A
BÍBLIA PELA ÓTICA FEMININA
Frei
Betto
Menina,
a americana Elizabeth Cady Stanton via seu pai, juiz, atender às
mulheres que o procuravam. Queixavam-se dos abusos dos maridos que
gastavam em bebedeiras o que elas ganhavam como lavadeiras e
hipotecavam suas casas ou vendiam suas terras sem sequer consultá-las.
0 juiz Cady lamentava, mas a lei defendia os maridos. O casamento
fazia, dos dois, um, e este era o marido, que tinha o direito de
dispor do salário da mulher e dos bens da família.
A
menina marcava as páginas onde estavam impressas aquelas leis
absurdas com a intenção de, mais tarde, arrancá-las. 0 pai
explicou-lhe que era inútil, havia muitos outros livros com as
mesmas leis. quisesse mudá-las, teria de convencer as pessoas que
faziam leis.
Adulta,
Elizabeth descobriu que também a Bíblia era usada contra as
mulheres. Pastores e padres deduziam da Palavra de Deus que a
mulher fora responsável pela introdução do pecado no mundo e
que, por vontade divina, devia ser submissa a seu marido. Embora
inspirada por Deus, a Bíblia foi escrita por homens dentro de uma
cultura patriarcal. Elizabeth convocou um grupo de mulheres
familiarizadas com o hebraico e o grego, e capacitadas em teologia
e ciências afins. O resultado foi a publicação da "Bíblia
das mulheres", dentro de uma hermenêutica feminista.
Lida
por esta ótica, a Bíblia revela a igualdade entre homens e
mulheres e denuncia a leitura machista que pretende derivar dos
desígnios de Deus instrumentos de dominação, como a interdição
de acesso das mulheres ao sacerdócio e ao episcopado, e a
preponderância masculina sob o pretexto de que Eva foi criada a
partir da costela de Adão - quando a natureza não deixa dúvidas
de que todo homem nasce do corpo de uma mulher.
A
Bíblia exalta mulheres ignoradas pela ótica patriarcal: Débora,
louvada por sua coragem e sagacidade militar (Juízes 4), Hulda,
por sua pedagogia de se fazer entender pelos simples e poderosos
(2 Reis 22); Vasti,por não aceitar que as esposas sejam
propriedades de seus maridos (Ester 1, 2-22); Maria, por proclamar
a expectativa do Salvador como uma nova ordem onde os poderosos
serão derrubados de seus tronos e os opulentos despedidos com as
mãos vazias (Lucas l, 52-53).
0
evangelista Mateus aponta, na árvore genealógica de Jesus; cinco
mulheres. Tamar, Raab, Rute e Maria; e de modo implícito, a mãe
de Salomão, aquela "que foi mulher de Urias". Não é
bem uma ascendência da qual um de nós haveria de se orgulhar.
Viúva,
Tamar disfarçou-se de prostituta para seduzir o sogro e gerar um
filho do mesmo sangue de seu falecido marido. Raab era prostituta
em Jericó, onde favoreceu a tomada da cidade pelos israelitas.
Rute, bisavó de Davi, era moabita, ou seja, uma pagã aos olhos
dos hebreus. A "que foi mulher de Urias", Betsabéia,
foi seduzida por Davi enquanto o marido dela guerreava. E Maria
era a mãe de Jesus, que também não escapou das suspeitas
alheias, pois apareceu grávida antes mesmo de se casar com José.
Em
sua atividade pública, Jesus se fez acompanhar pelos Doze e por
algumas mulheres: Maria Madalena; Joana, mulher de Cuza, o
procurador de Herodes; Susana e várias outras. Portanto, o grupo
de discípulos de Jesus não era propriamente machista.
Além disso, Jesus freqüentava, em Betânia, a casa de
suas amigas Marta e Maria, irmãs de Lázaro.
Os
evangelhos registram vários encontros de Jesus com mulheres. O
mais intrigante deles é o seu diálogo com a samaritana à beira
do poço de Jacó. Jesus sabia que ela já havia tido seis
maridos. Nem por isso
fez-lhe um sermão sobre a fidelidade matrimonial ou às penas
reservadas a quem se entrega à rotatividade conjugal.
Jesus viu mais fundo.
Percebeu que a samaritana buscava, sedenta, o amor em espírito
e verdade. Por isso,
concedeu-lhe a graça de ser a primeira pessoa a quem se revelou
como Messias. Só
Deus, que é amor, seria capaz de saciar aquele coração
peregrino.
O
primeiro milagre de Jesus foi para atender ao pedido de uma
mulher, Maria, sua mãe, preocupada com a falta de vinho numa
festa de casamento em Canã.
Jesus
curou várias mulheres, como a aleijada da sinagoga; a filha de
Jairo; a que, há 12 anos, sóbria de hemorragia, filha da Cananéia
que deu testemunho de
profunda fé etc. Jesus
curou também a sogra de Pedro.
Escolhido
por Jesus para ser o primeiro Papa, Pedro era casado.
Lançou-se
recentemente nos EUA uma edição da Bíblia “politicamente
correta”, onde, por exemplo, Deus é tratado por Ele/Ela.
Ora, Elizabeth Cady Stanton nasceu nos EUA em 1815 e a “Bíblia
das Mulheres” foi publicada entre 1895 e 1898. A mídia não tem
memória, mas percebe que, agora, se multiplica o número de
mulheres dedicadas a uma leitura feminista da Palavra de Deus.
Em
nosso país, destacam-se Ana Flora Anderson, Teresa Cavalcanti,
Wanda Deifelt e Athalya Brenner.
O Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) há anos forma, pelo
Brasil afora, homens e mulheres dos setores populares em novos métodos
de interpretação bíblica, pondo fim ao monopólio clerical e
machista.
No
Brasil colonial — como narra Dias Gomes na peça “O Santo Inquérito”
— Branca Dias foi encontrada, na Paraíba, com uma edição da Bíblia
em língua vernácula, o que era proibido pela Inquisição.
Só eram aceitas as edições em latim, que só o clero
entendia. Branca Dias
foi condenada. Mais
tarde se constatou que era analfabeta...
Descobrir
que a mulher ocupa na Bíblia lugar e importância iguais aos do
homem é questionar as igrejas que, às vésperas do terceiro milênio,
insistem em reservar aos homens as funções de poder.
E, por tabela, subverter os valores desta sociedade que
considera a direção política um talento masculino e a questão
social um derivativo da primeira dama, e ilustra sua publicidade
televisiva e as páginas das revistas com mulheres que se prestam
a ser reificadas, reduzidas ao mero apelo de consumo material e
simbólico e, no entanto, queixam-se quando tratadas pelos homens
como objetos descartáveis.
Se
Ivo viu a uva, agora Eva se vê como matriz da vida.
Só resta às mulheres combater todas as formas de
discriminação machista.
Frei Betto (Carlos
Alberto Libânio Christo),(1945) quando jovem frade
dominicano esteve envolvido com as lutas revolucionárias de seu
tempo, com a política e a arte. Militante de esquerda,
simpatizante da luta armada, se dividia entre os estudos de
filosofia, o jornalismo e a assistência de direção de José
Celso Martinez Corrêa na histórica montagem de O rei da vela,
pelos idos de 1967. É escritor consagrado, com inúmeros
livros de sucesso, dentre eles Fidel e a Religião, coletânea
de entrevistas com o líder cubano. O texto acima foi
publicado no jornal "O Globo", de 28-07-2000.
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