Convenção
Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
Flávia
Piovesan*
Luis Carlos
Rocha Guimarães**
* Procuradora
do Estado de São Paulo, Coordenadora do Grupo de Trabalho de
Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,
professora de Direitos Humanos e de Direito Constitucional da
PUC/SP, Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP.
** Procurador do
Estado de São Paulo, membro do Grupo de Trabalho de Direitos
Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
1. INTRODUÇÃO
A proposta deste
estudo é apresentar os aspectos centrais da Convenção sobre a
Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial,
enfocando os mecanismos de implementação dos direitos nela
enunciados, bem como o seu impacto no Direito Brasileiro.
A Convenção sobre
a Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial foi
adotada pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965, tendo
sido ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Três
relevantes fatores históricos impulsionaram o processo de elaboração
desta Convenção na década de 60, destacando-se o ingresso de
dezessete novos países africanos na ONU em 1960, a realização
da Primeira Conferência de Cúpula dos Países Não-Aliados em
Belgrado em 1961 e o ressurgimento de atividades nazifascistas na
Europa.(1) Estes fatores estimularam a edição da Convenção,
como um instrumento internacional voltado ao combate da discriminação
racial.
Na qualidade de
instrumento global de proteção dos direitos humanos editado
pelas Nações Unidas, a Convenção integra o denominado sistema
especial de proteção dos direitos humanos. Ao contrário do
sistema geral de proteção que tem por destinatário toda e
qualquer pessoa, abstrata e genericamente considerada, o sistema
especial de proteção dos direitos humanos é endereçado a um
sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na
concreticidade de suas diversas relações. Vale dizer, do sujeito
de direito abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, etnia,
idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito
de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e
particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo generica
e abstratamente considerado, mas ao indivíduo especificado,
considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade,
etnia, raça,...
Consolida-se,
gradativamente, um aparato especial de proteção endereçado à
proteção de pessoas ou grupo de pessoas particularmente vulneráveis,
que merecem proteção especial. O sistema normativo internacional
passa a reconhecer e tutelar direitos endereçados às crianças,
aos idosos, às mulheres, às pessoas vítimas de tortura, às
pessoas vítimas de discriminação racial, etc. No âmbito
internacional, ao lado da Convenção sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação Racial, são elaboradas a
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança,
dentre outros importantes instrumentos internacionais.(2)
Reitere-se que este sistema internacional de proteção realça o
processo de especificação do sujeito de direito, objetivando
responder a determinado padrão de violação de direito.
Os sistemas geral e
especial são sistemas de proteção complementares, na medida em
que o sistema especial é voltado, fundamentalmente, à prevenção
da discriminação ou à proteção de pessoas ou grupos de
pessoas particularmente vulneráveis, que merecem um tratamento
jurídico especial.
O complexo sistema
normativo de proteção internacional dos direitos humanos revela
uma lógica e principiologia própria, fundada no valor da
primazia da pessoa humana. Logo, estes instrumentos internacionais
somam-se, conjugam-se e reforçam-se com a finalidade de alcançar
o mais aprimorado e eficaz aparato de proteção, defesa e promoção
dos direitos humanos.
2. Aspectos Centrais
da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial
Em seu preâmbulo,
a Convenção reafirma o propósito das Nações Unidas de promoção
do respeito universal dos direitos humanos, sem discriminação de
raça, sexo, idioma ou religião. Enfatiza ainda os princípios da
Declaração Universal de 1948, em especial a concepção de que
todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos,
sem distinção de qualquer espécie e principalmente de raça,
cor ou origem nacional. Acrescenta que qualquer doutrina de
superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente
falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e
que não existe justificação para a discriminação racial, em
teoria ou na prática, em lugar algum.
Inspirada nestes
princípios, a Convenção tem por objetivos eliminar a discriminação
racial em todas as suas formas e manifestações e prevenir e
combater doutrinas e práticas racistas.
Se o objetivo
central da Convenção é a eliminação de todas as formas de
discriminação racial, a primeira preocupação deste texto é
definir juridicamente o conceito de discriminação racial. Nos
termos do artigo 1º da Convenção, a expressão discriminação
racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência, baseadas em raça, cor, descendência ou origem
nacional ou étnica que têm por objetivo ou efeito anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano
(em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades
fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural
ou em qualquer outro domínio de vida pública.Isto é,
para a Convenção, a discriminação racial é uma distinção,
baseada na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica,
que implica na restrição ou exclusão do exercício de direitos
humanos e liberdades fundamentais, nas mais diversas áreas. Logo,
a discriminação racial sempre tem por objetivo ou efeito anular
ou restringir o exercício, em igualdade de condições, dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais.
No mesmo artigo 1º
da Convenção, o § 4º adverte que não serão consideradas
discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único
objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos
raciais ou étnicos, contanto que tais medidas não conduzam, em
consequência, à manutenção de direitos separados para
diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados
os seus objetivos. Neste sentido, as medidas especiais e temporárias
voltadas a acelerar o processo de construção da igualdade não são
consideradas discriminação racial. É o caso das chamadas ações
afirmativas, que são medidas positivas adotadas para aliviar e
remediar as condições resultantes de um passado discriminatório.
Os Estados-partes
da Convenção, ao condenar a discriminação racial,
comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados, uma política
de eliminação da discriminação racial e promoção da
igualdade. A Convenção é enfática ao condenar a segregação
racial e o apartheid, determinando aos Estados-partes que
eliminem em seus territórios todas as práticas dessa natureza.
Toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em
teorias racistas são também condenadas pelos Estados-partes da
Convenção, que devem proibir qualquer incitamento ao ódio e
discriminação raciais, punindo a difusão de idéias baseadas na
superioridade racial.
Os Estados-partes
da Convenção também comprometem-se a garantir a todos, sem
distinção de raça, cor ou origem nacional, e em igualdade de
condições, o exercício de direitos civis, políticos, sociais,
econômicos e culturais.(3)
Na hipótese da prática
de discriminação racial, os Estados-partes deverão assegurar a
todas as pessoas, que estiverem sob a sua jurisdição, proteção
e recursos eficazes perante os Tribunais nacionais, assim como o
direito à indenização justa e adequada por qualquer dano
decorrente do ato discriminatório.
No artigo 7º, a
Convenção estabelece aos Estados-partes o dever de adoção de
medidas eficazes nos campos do ensino, educação, cultura e
informação, contra os preconceitos que levem à discriminação
racial, ressaltando, assim, a importância de uma educação para
a cidadania, fundada no respeito à diversidade, tolerância e
dignidade humana.
Por fim, há que se
enfatizar que a Convenção sobre a Eliminação de todas as
formas de Discriminação Racial apresenta duas metas básicas,
que visam à implementação do direito à igualdade. São elas: o
combate a toda e qualquer forma de discriminação racial e a
promoção da igualdade.
Na ótica contemporânea,
a concretização do direito à igualdade implica na implementação
destas duas estratégias, que não podem ser dissociadas. Hoje o
combate à discriminação racial torna-se medida insuficiente se
não se verificam medidas voltadas à promoção da igualdade. Por
sua vez, a promoção da igualdade, por si só, mostra-se
insuficiente se não se verificam políticas de combate à
discriminação racial.
3. Mecanismos de
Implementação da Convenção
Os tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos não se limitam
a enunciar direitos e consagrar os deveres dos Estados-partes. Ao
elenco dos direitos, adicionam uma sistemática peculiar de
garantia destes direitos, mediante a instituição de organismos
internacionais e mecanismos de implementação de direitos.
Neste sentido, a
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
Racial prevê a criação do Comitê para a Eliminação da
Discriminação Racial.(4) Este órgão é composto de 18
(dezoito) peritos de alta estatura moral, eleitos pelos
Estados-partes e que atuarão a título individual e não como
representantes dos Estados. Cabe a este Comitê realizar o
monitoramento dos direitos reconhecidos pela Convenção.
Além desta instância
internacional, a Convenção estabelece mecanismos de implementação
dos direitos nela enunciados. Importa observar que os instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos apresentam, em
geral, três mecanismos de implementação de direitos: a) os
relatórios; b) as comunicações inter-estatais e c) as petições
individuais. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas
de Discriminação Racial consagra estes três mecanismos, impondo
ao Comitê a competência de examinar os relatórios encaminhados
pelos Estados-partes, as comunicações inter-estatais e as petições
individuais.
De acordo com o
artigo 9º da Convenção, os Estados-partes comprometem-se a
elaborar relatórios periódicos sobre as medidas legislativas,
judiciárias e administrativas adotadas para tornar efetiva a
Convenção(5). Estes relatórios são examinados pelo Comitê,
que poderá fazer sugestões e recomendações aos Estados-partes.
As comunicações
inter-estatais, por sua vez, estão previstas pelo artigo 11 da
Convenção. Por este mecanismo, um Estado-parte poderá denunciar
que um outro Estado-parte não está cumprindo as disposições da
Convenção. Caberá ao Comitê receber e examinar a comunicação
inter-estatal, com observância do princípio do contraditório.
Já o artigo 14
consagra o direito de petição, que consolida a capacidade
processual internacional dos indivíduos(6). O direito de petição,
contudo, é previsto sob a forma de cláusula facultativa(7). Isto
é, o direito de petição fica condicionado à declaração do
Estado-parte de que reconhece a competência do Comitê para
receber e examinar comunicações de indivíduos ou grupos de
indivíduos que se considerem vítimas de violação, pelo
referido Estado-parte, de qualquer direito enunciado na Convenção(8).
O direito de petição
está sujeito a determinados requisitos de admissibilidade, como o
prévio esgotamento dos recursos internos disponíveis. Ao admitir
uma petição, o Comitê solicita informações e esclarecimentos
ao Estado violador e, à luz das informações colhidas, formula
sua opinião e faz recomendações. O Estado é convidado a
informar o Comitê a respeito das ações e medidas adotadas, em
cumprimento às recomendações feitas. A opinião ou ‘decisão’
do Comitê é destituída de força jurídica vinculante. Todavia,
é revestida de alta força política e moral, pois é publicada
no relatório anual elaborado pelo Comitê, que é, por sua vez,
encaminhado à Assembléia Geral das Nações Unidas.
4. Impacto da Convenção
no Direito Brasileiro
Como já analisado,
a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial objetiva fundamentalmente combater e
proibir a discriminação racial, mas também promover a
igualdade. Estes são os dois eixos centrais da Convenção, que
combina, deste modo, uma vertente repressiva com uma vertente
promocional, no que diz respeito à implementação do direito à
igualdade.
Ao avaliar o
impacto jurídico da Convenção no Direito Brasileiro,
constata-se uma grande evolução legislativa nacional em relação
ao combate à discriminação racial. Como se verá, no tocante à
matéria, a ênfase do Direito Brasileiro centra-se na vertente
repressiva.
O primeiro texto
legal que buscou combater a discriminação racial foi a Lei n.
1.390/51, mais conhecida como Lei Afonso Arinos. Esta lei
tipificou uma das formas de racismo, qual seja, a recusa de
entidades públicas ou privadas em atender pessoa em razão de cor
ou raça. No entanto, puniu estas condutas como mera contravenção
penal, ou seja, delito de menor potencial ofensivo.
O maior marco
contra todos os tipos de discriminação é, sem qualquer dúvida,
a Constitiução Federal de l988, conhecida como Constituição
Cidadã. A Carta de 1988 constitui o marco jurídico da transição
democrática e da institucionalização dos direitos humanos na
história brasileira.
O princípio básico
fundamental da Carta Magna é o da dignidade da pessoa humana, do
qual todos os outros são decorrentes.
O texto
constitucional de 1998 consagra ineditamente, como objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, a redução das
desigualdades sociais e promoção do bem comum, sem preconceito
de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3º, incisos III e IV).
No artigo 5º,
incisos XLI e XLII, a Carta estabelece que "a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais", acrescentando que "a prática do racismo
constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena
de reclusão, nos termos da lei." Portanto, no tocante à
Convenção tratada, a atual Constituição transformou o racismo
de mera contravenção penal em crime, tornando-o inafiançável e
imprescritível.
Ademais, outra
consequência do objetivo fundamental de eliminar o preconceito é
a vedação genérica de norma ou disposição infraconstitucional
discriminatória.
As Constituições
Estaduais também tutelam a proibição de discriminação racial,
como se pode notar na Carta Paulista em seu artigo 237, inciso
VII, quando veda discriminação no campo educacional.
Em decorrência dos
princípios fundamentais da Carta Magna, notadamente contra a
discriminação racial, foi promulgada a Lei n. 7.716/89, que
define os crimes resultante de preconceito de raça ou cor,
tipificando condutas que obstem acesso a serviços, cargos e
empregos em razão dos tipos de preconceitos citados.
Muito embora trate
a Lei n. 7.716/89 de condutas discriminatórias, não previu as
decorrentes de ofensa à honra em razão da raça, muito comum no
dia a dia, levando as autoridades policiais a classificarem este
tipo de ofensa como calúnia, injúria ou difamação, com penas
bem inferiores, além de dependerem de ação privada, facilmente
prescritíveis. Isto evidentemente não ocorreria se fossem
classificadas como racismo, com reprimenda severa, demandando ação
penal pública e sendo constitucionalmente inafiançáveis e
imprescritíveis. Cabe ainda observar que a Lei n. 7.716/89
definiu tão somente os crimes resultantes de preconceito de raça
ou cor, não prevendo as práticas resultantes de preconceito de
descendência ou origem nacional ou étnica, que à luz da Convenção
integram também a definição de discriminação racial (9).
Mencionada legislação
foi alterada em parte pela Lei n. 9.459/97, que incluiu novos
tipos penais, visando principalmente combater os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional. A nova lei amplia as
formas de discriminação, acrescentando ao lado de cor e raça,
os critérios etnia, religião e procedência nacional. É
interessante notar que a Lei n. 9.459/97 não só inclui os critérios
etnia e procedência nacional, alinhando-se à definição de
discriminação racial prevista pela Convenção, como também
inclui o critério religião, não previsto por aquela Convenção.
Transcende, assim, a própria Convenção, punindo os crimes
resultantes de discriminação racial (adotando-se a terminologia
internacional) e os crimes resultantes de discriminação
religiosa.
Quanto ao crime de
injúria, a nova lei acrescenta um parágrafo ao artigo 140 do Código
Penal, prescrevendo pena de reclusão de um a três anos e multa
"se a injúria consiste na utilização de elementos
referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem".
Observe-se que o artigo 140 caput do Código Penal atribui
ao crime de injúria, sem conotação discriminatória, a pena de
detenção de um a seis meses ou multa. Deste modo, a referida
lacuna da Lei n. 7.716/89 foi finalmente corrigida pela Lei n.
9.459/97.
Além desta legislação
específica, concernente ao combate à discriminação racial,
verifica-se ainda no Direito Brasileiro a existência de leis
esparsas com relevantes dispositivos normativos voltados à punição
da discriminação racial. Neste sentido, destacam-se: a) a Lei n.
2.889/56 (que define e pune o crime de genocídio); b) a Lei n.
4.117/62 (que pune os meios de comunicação que promovem práticas
discriminatórias); c) a Lei n. 5.250/67 (que regula a liberdade
de pensamento e informação, vedando a difusão de preconceito de
raça); d) a Lei n. 6.620/78 (que define os crimes contra a
segurança nacional, como incitação ao ódio ou à discriminação
racial); e) a Lei n. 8.072/90 (que define os crime hediondos,
dentre eles o genocídio, tornando-os insuscetíveis de anistia,
graça, indulto, fiança e liberdade provisória); f) a Lei n.
8.078/90 (que trata da proteção ao consumidor e proíbe toda
publicidade discriminatória); g) a Lei n. 8.081/90 (que
estabelece crimes discriminatórios praticados por meios de
comunicação ou por publicidade de qualquer natureza) e h) a Lei
n. 8.069/90 (que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente, afirmando que estes não podem sofrer qualquer forma
de discriminação).
Apesar da legislação
avançada (principalmente no âmbito constitucional), não tem se
refletido na prática de maneira uniforme e constante a coibição
da discriminação racial (10), pois além de ser velada no
Brasil, normalmente envolve como infratores pessoas de classes
sociais elevadas, as quais dificilmente são punidas
criminalmente.
Como exemplos
esparsos e isolados de condenação por discriminação racial,
merecem destaque duas decisões judiciais, cujas ementas são
transcritas a seguir:
"RACISMO -
Condomínio - Prática por síndico - Preferência de cor, para
fins de emprego, inserida em anúncio de jornal - Enquadramento na
conduta prevista no artigo 4º da Lei Federal n. 7.716, de 1989 -
Interpretação da expressão empresa privada contida no
dispostivo legal - Condenação mantida - Recurso não provido -
Voto vencido" (TJ/SP - Apelação Criminal n. 141.820-3 -
10/02/95 - Araçatuba - Apelante: José Parrilha Filho - Apelada:
Justiça Pública - JTJ - Volume 172 - p. 326).
"Dano moral
fundado em racismo e ofensas morais praticadas pelo empregador no
curso da relação de emprego. Competência da Justiça do
Trabalho. Critério para a fixação de indenização. Os limites
do poder diretivo e o respeito à dignidade humana" (Justiça
do Trabalho da 3ª Região - 2ª JCJ/Passos/M.G. - Proc. 118/97 -
15/04/97).
Lamentavelmente,
reitere-se, tratam-se de dois casos isolados. Não se verifica na
jurisprudência brasileira uma tendência de julgados que aponte
à condenação criminal em casos de discriminação racial.
Diante desta ineficácia, há uma advocacia ainda incipiente no país
que objetiva, no âmbito cível, o pagamento de indenização por
danos morais, em casos de comprovada prática discriminatória.
Esta advocacia acredita que a adoção desta estratégia talvez
possa permitir maiores chances de sucesso, no difícil combate à
cultura da discriminação racial.
5. Conclusão
A existência de um
instrumental internacional de combate a todas as formas de
discriminação racial, por si só, revela um grande avanço. A
Convenção traduz o consenso da comunidade internacional acerca
da urgência em se eliminar o racismo e ao mesmo tempo promover a
igualdade material e substantiva. Este consenso mundial transcende
a complexa diversidade cultural dos povos, que passam a
compartilhar de uma mesma gramática, quando o tema é a
discriminação racial.
Através da Convenção
sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial
busca-se proteger os valores da igualdade e tolerância, baseados
no respeito à diferença. Consagra-se a idéia de que a
diversidade étnica-racial deve ser vivida como equivalência e não
como superioridade ou inferioridade(11).
Fundamentalmente, a
Convenção objetiva erradicar a discriminação racial e suas
causas, como também estimular estratégias de promoção da
igualdade. Combina a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Como já
dito, para garantir e assegurar a igualdade não basta apenas
proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São
essenciais as estratégias capazes de incentivar a inserção e a
inclusão social de grupos historicamente vulneráveis. Alia-se à
vertente repressiva-punitiva a vertente positiva-promocional.
Desde 1968 o Brasil
é signatário da Convenção. No que tange ao impacto desta no
Direito Brasileiro, observa-se que a Convenção introduz
relevantes mecanismos internacionais de monitoramento dos direitos
que enuncia, o que exige do Estado Brasileiro, por exemplo, a
apresentação de relatórios que evidenciem o modo pelo qual o
Brasil tem conferido cumprimento aos dispositivos da Convenção.
Não bastando o controle da comunidade internacional, no plano
normativo nacional, a Convenção tem estimulado o aperfeiçoamente
legislativo sobre a matéria. Os avanços normativos mais
significativos decorreram do advento da Carta de 1988 e da legislação
infra-constitucional regulamentadora — em especial as Leis ns.
7.716/89 e 9.459/97.
No entanto, este
aparato normativo nacional é de cunho estritamente repressivo, o
que indica que no Direito Brasileiro o problema da discriminação
racial tem sido tratado apenas por meio da vertente punitiva e não
da vertente promocional. Esta conclusão é agravada pelo fato da
vertente punitiva ainda apresentar pouca efetividade, tendo em
vista serem isoladas as decisões que condenam criminalmente a prática
do racismo.
Por sua vez, esta
inefetividade reflete as resistências do próprio Poder Judiciário
em implementar a legislação sobre a matéria, por razões de
cunho ideológico (já que muitos ainda têm a falsa crença no
mito da democracia racial brasileira) e, por vezes, pelo fato de
ignorarem a existência do aparato normativo (mormente a legislacão
internacional) de combate à discriminação racial (12).
É fundamental estimular uma consciência
jurídica crítica capaz de tornar efetiva a eliminação da
discriminação racial, combinando estratégias repressivas e
promocionais, que propiciem a plena implementação do direito à
igualdade, com a crença de que somos iguais, mas diferentes e
diferentes, mas sobretudo iguais.
________
(1) A
respeito ver José Augusto Lindgren Alves, Os direitos
humanos como tema global, São Paulo, Perspectiva e Fundação
Alexandre de Gusmão, 1994, p. 54-55.
(2) Não há
um elenco exaustivo de Convenções internacionais voltadas à
proteção dos direitos humanos. O processo de especificação do
sujeito de direitos apontará, no futuro, à necessidade de
elaboração de novas Convenções internacionais, que visarão
proteger novos sujeitos de direitos. No dizer de Jack Donnelly:
"O elenco de direitos humanos tem se desenvolvido e se
expandido, e assim continuará, em resposta a fatores como idéias
renovadas acerca da dignidade humana, ascensão de novas forças
políticas, mudanças tecnológicas, novas técnicas de repressão
(...). Esta evolução é particularmente visível em face da
emergência dos direitos econômicos e sociais." (Universal
Human Rights in theory and practice, Ithaca, Cornell
University Press, 1989, p. 26).
(3) O artigo 5º
da Convenção apresenta um amplo católogo destes direitos, que
inclui: o direito a um tratamento igual perante os Tribunais, o
direito à segurança da pessoa ou à proteção do Estado contra
a violência, direitos de participação política, direito à
liberdade de locomoção, direito à nacionalidade, direito de
casar-se e escolher o cônjuge, direito à propriedade, direito à
herança, direito à liberdade de pensamento, direito à liberdade
de expressão, direito à liberdade de reunião, direitos econômicos,
sociais e culturais, como o direito ao trabalho, à habitação,
à saúde pública, à previdência social, à educação, à
participação em atividades culturais, ao acesso a todos os
lugares e serviços destinados ao uso do público, dentre outros
direitos.
(4) Observe-se
que Comitês análogos foram estabelecidos por outras Convenções
internacionais de direitos humanos, destacando-se o Comitê contra
a Tortura (instituído pela Convenção contra a Tortura), o Comitê
sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (instituído
pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher), o Comitê sobre os Direitos da
Criança (instituído pela Convenção sobre os Direitos da Criança)
e o Comitê de Direitos Humanos (instituído pelo Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos).
(5) O Estado
Brasileiro, em novembro de 1995, encaminhou ao Comitê o décimo
relatório periódico relativo à Convenção sobre a Eliminação
de todas as formas de Discriminação Racial. O referido relatório
contém uma parte geral, uma parte dedicada à legislação
nacional, seguida da parte concernente às medidas educacionais e
administrativas e, por fim, da parte relativa às populações indígenas.
(6) Cf.
Antonio Augusto Cançado Trindade, A proteção internacional
dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos,
São Paulo: Saraiva, 1991, p. 8. Para Karel Vasak: "Desde que
o indivíduo é concebido, ele tem, em minha opinião, adquirido
de uma vez e para sempre o direito de deflagrar o aparato de
implementação dos direitos humanos internacionais. O direito
individual à ação internacional é sempre exercido através do
direito de petição, o qual, ainda que não seja um direito
humano, é hoje um mecanismo empregado para a implementação
internacional dos direitos humanos." (Toward a specific
international human rights law. In: Karel Vasak, Ed., The
international dimensions of human rights, revisado e editado
para a edição inglesa por Philip Alston, Connecticut, Greenwood
Press, 1982, v.1, p . 676-677).
(7) Até 31 de
dezembro de 1994, vinte e um Estados-partes haviam feito a declaração
no sentido de aceitar a competência do Comitê para receber e
considerar as comunicações individuais, nos termos do artigo 14
da Convenção. O Estado Brasileiro até hoje ainda não elaborou
uma declaração para este fim.
(8) Afirma Siân
Lewis-Anthony: "No sistema das Nações Unidas, há três órgãos
competentes para receber e considerar, de forma quase judicial,
comunicações de indivíduos que clamam serem vítimas de violações
de direitos humanos. São eles: o Comitê de Direitos Humanos, o
Comitê contra a Tortura e o Comitê sobre a Eliminação da
Discriminação Racial. Cada um deles foi estabelecido em tratado,
no sentido de monitorar o cumprimento de obrigações decorrentes
dos tratados por parte dos Estados-partes. Os Estados devem
declarar especificamente que reconhecem a competência dos
relevantes Comitês para receber e considerar as comunicações de
indivíduos que estejam sob a sua jurisdição. Todos os três
Comitês funcionam de forma similar no que tange à consideração
de comunicações individuais." (Treaty-based procedures for
making human rights complaints within the UN system. Guide do
International Human Rights Practice, 2. ed., Philadelphia,
University of Pennsylvania Press, 1994).
(9) Nos termos
do artigo 1o da Convenção, a expressão discriminação racial
significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência,
baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica
que têm por objetivo ou efeito anular ou restringir o
reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade
de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais no
domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer
outro domínio de vida pública.
(12) Em face deste cenário,
é de importância crucial estimular o conhecimento da legislação
internacional e nacional voltada à proteção dos direitos
humanos, através, por exemplo, da inclusão esta disciplina em
cursos de graduação e em concursos públicos de ingresso em
carreiras jurídicas.
|