O Resgate
da Cidadania Mutilada
por Flávia Piovesan
Na qualidade de “visiting
fellow” do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School,
em 1995, apresentei trabalho sobre as ações internacionais
submetidas contra o Brasil perante as instâncias internacionais
de proteção de direitos humanos (“International Human Rights
and the Process of Democratization in Brazil”). Desenvolvi a análise
de casos demarcando o período do regime autoritário militar
(1964-1985) e o da transição democrática (deflagrado a partir
de 1985).
Considerando o primeiro período,
concluía que 90% dos casos se referiam à tortura e à detenção
arbitrária. Quanto ao segundo período, constatava que 82% dos
casos se referiam à violência da Polícia Militar. Esses dados
demonstravam que a democratização no Brasil foi incapaz de
romper com as práticas autoritárias do regime militar,
apresentando como reminiscência um padrão de violência sistemática
praticada pela PM.
Observava, contudo, que as vítimas
de violação apresentavam um perfil distinto. Se no período
ditatorial, em 90% dos casos, as vítimas eram integrantes da
classe média (estudantes, professores, advogados, economistas),
no período da transição, em 94% dos casos, as vítimas eram
pessoas pobres, sem qualquer liderança destacada (incluindo
pedreiros, ajudantes de máquina, mecânicos).
Concluía que, se no
autoritarismo as violações se orientavam por critério político-ideológico,
na democratização, passam a eleger o critério econômico-
social. Isto é, as vítimas passam a ser as pessoas com maior
grau de vulnerabilidade, o que permite que as violações sejam
acobertadas pela máscara da “invisibilidade social”.
Diante desse quadro, o recente
caso de Diadema traz como especial significado a ruptura com o silêncio.
Traz às escâncaras o padrão de violência policial. De forma inédita,
surge o consenso das mais diversas facções de que mudanças são
necessárias e urgentes.
Finalmente é aprovada a lei que
tipifica o crime de tortura, é concedida pelo Estado indenização
aos familiares das vítimas de Diadema, é apresentado o projeto
de lei que institucionaliza a ouvidoria da polícia no Estado, é
instaurada CPI acerca da violência policial, é criada a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, retornam os debates sobre
competência para julgar crimes praticados por PMs, como também
acerca da federalização dos “crimes de direitos humanos”, da
desmilitarização da polícia, da criação de uma CPI dos
Direitos Humanos etc. O caso de Diadema traz em si, a esperança
de resgate da cidadania mutilada.
Flávia Piovesan, 28, procuradora
do Estado, é coordenadora do grupo de trabalho de direitos
humanos da Procuradoria Geral de São Paulo e professora da
Faculdade de Direito da PUC- SP. (Folha de São Paulo, 17/06/97)