C
I D A D A N I A
Educação
em Direitos Humanos
Frei
Betto
Membro do
conselho da Fundação Sueca de Direitos Humanos
Vivemos, hoje,
sob o paradoxo de popularizar o tema dos direitos humanos é ao
mesmo tempo, deparar-nos com hediondas violações desses mesmos
direitos, agora transmitidos ao vivo, via satélite, para as
nossas janelas eletrônicas. O que assusta e preocupa é o fato
de, entre os violadores, figurarem com frequência instituições
e autoridades – governos, polícias, tropas destinadas a missões
pacificadoras etc. – cuja função é zelar pela difusão,
compreensão e efetivação dos direitos humanos.
No Congresso
Internacional sobre Ensino dos Direitos Humanos, celebrado em
Viena, em 1978, Amadou-Mahtar M’Bow, diretor geral da UNESCO,
sublinhou que “ensinar cada um a respeitar e fazer respeitar os
próprios direitos humanos e os dos demais, e possuir, quando for
necessário, a coragem de afirmá-los em quaisquer circunstâncias,
inclusive nas mais difíceis: tal é o principal imperativo do
nosso tempo”.
A falta de um
programa sistemático de educação em direitos humanos na maioria
dos países signatários de Declaração Universal, favorece que
se considere violação o assassinato, mas não a tortura policial
empregada como método de intimação e investigação; o roubo,
mas não a miséria que atinge milhares de pessoas; a censura, mas
não a intervenção estrangeira em países soberanos; o
desrespeito à propriedade, mas não a sonegação do direito de
propriedade à maioria da população.
Na América
Latina os direitos humanos são sistematicamente violados por
governos e instituições. No Brasil, 4 crianças são
assassinadas por dia; policiais-militares do Rio de Janeiro
chacinaram, só neste ano de 1993, 8 crianças e 21 moradores da
favela de Vigário Geral; 70 índios ianomamis foram massacrados
na Amazônia. Em nosso Continente, o espectro do desrespeito aos
direitos humanos estende-se das selvas da Guatemala ao altiplano
do Peru; do bloqueio norte-americano a Cuba às ditaduras
militares que rasgam Constituições e adotam o desaparecimento de
prisioneiros políticos como método de “saneamento público”.
Caráter da educação
em direitos humanos
Um programa de
educação em direitos humanos deve visar, em primeiro lugar, a
qualificação dos próprios agentes educadores, tanto instituições
– ONG’s, Igreja, governos, escolas, partidos políticos,
sindicatos, movimentos sociais etc. – quanto pessoas. Aqueles
que se dispõem a aplicá-lo devem superar as concepções
idealistas e positivistas de direitos humanos. Numa sociedade
secularizada e pluralista, tais direitos não podem depender
apenas de uma visão religiosa, metafísica ou abstrata, como se
fossem derivados da vontade divina ou da razão natural. Não se
pode esquecer que, em seu advento nos séculos XVII e XVIII, os
direitos humanos surgiram como “expressão das lutas da
burguesia revolucionária, como base na filosofia iluminista e na
tradição doutrinária liberal, contra o despotismo dos antigos
Estados absolutistas”. Uma vez no poder, a burguesia, tendo o
Estado sob seu controle, procurou garantir-se da ameaça
representada pela emergente pobreza coletiva proclamando a
universalidade dos direitos, extensivos a todas as pessoas e
povos, quando de fato não se questionavam a desigualdade de situações
e a mudança mesma das causas da desigualdade.
Ainda hoje em
muitos países a lei consagra os direitos inalienáveis de todos,
sem distinção entre ricos e pobres, confinada porém a mera
formalidade retórica que não assegura a toda a população uma
vida justa e digna. Pouco vale as Constituições de nossos países
proclamarem que todos têm igual direito à vida se não são
garantidos os meios materiais que tornem efetivo esse direito.
Como assinala
Marilena Chauí, “a prática de declarar direitos significa, em
primeiro lugar, que não é um fato óbvio para todos os homens
que eles são portadores de direitos e, por outro lado, que não
é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por
todos. A declaração de direitos no social e no político, afirma
usa origem social e política e se apresenta como objeto que pede
o reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político”.
Os direitos
fundamentais não podem se restringir aos direitos individuais
enunciados pelas revoluções burguesas do século XVIII. A
liberdade não consiste no contratualismo individual que sacraliza
o direito de propriedade e permite ao proprietário a “livre
iniciativa” de expandir seus lucros ainda que às custas da
exploração alheia. Num mundo assolado pela miséria de quase
metade de sua população, o Estado não pode arvorar-se em mero
arbítrio da sociedade, mas deve intervir de modo a assegurar a
todos os direitos sociais, econômicos e culturais. O mero
reconhecimento de um direito inerente ao ser humano não é
suficiente para assegurar seu exercício na vida daqueles que
ocupam uma posição subalterna na estrutura social. Há direitos
de natureza social, econômico e cultural – como ao trabalho, à
greve, à saúde, à educação gratuita, à estabilidade no
emprego, à moradia digna, ao lazer etc. – que dependem, para a
sua viabilização, da ação política e administrativa do
Estado. Nesse sentido, o direito pessoal e coletivo à organização
e atuação política torna-se, hoje, a condição de
possibilidade de um Estado verdadeiramente democrático.
Metas para um
programa educativo
1. Um programa
educativo em direitos humanos deve englobar os direitos da
liberdade (proclamados pelas revoluções burguesas do século
XVIII), os direitos da igualdade (exigidos pelas conquistas
sociais do século XIX) e o direito da solidariedade (reconhecidos
no século XX após a Segunda Guerra). Entre os direitos de
solidariedade destacam-se o direito à paz, ao desenvolvimento, à
autodeterminação, ao ambiente natural ecologicamente
equilibrado, à paridade nas relações comerciais entre países e
à utilização do patrimônio comum da humanidade.
Nos países
subdesenvolvidos, as pessoas têm alguma idéia do que seja
liberdade, mas ainda nem sequer atingiram a modernidade no que diz
respeito à idéia de igualdade. No brasil, o último país a
libertar seus escravos na América Latina, após 320 anos de
escravidão – que hoje perdura de modo oficioso, atingindo cerca
de 16 mil trabalhadores – ainda é parte de nossa culturação não
reconhecer a humanidade do outro. A identidade do brasileiro passa
pelo ter mais e não pelo ser mais. A propriedade é o fundamento
da cidadania. Aquele que se encontra destituído de posses é tido
também como desprovido de direitos.
Nos países
desenvolvidos, com frequência a idéia de liberdade confunde-se
com a de privacidade, legitimando o egoísmo hedonista e o
consumismo opulento, respaldada pela convicção de que são
“naturais” ou inelutáveis desigualdades, entre povos, nações,
etnias, classes e pessoas.
2. A educação
em direitos humanos deve humanizar, o que significa suscitar nos
educandos capacidade de reflexão e de crítica, bem como a aquisição
do saber, o acolhimento do próximo, a sensibilidade estática, a
capacidade de encarar os problemas da vida, o cultivo do humor
etc.
nesse sentido,
cabe ao programa educativo decantar o discurso consagrador das
injustiças, das desigualdades e das discriminações. Deve
permitir ao educando o confronto com as diferentes representações
do real. Como afirma o Cardeal Paulo Evaristo Arns, de São Paulo,
“a educação é sempre ideológica e o ensino politicamente
neutro é apenas um mito da filosofia liberal, a qual exclui as
atividades políticas das demais atividades da sociedade civil”.
3. Como recomenda
Paulo Freire, a educação em direitos humanos deve ser dialógica,
adotando o educador posturas que levem à colaboração, união,
organização, síntese cultural e reconstrução do conhecimento.
Deve-se superar comportamentos comuns na educação tradicional,
tais como sedução, manipulação, concorrência, invasão
cultural e imposição de valores e de conhecimentos. Segundo Antônio
Carlos Ribeiro Fester, um dos mais importantes educadores em
direitos humanos no Brasil, o programa deve adotar a pedagogia da
indignação e jamais do conformismo. As metodologias devem
induzir os educandos à participação social; à contradição;
à visão universal que supere etnias, classes, nações etc;
estimulando a criatividade, fortalecendo os vínculos com a
comunidade e tendo como referência a realidade na qual se vive
hoje.
4. Direitos
humanos não são um tema específico. Os princípios dos direitos
humanos devem estar presentes em todas as disciplinas
curriculares. Como observa Fester, “não se trata de separar
quinze minutos de uma aula, uma aula do mês ou um trecho do conteúdo
para tratar a questão dos direitos humanos. Estes devem ser o
ponto de chegada do planejamento escolar, estar presentes em toda
a vivência curricular”.
5. A metodologia
deve abranger a noção dos direitos humanos, o conhecimento de
seus documentos fundamentais e o resgate da história recente do
respeito e do desrespeito aos direitos humanos no mundo; dos
horrores do nazismo aos Esquadrões da Morte da América Latina,
do racismo emergente hoje na Europa à matança de crianças no
Brasil.
A educação em
direitos humanos, segundo Fester, compreende as seguintes etapas:
sensibilização, problematização, construção coletiva da
interdisciplinariedade, acompanhamento sistemático do processo
nas escolas e formação permanente dos professores. Os educandos
devem trabalhar nos temas da conceituação e do histórico dos
direitos humanos, relacionando-os sempre com os problemas locais
da comunidade e da nação.
6. A educação
em direitos humanos é uma educação para a justiça e a paz. Uma
pessoa só pode dimensionar bem seus próprios direitos na medida
em que reconhecer os direitos alheios, sobretudo aqueles que são
fundamentais à sobrevivência. Assim, no centro do processo pedagógico
devem estar, como eixo, aqueles que mais têm os direitos
essenciais negados: os pobres e as vítimas da injustiça
estrutural. Nessa linha, assumir os direitos dos pobres é, com
frequência, estar em chique com os interesses daqueles que
consideram os lucros do capital privado acima dos direitos
coletivos ou as razões de Estado acima do direito individual.
Essa dimensão conflitiva do processo educativo deve ser encarada
com parte mesma de uma pedagogia que não quer apenas
conscientizar, mas formar agentes transformadores, cidadãos
empenhados na erradicação das injustiças e na construção de
um mundo verdadeiramente humano.
7.
A metodologia adequada à educação em direitos humanos é a da
educação popular inspirada no método Paulo Freire. Ela
considera o educando o centro do processo educativo e, indutiva,
vai da prática à teoria para retomar e melhor qualificar a prática.
Parte de casos concretos e utiliza recursos como dramatização,
simulação de casos, papelógrafo, desenhos, jogos, pesquisas e,
sobretudo, valoriza a narrativa oral e existencial dos educandos.
Ela se direciona do local ao internacional; do pessoal ao social;
do detalhe ao geral; do fato ao princípio; do biográfico ao histórico.
O educador não educa; ajuda a educar e, ao fazê-lo, se predispõe
à reeducação. E todo o processo educativo tem como ponto de
partida e de chegada ação dos sujeitos educados (educandos e
educadores) na transformação da realidade em que se inserem.
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