus da Aids. O preceito evangélico da vida como
bem maior de Deus e o princípio tomista da legítima defesa não
se aplicariam a tal circunstância?
A
EDUCAÇÃO NO OLHAR
SETEMBRO-OUTUBRO
- 2000
Desde que me
entendo por gente, a escola ensina análise de textos. Graças a
essas aulas, aprendi o ufanismo de "criança, jamais verás
um país como este", conheci a paixão de Tomás Antônio
Gonzaga por sua Marília e deletei-me com os poemas satíricos de
Leandro Gomes de Barros, como esses versos tão atuais, escritos
no início do século: "O Brasil é a panela/ O Estado bota
sal,/ O Município tempera,/quem come é o Federal".
Todo texto tece-se
com os fios do contexto em que foi escrito. Quanto mais próximo
encontra-se o leitor do contexto em que se produziu o texto, tanto
melhor capta o seu pretexto, o significado. Um alemão tem mais
condição de apreender, com a sensibilidade, o universo das obras
de Goethe, assim como um brasileiro sente o perfume da culinária
descrita nos romances de Jorge Amado.
PARA QUE
SERVE A LITERATURA?
Pra que serve
estudar literatura? Entre outras razões, para ler com mais
acuidade o livro da vida, cujos autores e personagens somos nós.
Quem lê, sabe distinguir entre arte e panfleto, jogo de rimas e
poesia, experimentalismo barato e ficção de qualidade. Ler é um
exercício de escuta e ausculta. Por isso, enquanto não chegam
novos avanços tecnológicos, tenho a impressão de que ler livro
na Internet é como ver a foto de um entardecer de maio sobre as
montanhas de Belo Horizonte. Prefiro contemplar a maravilha ao
vivo.
Na adolescência
tive em cine-clubes minha primeira educação do olhar. Após a
exibição do filme, havia debates, onde ficava nítida a diferença
entre obra de arte e mero entretenimento. Cultivava-se a
sensibilidade, saturada pelas sagas melodramáticas dos pastelões
de Hollywood e insaciada diante dos grandes mestres do cinema. A
chatice do humor televisivo jamais produzirá um Chaplin.
Hoje, a imagem
ocupa em nossos olhos mais espaço que o texto, graças à
universalização
da TV. No entanto, a escola parece não se dar conta de que
vivemos numa era imagética. Ou pior, compete com a TV em
arrogante indiferença ou desprezo. Dentro da sala de aula ainda
predomina a narrativa textual, a palavra escrita, a seqüência
demarcada por início, meio e fim, marcas da historicidade. Fora
da escola, recebemos a avalanche de imagens, o vertiginoso
coquetel que embaralha passado, presente e futuro, a narrativa
implodida pelo recorte inconcluso dos clipes, a cultura definhada
em diversão vazia.
A ESCOLA
E A TV
Enquanto a escola
se esforça, ao menos teoricamente, para formar cidadãos, a TV
forma consumidores. Se, hoje, os alunos são mais indisciplinados
que outrora, é porque não podem - ainda - mudar o professor de
canal... Por que não destronar a TV como rainha do lar e levá-la
para a sala de aula? Chegou a hora de nos emanciparmos do tirânico
monólogo televisivo. Pode-se discordar de um jornal e escrever à
seção de cartas dos leitores ou protestar no rádio, ligando
para a emissora. Como queixar-se à televisão, uma concessão pública
utilizada em função de interesses e lucros privados? O melhor
recurso é inverter a relação: ela passa a ser objeto e, nós,
sujeitos.
Imagino os alunos
em sala de aula analisando programas de TV e clipes publicitários;
transformando o jogo de emoções - fotos, sons, movimentos - em
objeto da razão, decodificando os conteúdos dos programas e a
carpintaria da produção televisiva. Atores e produtores de TV
seriam recebidos em salas de aula; a qualidade dos produtos
ofertados conferida; abrir-se-ia o debate sobre a "ética"
implícita nos programas de auditório, onde pobres e nordestinos
são ridicularizados, e na publicidade, que reduz a mulher a seus
atributos físicos como isca de consumo.
Ver TV na escola e
educar o olhar. E, assim, dar importante passo rumo à
democratização
dos meios de comunicação, pois instituições de ensino também
devem ter suas rádios comunitárias e produzir vídeos. Só um
olhar crítico abre-nos o horizonte da cidadania e da democracia
real. Caso contrário, corremos o risco de ver cada vez mais caras
e menos corações, acreditar que a predominância da estética
dispensa ética e crer que os sonhos são apenas casulos que não
geram borboletas da utopia.
O
GRITO DAS AMÉRICAS
Participei em Nova
Iorque, a 12 de outubro, data do "descobrimento" de
nosso Continente, do Grito dos Excluídos das Américas. A cidade
norte-americana foi escolhida por ser a sede da ONU; foco do
noticiário internacional; e palco da Marcha dos Migrantes
Indocumentados, realizada dia 14, e da Marcha Mundial das
Mulheres, a 17.
Uma comissão de representantes das três regiões continentais,
encabeçada pelo argentino Adolfo Perez Esquivel, prêmio Nobel da
Paz, foi recebida na ONU por Gillian Martin Sorensen, assistente
do Secretário Geral e chefe do Departamento de Relações
Internacionais. Do Brasil, presentes Gilmar Mauro, dirigente do
MST, e eu. Kofi Annan ausentou-se para viajar às pressas ao
Oriente Médio, devido ao conflito entre israelenses e árabes.
EXPOSIÇÃO
DE FOTOS
À entrada do edifício
da ONU uma exposição de fotos de Sebastião Salgado exibia o
rosto de crianças pobres do mundo, o que facilitou o nosso diálogo
com Mrs. Sorensen, a quem descrevemos os efeitos nefastos das políticas
do FMI e do Banco Mundial em nossos países. Insistimos para que a
ONU não se torne um joguete nas mãos da política externa dos
EUA.
O grande escândalo deste fim de século e milênio é a carência
em que vivem multidões. No mundo, segundo o Bird, 1,2 bilhão de
pessoas sobrevivem com renda mensal inferior a US$ 30, e outras
2,8 bilhões com menos de US$ 60. Na América Latina, são 224
milhões de pobres e 90 milhões de miseráveis. No Brasil, 32
milhões de miseráveis e 54,1 milhões de pobres.
Chegamos à Lua,
mas não à justiça social. Possuímos telescópios capazes de
desvendar as intimidades do Universo, mas não enxergamos as
necessidades e os direitos do próximo carente. Clonamos seres
vivos, mas não salvamos crianças subnutridas da morte.
Fotografamos quanticamente as partículas subatômicas, mas
ignoramos os anseios mais profundos do coração humano.
FENÔMENO
NOVO
Um fenômeno novo
destaca-se no panorama mundial, evidente nas recentes manifestações
em Nova Iorque, Praga, Washington e Seattle: os movimentos de
solidariedade aos condenados da Terra. O clamor de justiça já não
brota apenas da esquerda ideologizada e partidarizada. Ecoa de
incontáveis movimentos sociais que, articulados por ONGs e
Igrejas, emprestam sua força e sua voz aos que carecem de uma
coisa e outra. Têm como ideologia a ética, como partido a
solidariedade, como sonho o direito de todos aos bens essenciais
à vida, como proposta a denúncia dos responsáveis pelas
desigualdades mundiais e a construção de uma civilização do
amor.
O mundo já não se divide entre capitalismo e socialismo, mas sim
entre o egoísmo neoliberal, centrado na primazia do lucro, e a
compaixão dos que lutam por uma economia solidária. Um e outro
coexistem nos mesmos países. O avanço da tecnologia de comunicações
favorece o entrelaçamento de redes comprometidas com a conquista
de um modelo alternativo de sociedade. O perfil da era pós-capitalista
desenha-se no esforço de dar um fim à exclusão social,
redistribuir a renda, proteger o meio ambiente, priorizar os bens
infinitos, como a ética e a espiritualidade, e não superestimar
os bens finitos.
Os novos militantes da solidariedade não querem apenas
estruturas econômicas mais justas, como o acesso ao mercado
internacional dos produtos dos países pobres. Querem mais: os
bens do espírito. Ao contrário da velha esquerda, são pessoas
espiritualizadas e entusiasmadas (que etimologicamente significa
"repletos do Espírito de Deus"). Como um são Francisco
hodierno, sentem-se irmãos e irmãs de Gaia e da África, dos
camponeses da América Latina e dos indígenas da Lapônia, dos
curdos e dos iraquianos. Sua lógica não se guia pelo maniqueísmo
da política exterior dos EUA, que bloqueia Cuba, anexa Porto Rico
a seu território, intervém na Colômbia e faz vista grossa
quando tropas de Israel ocupam territórios árabes. Guia-se pelo
direito de todos ao bem maior de Deus: a vida.
A queda do socialismo real no Leste europeu coincide com a emergência
do socialismo virtual na Internet. Ela quebra o monopólio das agências
de notícias que fazem eco à versão dos senhores da Terra. Como
o engodo que, em 1992, os EUA tentaram nos impingir, de que os mísseis
lançados contra o Iraque só destruíram prédios. Hoje se sabe
que pelo menos 100 mil civis iraquianos, inclusive mulheres e
crianças, perderam a vida naquela guerra que, aos nossos olhos, não
passava de um jogo de videogame.
CONTINENTALIZAÇÃO
DO GRITO
O Grito dos Excluídos das Américas
continentaliza o Grito dos Excluídos iniciado no Brasil em 1995,
por iniciativa da CNBB e dos movimentos sociais. E revela que também
no coração do império, como é Nova Iorque, há muitas pessoas
e movimentos desiludidos como esse modelo de sociedade que reduz a
liberdade ao direito de escolha entre várias marcas de cerveja ou
modelos de carros. Elas querem mais. Querem a liberdade de
modificar, não silhuetas de corpos envaidecidos, mas o perfil de
uma humanidade que ingressa no Terceiro Milênio arrastando uma
horda de famintos, desempregados e oprimidos.
Em janeiro próximo, esses militantes da esperança já têm
encontro marcado no Fórum Mundial Social, em Porto Alegre.
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