Valores
de Uma Nova Civilização
Valores
qualitativos
Igualdade e
Fraternidade
A democracia como
valor imprescindível
Socialismo como
alternativa
Propomos, nestas páginas, alguns temas
possíveis para o debate em torno da questão :
« Princípios e valores da nova sociedade ».
Não se tratam de axiomas,
mas de hipóteses de trabalho e sugestões de reflexão.
Nós,
do Fórum Social Mundial, acreditamos em certos
valores, que
iluminam o nosso projeto de transformação social e inspiram a
nossa imagem de um novo mundo possível.
Aqueles que se reúnem em Davos - banqueiros, executivos e
chefes de Estado, que dirigem a globalização neoliberal (ou
globocolonização) - também defendem valores. Não
devemos subestimá-los, pois
eles acreditam em três grandes valores e estão dispostos
a lutar com todos os meios para salvaguardá-los – até guerra,
se for preciso. Três importantes
valores, contidos no coração da civilização capitalista
ocidental, na sua forma atual.
Os três grandes valores do credo de Davos:
o dólar, o
euro e o yen. Estes
três não deixam de ter suas contradições,
mas, juntos, constituem
a escala de valores neoliberal globalizada.
A
principal característica comum destes três
valores é a sua natureza estritamente quantitativa: eles não conhecem o bem e o mal,
o justo e o injusto. Conhecem
apenas quantidades, números,
cifras: um,
cem, mil,
um milhão, um
bilhão. Quem
tem um bilhão – de dólares, euros ou yens – vale mais do que
quem tem só um milhão, e muito mais do que aquele que só tem
mil. E, obviamente,
aquele que não tem nada, ou quase nada, nada vale na escala de
valores de Davos. É como se não existisse.
Está fora do mercado e, portanto, do mundo civilizado.
Juntos,
os três valores constituem uma das divindades da religião econômica
liberal: a Moeda ou, como se dizia em aramaico, Mamon.
As outras duas divindades são o Mercado e o Capital.
Trata-se de fetiches ou ídolos,
objetos de um culto fanático e exclusivo, intolerante e
dogmático. Este fetichismo da mercadoria, segundo Marx ; ou
esta idolatria do mercado - para utilizar a expressão dos teólogos
da libertação Hugo Assmann e Franz Hinkelammert - e do dinheiro
e do capital, é um
culto que tem suas igrejas (as Bolsas de Valores); seus Santos Ofícios
(FMI, OMC etc.) ; e a perseguição aos herejes (todos nós
que acreditamos em outros valores). Trata-se de ídolos que,
como os deuses cananeus Moloch ou Baal, exigem terríveis
sacrifícios humanos: no Terceiro Mundo, as vítimas dos planos de
ajuste estrutural, homens,
mulheres e crianças sacrificados no altar do fetiche Mercado
Mundial e do fetiche Dívida Externa.
Um
corpo impressionante da regras canônicas e princípios ortodoxos
serve para legitimar e santificar esses rituais sacrificiais. Um
vasto clero de especialistas e gestores explica os dogmas do culto
às multidões profanas, mantendo
as opiniões heréticas longe da esfera pública. As regras éticas
desta religião são as já estabelecidas, há dois séculos, pelo
teólogo econômico Sir Adam Smith: que cada indivíduo busque, da maneira mais implacável possível,
seu interesse egoísta, sem prestar atenção a seu próximo,
e a mão invisível do deus-mercado cuidará do resto, trazendo
harmonia e prosperidade a toda a nação.
Esta
civilização do dinheiro e do capital
transforma tudo em mercadoria
- a terra, a água, o ar, a vida, os sentimentos, as convicções
-, que se vende pelo melhor preço. Até as pessoas ficam
submissas à mercadoria, pois subverte a relação humanitária
pessoa-mercadoria-pessoa. Visto esta camisa de algodão, que é
uma mercadoria, para humanizar minha convivência social, pois
seria estranho que eu comparecesse sem camisa no trabalho ou num
encontro entre amigos. Agora, a relação predominante é
mercadoria-pessoa-mercadoria. A grife da camisa que visto me
imprime valor. Em outras palavras, se chego à sua casa de ônibus
ou bicicleta, tenho um valor Z. Se chego de BMW, tenho um valor A.
Sou a mesma pessoa e, no entanto, a mercadoria que me reveste me
imprime mais ou menos valor, reificando-me.
Já
no século XIX, um crítico da economia política havia previsto,
com lucidez profética, o mundo de hoje: «Chegou, enfim, um tempo
em que tudo o que os seres humanos haviam considerado inalienável
tornou-se objeto de troca, de
tráfico e pode alienar-se. É o tempo em que as coisas mesmas,
que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas
nunca vendidas; conquistadas,
mas nunca compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência
etc – em que tudo, enfim, passou para o comércio. É o
tempo da corrupção geral, da venalidade universal
ou, para falar
em termos de economia política, o tempo em que qualquer coisa,
moral ou física, tendo-se tornado valor venal, é levada ao
mercado para ser apreciada por seu valor adequado». [1][1]
Face
a esta civilização da mercantilização universal, que afoga
todas as relações humanas nas « águas geladas do cálculo
egoísta »,[2][2]
o Fórum Social Mundial representa, antes de tudo, uma recusa :
« o mundo não é uma mercadoria » ! Isto é, a
natureza, a vida, os direitos do homem, a liberdade, o amor, a
cultura, não são mercadorias. Mas o FSM encarna também a aspiração
a um outro tipo de civilização, baseada em outros valores que não
o dinheiro ou o capital. São dois projetos de civilização e
duas escalas de valores que se enfrentam, de forma antagônica e
perfeitamente irreconciliável, no umbral do século XXI.
Quais
os valores que inspiram este projeto alternativo? Trata-se de
valores qualitativos, éticos e políticos, sociais
e culturais, irredutíveis à quantificação monetária. Valores
que são comuns à maior parte dos grupos e das redes
que constituem o grande movimento mundial contra la
globalização neoliberal.
Podemos
partir dos três valores que inspiraram a Revolução Francesa de
1789 e, desde então, estão presentes em todos os movimentos de
emancipação social da história moderna: Liberdade, Igualdade e
Fraternidade. Como assinala Ernst Bloch em seu livro Direito
Natural e Dignidade Humana (1961), estes princípios,
inscritos pela classe dominante no frontão dos edifícios públicos
na França, nunca foram por ela realizados. Na prática, escrevia
Marx, eles foram, muitas vezes, substituídos por Cavalaria,
Infantaria e Artilharia... Fazem parte da tradição subversiva do
inacabado, do ainda não-existente, das promessas que não foram
cumpridas. Possuem uma força utópica concreta, que « vai
bem além do horizonte burguês », uma força de dignidade
humana que aponta para o futuro, para a « marcha de cabeça
levantada » da humanidade, para o socialismo.[3][3] Se examinarmos de perto estes valores, do ponto de
vista das vítimas do sistema, descobriremos seu potencial
explosivo e sua atualidade no combate atual contra a mercantilização
do mundo.
O
que significa « liberdade »?
Antes de tudo, liberdade de expressão, de organização,
de pensamento, de crítica, de manifestação – duramente
conquistada por séculos de lutas contra o absolutismo, o fascismo
e as ditaduras. Mas,
também, e hoje mais do que nunca, a liberdade em relação a uma
outra forma de absolutismo: a ditadura dos mercados financeiros e
da elite de banqueiros e empresários multinacionais que impõem
seus interesses ao conjunto do planeta. Uma ditadura imperial –
sob a hegemonia econômica, política e militar dos Estados Unidos, única superpotência
global - que se esconde por detrás das anônimas e cegas
« leis do mercado », e cujo poder mundial é bem
superior ao do Império Romano ou dos impérios coloniais do
passado. Uma ditadura
que se exerce pela própria lógica do capital,
mas que se impõe com a ajuda de instituições
profundamente antidemocráticas, como o FMI ou a OMC, e sob a ameaça
de seu braço armado (a OTAN).
O conceito de « libertação nacional » é
insuficiente para dar conta deste significado atual da liberdade,
que é, ao mesmo tempo, local, nacional e mundial,
como o demonstra tão bem este movimento profundamente
original e inovador que é o zapatismo.
Uma
das grandes limitações da Revolução Francesa de 1789 foi ter
excluido as mulheres da cidadania. A feminista republicana Olympe
de Gouges, que
escreveu a « Declaração dos direitos da mulher e da cidadã »,
foi guilhotinada em 1793. O conceito moderno de liberdade não
pode ignorar a opressão de gênero que recae sobre a metade da
humanidade, e a importãncia capital da luta das mulheres por
sua libertação. Neste combate tem particular significado o
direito das mulheres de disporem de seu próprio corpo.
Igualdade e
Fraternidade
O
que significa « igualdade »? Nas primeiras Constituições
revolucionárias inscreveu-se a igualdade perante a lei. Esta é
absolutamente necessária - e longe de existir na realidade do
mundo de hoje – mas bem insuficiente. O problema de fundo é a
monstruosa desigualdade entre o Norte e o Sul do planeta e, dentro
de cada país, entre a pequena elite que monopoliza o poder econômico
e os meios de produção, e a grande maioria da população, que
vive de sua força de trabalho - quando não está no desemprego,
e excluída da vida social. As cifras são conhecidas: quatro
cidadãos dos EUA – Bill Gates, Paul Allen, Warren Buffett e
Larry Ellyson - concentram em suas mãos uma fortuna equivalente
ao Produto Interno Bruto de 42 países pobres, com uma população
de 600 milhões de habitantes. O sistema da dívida externa, a lógica
do mercado mundial e o poder ilimitado do capital financeiro levam
a uma agravação dessa desigualdade, que se agravou nos últimos
20 anos. A exigência de igualdade e de justiça social - dois
valores inseparáveis – inspira os vários projetos sócio-econômicos
alternativos que estão na ordem do dia. Do ponto de vista de uma
perspectiva mais ampla, isso implica um outro modo de produção e
distribuição.
A
desigualdade econômica não é a única forma de injustiça na
sociedade capitalista liberal:
a perseguição dos « indocumentados » na
Europa ; a exclusão dos descendentes de escravos negros e
indígenas nas Américas ; a opressão de milhões de indivíduos
que pertencem às castas de « intocáveis »
na Índia ; e tantas outras formas de racismo ou discriminação
por razões de cor, religião ou língua, são onipresentes do
Norte ao Sul do planeta. Uma sociedade igualitária significa a
radical supressão destas discriminações. Ela implica também
uma outra relação entre homens e mulheres, rompendo com
o mais antigo sistema de desigualdade da história humana -
o patriarcado -, responsável pela violência contras as
mulheres, por sua marginalização na esfera pública, e por sua
exclusão do emprego. A grande maioria de pobres e desempregados
no mundo são mulheres.
O
que significa « fraternidade »? É a tradução
moderna do velho princípio judaico-cristão: o amor ao próximo.
É a substituição das relações de competição,
concorrência feroz, guerra de todos contra todos - que
fazem do indivíduo, na sociedade atual, um homo homini lupus
(um lobo para os outros seres humanos)
-, por relações de cooperação, partilha, ajuda mútua,
solidariedade. Uma solidariedade que inclui só os irmãos («frater »,
em latim), mas também as irmãs, e que supera os limites da família,
do clã, da tribo, da etnia, da comunidade religiosa, da nação,
para se tornar autenticamente universal, mundial, internacional.
Em outras palavras: internacionalista,
no sentido que deram a este valor gerações inteiras de
militantes do movimento operário e socialista.
A
mundialização neoliberal produz e reproduz os conflitos tribais
e étnicos, as guerras de “purificação étnica », os
expansionismos belicosos, os integrismos religiosos intolerantes,
as xenofobias. Tais pânicos
induzidos pelo sentimento de perda de identidade são o
outro lado da mesma medalha,
o complemento inevitável da globalização imperial. A
civilização com que sonhamos será “um mundo no qual cabem
muitos mundos” (segundo a bela fórmula dos zapatistas), uma
civilização mundial da solidariedade e da diversidade.
Face à homogeneização mercantil e quantitativa do mundo,
face ao falso universalismo capitalista, é mais do que nunca
importante reafirmar a riqueza que representa a diversidade
cultural, e a contribuição única e insubstituível de cada
povo, de cada cultura, de cada indivíduo.
A democracia como
valor imprescindível
Há
outro valor que, desde 1789, é inseparável dos outros três: a
democracia. Não só no sentido limitado que este conceito político
tem no discurso liberal/democrático - a livre eleição de
representantes cada tantos anos –, na realidade deformada e
viciada pelo controle que exerce o poder econômico sobre os meios
de comunicação. Esta democracia representativa - também fruto
de muitas lutas populares, e constantemente ameaçada pelos
interesses dos poderosos, como o demonstra a história da América
Latina de 1964 a 1985 – é necessária mas insuficiente.
Necessitamos de formas superiores, participativas, que permitam à população exercer diretamente seu poder de
decisão e controle – como no caso do orçamento participativo
do município de Porto Alegre e do estado do Rio Grande do Sul.
O
grande desafio, do ponto de vista de um projeto de sociedade
alternativa, é estender a democracia para o terreno econômico e
social. Por que permitir, neste campo, o poder exclusivo de uma
elite que recusamos na área política? Uma democracia social
significa que as grandes opções sócio-econômicas, as
prioridades de investimentos, as orientações fundamentais da
produção e da distribuição, são democraticamente discutidas e
decididas pela própria população, e não por um punhado de
exploradores ou pelas supostas « leis do mercado »
(ou, ainda, variante que já foi à falência, por um Birô Político
onipotente).
A
estes grandes valores, produto da história revolucionária
moderna, devemos
acrescentar um outro, que é ao mesmo tempo o mais antigo e o mais
recente: o respeito
ao meio ambiente. Encontramos
este valor no modo de vida das tribos indígenas das Américas e
das comunidades rurais pré-capitalistas de vários continentes,
mas também no centro do moderno movimento ecológico.
A mundialização capitalista é responsável por uma
destruição e envenenamento acelerados – em crescimento geométrico
– do meio ambiente: poluição
da terra, do mar, dos
rios e do ar; « efeito
de serra », com conseqüências catastróficas;
perigo de destruição da capa de ozônio, que nos protege
das irradiações ultravioleta mortais; aniquilamento das
florestas e da biodiversidade. Uma civilização da solidariedade
não pode ser senão uma civilização da solidariedade com a
natureza, porque a espécie humana não poderá sobreviver se o
equilíbrio ecológico do planeta for rompido.
Socialismo como
alternativa
Esta
lista não tem nada de exaustiva.
Cada um poderá, em função de sua experiência própria e
de sua reflexão, acrescentar outros. Como resumir em uma palavra
este conjunto de valores presentes, de uma forma ou de outra, no
movimento contra a globalização capitalista, nas manifestações
de rua de Seattle a Gênova, e nos debates do Fórum Social
Mundial? Creio que a expressão
civilização da solidariedade é uma síntese
apropriada deste projeto alternativo.
Isto significa, não só uma estrutura econômica e política
radicalmente diferente, mas,
sobretudo, uma sociedade alternativa que valorize as idéias de
bem comum, de interesse público, de direitos universais, de
gratuidade.
Proponho
definir esta sociedade com um termo
que resume, há quase dois séculos as aspirações da
humanidade a uma nova forma de vida, mais livre,
mais igualitária, mais democrática e mais solidária. Um
termo que – como todos os outros (« liberdade »,
« democracia » etc.) - foi manipulado por interesses
profundamente antipopulares e autoritários, mas que, nem por
isso, perdeu seu valor
originário e autêntico: socialismo.
Em
recente pesquisa de opinião pública brasileira, encomendada pela
Confederação Nacional das Indústrias ( !), 55% dos
interrogados afirmaram que o Brasil precisava de uma revolução
socialista. Ao serem perguntados o que entendiam por socialismo,
responderam citando alguns valores: « amizade »,
« comunhão », « partilha »,
« respeito », « justiça » e « solidariedade ».
A civilização da solidariedade é uma civilização socialista.
Para
concluir: um outro
mundo é possível, baseado em outros valores,
radicalmente antagônicos aos que dominam hoje. Mas não
podemos esquecer que o futuro começa desde agora: estes
valores já estão prefigurados nas iniciativas que orientam o
nosso movimento hoje. Eles inspiram a campanha contra a dívida
do Terceiro Mundo e a resistência aos projetos da OMC ; o combate aos transgênicos e os projetos de taxação da
especulação financeira. Estão
presentes nos combates sociais, nas iniciativas populares, nas
experiências de solidariedade, de cooperação e de democracia
participativa - desde o combate ecológico dos camponeses da Índia,
até o orçamento participativo do Rio Grande do Sul;
desde as lutas pelo direito de sindicalização na Coréia
do Sul, até as greves em defesa dos serviços públicos na França ;
desde as aldeias zapatistas de Chiapas, até os acampamentos do
MST.
O
futuro começa hoje e aqui, nessas sementes de uma nova civilização,
que estamos plantando em nossa luta, e com o nosso esforço de
construir homens e mulheres novos a partir dos valores subjetivos
e éticos que assumimos em nossas vidas militantes.
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