Direitos
Humanos e Cidadania
Palestra
proferida pela profª. Flávia Piovesan no XX ENED, em Belém-PA,
18.07.99.
Um bom dia a
todos. Inicialmente, eu gostaria de agradecer às entidades
organizadoras o honroso convite para participar do XX ENED.
Aproveito para cumprimentar os meus amigos da mesa, todos os
presentes, dizer da minha extrema alegria, do meu encantamento
por este convite.
É sempre muito
difícil, é um desafio falar após o prof. João Batista. Eu
lembro de uma passagem de Paulo Freire em que ele dizia ser
este o tempo em que, mais que falar, é preciso falar a
palavra certa. Falar a palavra que atua e que transforma.
Sendo necessária a coragem do risco. Eu faço minhas essas
palavras do prof. Paulo Freire, e presto a minha homenagem ao
prof. João Batista pela vitalidade da sua fala, por esse
convite irrecusável para essa caminhada que é a caminhada da
utopia emancipatória dos direitos humanos.
E com isso eu,
na qualidade de representante da segunda geração, tentarei
aqui trazer algumas reflexões sobre cidadania e direitos
humanos. E buscarei enfrentar três questões que me parecem
centrais a essa reflexão. A primeira delas: o que são
direitos humanos, qual é a concepção contemporânea de
direitos humanos? Segunda questão: qual o impacto da
globalização econômica no processo de efetivação dos
direitos humanos? E por fim, o convite para a ação: qual é
o nosso papel e a nossa responsabilidade na qualidade de
agentes jurídicos na construção de uma prática renovada e
emancipatória?
Eu começaria
aqui com a primeira reflexão partindo dessa questão: o que são
direitos humanos? E aí, eu trago aqui as lições de (...)
quando afirma que a cidadania não é um dado, mas é um
construído e um reconstruído, ou seja, direitos humanos são
direitos históricos. Não são um dado em si mesmos, mas compõem
uma inversão humana em constante dinâmica de construção e
reconstrução. Mas não obstante a esta historicidade dos
direitos humanos traduzem a todo tempo uma utopia, como bem
falou o prof. João Batista. Uma plataforma emancipatória em
reação, em repúdio às formas de opressão, exclusão,
desigualdade e injustiça. Os direitos humanos combinam sempre
esse exercício da capacidade de indignação com o sentimento
de esperança, com o direito à esperança. Trata-se aqui de
uma atitude de encantamento e trata-se, sobretudo, de buscar
resgatar o potencial transformador das ações humanas e, por
isso, eu fico extremamente satisfeita com a fala do prof. João
Batista, que é um estímulo a essa crença de que nós somos
atores sociais e somos responsáveis, sim, por nossas ações
ou por nossas omissões, ou seja, ao potencial transformador
das ações humanas.
E tendo em
vista esse olhar histórico nós podemos afirmar que a definição
de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados.
E considerando essa pluralidade nós optamos pela concepção
contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida
há 50 anos atrás, com a Declaração de 48 e reiterada pela
a Declaração de Viena de 1993.
Vejam, a
Declaração Universal de 1948 nasce como resposta à barbárie,
nasce como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos
durante o nazismo. Em face do regime do terror passa a imperar
a lógica da discrição, na qual as pessoas são consideradas
descartáveis em razão da não pertinência à determinada raça,
a raça pura ariana. Com isso 18 milhões de pessoas passam
por campos de concentração, 11 milhões de pessoas neles
morrem, sendo que desse universo, 6 milhões são judeus, além
de ciganos ou individuais do comunismo.
A Segunda
Guerra traz a marca do Estado como grande delinqüente. E traz
a barbárie do genocídio que resultou no maior número de
civis mortos ao longo da humanidade. O regime de terror
implicou na ruptura dos direitos humanos, e aí a necessidade
de reconstrução desses direitos como diz Celso (...). Então
vejam, em face da ruptura emerge a necessidade da reconstrução
desse valor, como referencial ético, como panorama e como a
utopia e a referência da ordem internacional. E a Declaração
surge como esse horizonte moral da humanidade, como esse código
de princípios e valores universais. Ela é o parâmetro que
divide a civilização da barbárie. Ela remarca a concepção
inovadora de que os direitos humanos são direitos universais
e que a condição de pessoa é o requisito único, essencial
e exclusivo para a dignidade, para o exercício e a
titularidade de um direito. Ela é o marco da chamada
globalização, ou internacionalização da cidadania e dos
direitos humanos. Ela traz a idéia de que a proteção dos
direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado de
um Estado, não deve se reduzir às amarras, às fronteiras de
um Estado. Porque revela tema de legítimo interesse da
comunidade internacional.
Vejam, eu lia
essa semana, dia 14.07.99, saía na Folha de São Paulo, que
ONG’s devem levar à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA, o assassinato do eletricista alagoano José
Joaquim Araújo, que havia acusado policiais de tortura e foi
morto logo após. Então vejam, quando nós temos essa sensação
de que as instituições nacionais são falhas ou omissas é
possível projetar a questão dos direitos humanos à idéia
internacional. Não obstante, a responsabilidade primária com
relação aos direitos humanos é sempre do Estado, e a
comunidade internacional tem essa responsabilidade subsidiária
e adicional. Então vejam, isso traduz a idéia de que os
direitos humanos são tema global. Os direitos humanos não têm
fronteiras. Isso traz a revisão da noção tradicional de
soberania absoluta do Estado. O Brasil não poderá falar à
OEA que direitos humanos é tema nosso, ponto. Porque de um
lado os direitos humanos, a qualquer tempo, em qualquer país,
hoje, tem essa repercussão no campo internacional. Então a
soberania passa a ser relativizada, na medida em que são
admitidas intervenções em prol da proteção dos direitos
humanos. E nós ganhamos em cidadania, nós ampliamos a nossa
cidadania porque passamos a ter direitos protegidos aqui pela
nossa construção e também na condição de sujeitos de
direito pelos tratados internacionais de proteção de
direitos humanos. Além disso, com a Declaração, inova, não
só porque traz o resgate, a reconstrução dos direitos
humanos, mas porque traz a idéia da indivisibilidade dos
direitos humanos. Vejam: é tão importante ser livre como ser
igual. É tão importante ser igual como ser livre. Os
direitos humanos compreendem essa unidade indivisível,
interdependente e interrelacionada. A declaração vem inovar
prevendo que não há liberdade verdadeira sem igualdade e não
há verdadeira igualdade sem liberdade. É por isso, que também
concordo com essa ampliação de cidadania. A cidadania não
pode ficar restrita ao aspecto político e civil. A cidadania
que nós queremos, a democracia que nós queremos não é só
a democracia do voto, a democracia política e civil, mas é a
democracia econômica, é a democracia social, é a democracia
cultural com todos os enfoques de gênero, raça, etnia,
idade. Nós queremos reconstruir o conceito democrático.
Então vejam,
à luz disso nós temos que afastar a equivocada noção que
vem, fundamentalmente, da cultura liberal norte-americana, de
que uma classe de direitos, os direitos civis e de cunho políticos,
esses sim são verdadeiros direitos. Enquanto os direitos
sociais, econômicos e culturais, ao revés, não merecem
qualquer reconhecimento. Nós temos que romper, e acho que o
ENED é o momento fundamental para afirmar a acionabilidade, a
justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e
culturais. Direito à saúde, direito à educação,
direito à moradia, direito ao trabalho não são generosidade
ou caridade de alguns Estados. São os termos em que, prevê a
nossa Constituição, os termos dos tratados internacionais são
verdadeiros direitos públicos subjetivos e nós, digo,
cultura jurídica, temos um débito lamentável em relação a
construção de uma doutrina e de uma jurisprudência que
realce a imperatividade jurídica desses direitos como
verdadeiros direitos fundamentais. Quer dizer, os direitos
fundamentais são direitos legais, constitucionais,
internacionais, acionáveis, exigíveis e demandam sérias e
responsáveis observâncias. E este, então, é o lema da
Declaração de 48, este é o lema da Declaração de Viena de
93. Os direitos humanos são universais, interdependentes e
interrelacionados. De nada adianta estarmos aqui, tendo a
liberdade de expressão, liberdade que não teria como lembra
o professor a 21 anos atrás, a 30 anos atrás, se não
tivermos o acesso à educação, o acesso à saúde, o acesso
à habitação. Quer dizer, os direitos humanos compõem essa
unidade. Não há como violar meio direito humano. Quer dizer,
quando há a violação aos direitos sociais, os direitos
civis também são alcançados. A população que sofre, que
é alvo preferencial da violência aos seus direitos civis, à
sua integridade, é a população vulnerável no campo social,
no campo econômico e no campo cultural.
Então vejam,
com todas essas considerações nós passamos à segunda
reflexão: qual é o impacto da globalização econômica no
processo de efetivação dos direitos humanos à luz da experiência
brasileira?
Podemos perceber que ao longo das últimas décadas os grandes
desafios da América Latina foram: abertura política,
estabilização econômica e reforma social. E, com o processo
de globalização, a agenda desses países passou a incluir,
como preocupação central, a inserção na economia e no
mercado mundial com o aumento da competitividade
internacional.
No entanto, no
processo de globalização (e eu até cumprimento aqui o folden,
eu lia a parte final, e eu vejo que nós comungamos posições
com relação à globalização econômica), mas a globalização
tem sido orientada (...) (parte perdida pela troca de lado
da fita) de Washington, que é um fruto de um seminário
realizado em 1990, em Washingnton, reunindo departamentos de
Estados nos EUA, os ministérios das finanças dos demais
grupos, é dos sete, e os presidentes dos vintes maiores
bancos internacionais, como Fundo Monetário e Banco Mundial.
É desse consenso que sai toda a inspiração, isso na década
de 90, para as medidas econômicas neoliberais, voltadas para
a reforma e estabilização das economias chamadas emergentes,
notadamente as latino americanas.
Tem por
plataforma o neoliberalismo, o Estado pequeno com redução
das despesas públicas, a flexibilização dos direitos
sociais, a disciplina fiscal, a reforma tributária e,
fundamentalmente, a abertura do mercado ao comércio exterior.
Eu convido a todos a lerem um livro, que ontem acabei de ler,
um livro pequeno chamado "Brasil Privatizado", em
que há dados mais alarmantes do modo pelo qual o nosso Brasil
tem sido vendido e o modo pelo qual há essa abertura ao comércio
internacional. Esse processo, segundo estatísticas, tem
agravado ainda mais o dualismo econômico, e isso trata da
realidade latino americana: o aumento das desigualdades
sociais e do desemprego, em prol da austeridade econômica.
No caso
brasileiro, de acordo com o relatório da OEA dos Direitos
Humanos do Brasil, 66% da população rural do Brasil
encontra-se abaixo da linha da pobreza, ao passo que a proporção
de pobres nas zonas urbanas é de quase 40%. O Brasil, nós
todos sabemos em razão do relatório das Nações Unidas
publicado dia 11 de julho, agora há uma semana, que o Brasil
é o 79º país, entre 174 países do mundo, no índice de
desenvolvimento e esse mesmo relatório aponta as assimetrias
do processo de globalização. A tese central, vejam, a tese
central das Nações Unidas, enquanto organismo internacional,
é que a integração econômica do planeta, chamada globalização,
tem contribuído para aumentar as desigualdades. E aqui eu
trago dados, a assimetria está dada pelo fato, vejam bem, de
que a parcela de 20% da população mundial que vive nos países
de renda mais (...) concentra 86% do PIB mundial, concentra
82% das exportações mundiais, 78% de investimentos direitos,
74% das linhas telefônicas. Para os 20% mais pobres, sobra 1%
do PIB mundial, sobra 1% das exportações mundiais, 1% de
investimentos e 1,1% das linhas telefônicas, de números de
telefones.
Então vejam,
faz-se claro, que esse é um relatório científico, feito por
indicadores e pesquisadores, faz-se claro o impacto perverso
da globalização econômica, notadamente no caso brasileiro.
Como eu disse, há o agravamento desse dualismo econômico e
estrutural dos países periféricos, um aumento das
desigualdades, da pobreza. Grande parte da população vive
mais no estado de natureza do que propriamente no estado civil
de direito, o que vem a comprometer a idéia da
indivisibilidade e da universalidade dos direitos humanos.
Educação, saúde, previdência de direitos fundamentais básicos,
reduzem-se a conceitos de mercadoria, objeto de compra e venda
e são lançados na dinâmica de livre mercado, num contexto
bastante desigual, que pelo relatório da ONU, o mais desigual
do planeta. O Brasil continua recordista em concentração de
renda no mundo e o PIB dos 20% mais ricos é 32 vezes maior do
que o PIB dos 20% mais pobres. Nós temos que agregar a esse
autoritarismo econômico social, nós temos que agregar a
fragilidade do nosso processo de democratização, se nós
rompemos com o regime ditatorial, a partir de 85, com o regime
da transição lenta e gradual, ainda nos falta essa segunda
etapa de consolidação do processo democrático. Quer dizer,
é como se a democratização apresentasse dois momentos: a
transição para a democracia e a consolidação democrática.
Então nós temos que ter uma avaliação crítica do balanço
desses quatorze anos de vivência democrática.
O processo de
globalização, portanto, tem esse impacto perverso trazendo
esse esvaziamento das noções de universalidade,
indivisibilidade dos direitos humanos. Fomenta a desigualdade
social e a exclusão social.
E por fim, passo para a última reflexão: qual é o nosso
papel, qual é a nossa responsabilidade, na qualidade de
agentes jurídicos, na construção de uma prática renovada?
Inicialmente,
destaco o desafio da construção de um novo paradigma pautado
por uma agenda de inclusão social. Nós estamos à frente
desse desafio, que é recuperar a prevalência dos direitos
humanos como valor paradigmático e referencial, na busca de
um novo consenso, pós-Washington, que aponte a um
desenvolvimento sustentável mais igualitário e mais democrático.
O próximo milênio tem como débito a globalização da
democracia e a globalização dos direitos humanos. Eu chamo
atenção a um fato peculiar, os próprios formuladores do
consenso de Whashington, dentre eles Joseph (...), que é o
vice-presidente do Banco Mundial, hoje reconhece,
criticamente, que a agenda desse consenso é reduzida, é
insatisfatória, é insuficiente e que ela deve abarcar temas
como o desenvolvimento humano, educação, meio ambiente,
dentre outros.
Ao imperativo da eficiência, da eficácia econômica nós
temos que agregar e conjugar a exigência ética de justiça
social inspirada em uma ordem democrática que garanta pleno
exercício dos direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais. Enquanto agentes jurídicos e atores
sociais, acho que é o momento de nós resgatarmos a força
normativa da Constituição. Nós sabemos que a Constituição
é tanto o que nós somos enquanto sociedade, mas, sobretudo,
o que nós pretendemos ser. Nós temos que resgatar a força
normativa dos tratados internacionais de direitos humanos.
Hoje, nós vivemos a internacionalização dos direitos
constitucionais somada à constitucionalização do direito
internacional. Nós temos aqui uma ampla responsabilidade, que
é fundamental ante de intenso envolvimento dos agentes jurídicos.
Contudo, nós sabemos em larga escala que estes apresentam um
forte perfil conservador, têm no direito menos um instrumento
de transformação social e mais um instrumento de conservação
social. Nós temos que despertar esse potencial ético e esse
potencial transformador do fenômeno jurídico. Grande parcela
dos agentes jurídicos ainda tem marcada formação privativa
e não publicista, lêem a Constituição com um olhar de 16,
do Código Civil, ou de 40, do Código Penal. A Constituição
passa a ser interpretada à luz de categorias envelhecidas da
nossa ordem infra-constitucional.
Também faz-se
fundamental à cultura jurídica brasileira, aprimorar
conhecimento no direito internacional público, em especial no
direito internacional dos direitos humanos. Nós temos que
romper essa distância entre direito internacional e direito
interno, quando o que está em jogo é a defesa da dignidade
humana. Nós temos que somar essas duas perspectivas.
Lembraria ainda que a formação jurídica brasileira é
orientada por uma órbita formalista e é fundamental que nós
possamos nos situar na história e possamos olhar para esse
Brasil tão complicado, tão complexo, tão contraditório, país
número um em desigualdade social, país número dois em violência,
perdendo hoje para a Colômbia.
Hoje, mais do que nunca, nós sentimos que o mundo não está
em ordem, mas que a ordenação é sempre um problema central
e aberto, como já ponderava Canotilho: "Se o passado já
foi escrito, o presente e o futuro hão ser inventados".
Recaindo-nos a responsabilidade por nossas ações e omissões
na qualidade de atores sociais, construtores da nossa história
e por ela responsáveis. Como lembra Saramago: "As
pessoas nascem todos os dias, só delas é que dependem
continuar a viver o dia de ontem ou começar, de raiz e berço,
um dia novo, hoje".
Que nós possamos recomeçar com a certeza do potencial
transformador das ações humanas. Que tenhamos serenidade,
coragem, humildade, ousadia e criatividade. Que possamos fazer
do direito um instrumento emancipatório em prol da revitalização
e do resgate da dignidade humana. E que possamos buscar, como
nos lembrava o professor João Batista, no valor da utopia o
alimento das nossas mentes e das nossas almas. E eu termino
com as palavras do poeta Eduardo Galeano, que ao indagar para
o que serve a utopia, declama: "Ela está no horizonte,
me aproximo dois passos, ela se distancia outros dois. Caminho
dez passos, e o horizonte se afasta mais dez. Por mais que
caminhe nunca poderei alcançá-la. Para quê serve a Utopia?
Para isto serve: para que nós possamos caminhar." E os
direitos humanos traduzem, digo eu, um irrecusável convite a
esta caminhada.
Muito obrigada!
* (...) parte
do texto que não foi possível identificar na fita de gravação.
Mensagem
original do discurso proferido
na Colação de Grau dos Formandos do Curso de Direito da UFAC
no ano de 1999.
"Uma vez na história um
jovem chamado Karl Marx, no auge de seus 17 anos de idade,
desconhecido para o seu tempo, escrevera a carta que mais
tarde seria lida pelo mundo. Mal sabia ele que suas palavras
torna-se-iam pilar de um novo pensamento, de uma imortalizada
fonte de justiça social e que hoje ainda permanecem
testemunhando um sonho aparentemente impossível, uma utopia
transgressora à cultura do mundo que prega a exploração do
homem pelo homem. O jovem morreu, mas suas palavras jamais serão
apagadas. Dizia ele: "Se o homem trabalha apenas para si
próprio, poderá porventura tornar-se um erudito célebre, um
grande sábio ou um excelente poeta, mas nunca será um homem
completo, verdadeiramente grande ... Se escolhermos uma tarefa
em que possamos trabalhar o máximo pela humanidade não
fruiremos, então, uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas
a nossa felicidade pertencerá a milhões (de pessoas)."
Mais que operar o direito é
preciso viver a justiça. Aquele que faz do Direito profissão
possui como maiores bens a consciência e a conduta. No
desempenho de sua função transmite com lealdade e
integridade os ensinamentos que um dia recebera, jamais
descuidando do estudo, por compreender que mesmo o mais
grandioso dos mestres não deixa de ser discípulo fiel de sua
arte, porque todas as formas estão sujeitas à evolução e o
Direito não foge à regra. Um advogado permanece em eterno
aprendizado, tanto no exercício da profissão como no silêncio
de sua sala.
Mas o mundo não precisa tão
somente de operadores do direito, mas de artistas, pois o
Direito é das artes a mais bela. É ele que funciona como um
porta-voz da filosofia do Bem Comum e como um Arauto da Justiça
entre os homens, reunindo em si os princípios que norteiam a
vida humana. A filosofia do Direito mantém viva a esperança
de um mundo construído sobre o alicerce da liberdade,
igualdade e fraternidade; está sempre a lembrar ao homem de
seu compromisso firmado com a vida, consigo mesmo e com os de
sua espécie. O Direito está no homem e o homem o coloca em
movimento. No instante de maior perigo, quando o homem coloca
a risco o próprio homem, restará sempre a chama do Direito
alertando para a ameaça de um provável fim, sendo mais uma
vez utilizado como um farol apontando o caminho. Em verdade, o
Direito não é o conjunto de leis e princípios reunidos em
livros. Os livros são devorados pelas traças e as palavras o
tempo as consome. Antes de tudo o Direito é obra do espírito
que habita no homem, é um feixe de luz entrecortando as
trevas mortais do engano, desespero, pessimismo e loucura; é
uma voz que lembra ao homem de sua humanidade esquecida,
violada, abandonada. É ela que diz: "Homem, luta pela
paz e trata os de tua espécie como iguais. Não é a justiça
que semeia a discórdia, o erro e a incompreensão, pois não
é ela contrária a si. Os homens é que deturpam a verdade
perfeita com sua sede de poder e se colocam acima uns dos
outros em busca de uma paz onde o dominado aceita o domínio
por sentir-se desprovido de conhecimento e o dominante, de
posse dos meios de ensino e massificação, permanece no cume
da pirâmide do poder. Homem, a escolha é tua transformar o
mundo em pedra ou diamante. Está no processo de tua evolução
aprender que sem valores o teu caráter não consegue
enfrentar as tempestades da cobiça e do individualismo. Mais
cedo ou mais tarde, descobrirás que concentrado-se nas
virtudes e acreditando nelas o sacrifício de tua vantagem
pessoal em nome do ganho coletivo será motivo de gozo e não
de dor."
Mas o mundo não precisa tão
somente de artistas, precisa de livres pensadores, homens de
olhar crítico e ação reta. Que não sejam técnicos
reprodutores de pensamentos concebidos na ideologia da dominação
social, onde o mais forte se apodera do mais fraco,
condenando-lhe, sem o devido processo legal, à prisão sem
paredes ou grades, modelada para a mente, chamada ignorância
humana; que não se conformem frente à tamanha desigualdade
social e passem a questionar a estrutura orgânica da
sociedade, sua contextualização histórica donde o Direito
é substrato, pois a história é para o homem o
auto-conhecimento humano; que não se calem diante dos inúmeros
casos de violação à dignidade da pessoa humana e mesmo
quando forem considerados louco pelos que se julgam sãos,
empenhem-se na árdua luta da busca da verdade e da aplicação
do Direito como formas de se chegar à Justiça, que é pacífica,
imparcial e discernida; que trabalhem no sentido de que o
ensino jurídico deixe de produzir profissionais adestrados na
manipulação dos Códigos e das leis, apoiando alternativas
que tornem mais eficiente a atuação da Justiça perante as
necessidades da comunidade; que em nome desta mesma Justiça
estes homens de visão crítica e atitude reta não se
permitam alienar pela linguagem erudita e arcaica ainda
utilizada nas petições e sentenças ou pelo amontoado de papéis
a que chamam processo, que não se deixem prender às formas
criteriosas do meio jurídico, seguindo cegamente a sua sistemática
sem antes questionar e entender os seus motivos, que não se
deixem cegar pela competição e que, acima de tudo, aprendam
a lidar com pessoas, com vidas humanas, com sentimentos e
esperanças dos que no processo litigam, ou melhor, degladiam
civilizadamente.
Mas o mundo não precisa tão
somente de livres pensadores, de olhar crítico e ação, o
mundo precisa de homens e a humanidade não foi aprendida na
Academia de Direito.
Se um dia estivermos cegos pela
busca desenfreada de nossas satisfações pessoais e
decidirmos então fazer do Direito um mero instrumento de
alcance de nossos interesses mesquinhos e iníquos, seja o
desejo de uma carreira brilhante, sucesso e prestígio, seja o
sonho do poder e da riqueza, que possamos olhar para o céu e
permitir que Deus nos toque o coração de modo a recuperarmos
a sanidade perdida para que o egoísmo dê lugar ao ideal de
mudança, pois não é decorando artigos dos Códigos e
sabendo todos os detalhes a serem questionados nos Concursos
que estaremos exercendo plenamente a cidadania, isso apenas
nos introjeta no mundo burocrático marcado pela ineficiência,
pela despersonalização e pela dureza.
O Direito não é um fim em si
mesmo mas uma escala de valores, um meio através do qual se
chega ao entendimento, consequentemente ao discernimento, o
que leva à Justiça. A Justiça é, pois, auto-suficiente e não
o Direito. E é por ela que se deve lutar. Um advogado é um
espelho da Justiça, possui independência moral, porque sabe
que não basta ser técnico das Letras Jurídicas e operar o
Direito. O advogado deve ser antes de tudo um homem de bem,
cujo coração palpita unicamente pelas coisas belas e imperecíveis.
Seu caráter molda-se à necessidade das coisas morais,
aprendendo a conservar o bom senso e a serenidade, projeta-se
acima dos acontecimentos não permitindo que estes o dominem.
Ser um homem de bem num mundo a delirar é poder crer em si
mesmo, com toda a força d’alma, ainda que todos o duvidem,
ainda que seja preciso trilhar o caminho que escolhera solitário,
nu e faminto; é cumprir a lei da Justiça e do amor, vigiando
seus próprios atos, procurando ser útil e desempenhando
corajosamente todo o bem que pode. Ser um homem de bem é não
envaidecer-se de suas virtudes, portar-se humildemente e com
nobreza, é melhorar a si mesmo dia após dia, cumprindo seus
deveres e respeitando os direitos, seus e de seus semelhantes;
é compensar o mal com a benevolência; é ser corajoso o
suficiente para num lance arriscar todos os seus haveres e
permanecer alheio ao resultado e sereno o bastante para
renovar o ânimo e voltar a percorrer todo caminho já andado,
ainda que os obstáculos pareçam maior. Ser um homem de bem
é, finalmente, não ter em si nada mais de humano...é ser
verdadeiramente Humano!
Sim, mudar é preciso. Mudar a
cultura jurídica dos reprodutores do direito. Mudar a nós
mesmos, reprodutores da vida. Façamos do Direito um
instrumento da Sabedoria que conduz à Justiça. Que seja o
Direito utilizado para educar, tornar sábios e ilibados os
homens, sem quaisquer distinções e privilégios. Que o
Direito possa ser filosofia, e não dogma. Que não seja
imposto mas compreendido. Que não seja utilizado como lâmina
tolhendo, em siêncio, a liberdade humana e sim como
intercessor da Verdade entre os homens. Que não seja
elitizado, mas que possa pertencer a todos.
Quanto a nós, futuros
operadores do Direito, possuímos a grandiosa missão de
sermos pacificadores de homens. Nossa tarefa consiste em unir
os homens. O Direito é um caminho e nós o construímos; é
palavra e nós a colocamos em movimento. Enquanto acadêmicos,
tivemos a oportunidade de conhecer este caminho e saber onde
ele pode levar, devemos agora colocar a palavra em movimento.
E para colocá-la em movimento é preciso que nos movamos
primeiro em sua direção, isto é, que vivamos os ideais que
tanto pregamos. Que possamos ingerir a idéia de Justiça e
assimilar o que ingerimos, mantendo, assim, um relacionamento
verdadeiro com o próximo, seja ele quem for.
Estes são os termos do
compromisso assumido desde que ingressamos na Academia de
Direito e estas são as derradeiras linhas. "Aos
Formandos do Curso de Direito da Universidade Federal do Acre
é chegado o momento de tomar em nossas mãos a missão de
construir um mundo melhor, trabalhando em prol da Humanidade,
no uso de nossas atribuições, fora e dentro do âmbito de
trabalho. Mas, acima de tudo, aperfeiçoar o espírito que há
em nós, de modo a nos tornarmos espelhos do que tanto
desejamos e necessitamos: Justiça, Igualdade, Fraternidade e
Paz."
CARTA-ABERTA
DAS MÃES SEM-TERRA
Às amigas do peito e do MAMA:
Enviamos a carta aberta das MÃES SEM TERRA. O conteúdo da
carta enviada à desembargadora Maria Isabel Benone e ao Poder
Judiciário,dispensa comentários. Entretanto aguça o
sentimento de luta e solidariedade.
Fraternalmente,
Concita Maia
Sec. Executiva MAMA.
Senhora
Desembargadora Maria Isabel Benone;
Desculpe- nos
se a forma de tratamento não é a adequada, à sua pessoa e
à autoridade qual a senhora esta investida. Nós,
humildemente, tomamos por decisão escrever-lhe, estas linhas,
para que, pela primeira vez a sua pessoa tenha aceso ao que
pensamos. Para fortalecer o juízo que a senhora faz de nós,
ou mesmo para que desse modo, reflita sobre as conseqüências
que derivam de suas decisões, das assinaturas que são
imprimidas por seu punho, nos documentos que trazem o símbolo
da justiça.
Todas temos
origem humilde. Muitas de nós gostaríamos de ter podido
sentar nos bancos de escola, e assim entender melhor o mundo
em que vivemos. Não nos foi dado este direito. Por isso muito
da noção que temos – nós mulheres, mães sem-terra - do
que é Justiça, foram nos repassadas pelas pregações
religiosas, tendo como referência , a Bíblia, livro que
todos conhecemos, mesmo os analfabetos. Este livro sempre faz
referência ao ato de justiça como conseqüência de um ato
necessário para a vida. Como necessidade para uma ação
fraterna. Como condição para dignidade, elementar para uma
vida de comunidade, expressa no ato cristão de dividir. De
dividir o pão. De dividir a riqueza. De dividir o amor. De
repartir a esperança . De repartir a alegria. Por isso a
moeda justiça, parecia-nos marcada na outra face, com o nome
repartir. Foi essa justiça que nós, de todas as crenças,
aprendemos como a maior mensagem de Cristo. Ele pois nos
ensinou a repartir.
Não sabemos de
todas a leis a que a senhora diz ser defensora, mas dizem que
todas elas são para fazer justiça. O nosso não saber não
é apenas porque nos submeteram a ignorância. São leis que não
fizemos, por isso com certeza, as leis justas para uns, podem
ser profundamente injustas para outros. Em nosso pais, sempre
estas leis, são justiça para os ricos, e punição para os
pobres.
Vossa sentença, que referenda o ato, que nos coloca pela
Quarta vez frente à ordem de despejo, é um exemplo típico
de que falamos a verdade. As leis e a justiça advogado pela
senhora, parece não conter o mínimo de senso de humanidade.
Parece não ter carne. Parece não ter alma. Preocupação
social.
Mas não nos surpreende a decisão do Poder Judiciário.
Afinal em toda história, que aprendemos em nossos
acampamentos, nunca este poder esteve de nosso lado. Sempre
esteve do lado de lá da cerca. Um poder que passou séculos
convivendo com a escravidão negra e décadas sob ditadura,
sem mudar um fio de cabelo - para que assim pudesse aproximar
mais dos pobres, daqueles que carecem de justiça - não pode
realmente nos dar a esperança de Justiça.
O que nos espanta é que a ordem, ou o referendo a ordem, para
que sejamos despejados, violentados, humilhados, agredidos,
torturados e até mortos - como mostra nossa história recente
- parta justamente das mão de uma mulher. Uma mulher como as
nossas mulheres. Mãe, se não, com o potencial para sê-la,
que tem o dom da vida, que é o exemplo da capacidade de se
doar ao outro, e nunca a de negação.
Sabe quantas
crianças estão em nosso meio senhora Dra.? Sabe a senhora o
que fazíamos, antes de conseguir abrigo e sonhos aqui debaixo
de lonas pretas? Sabe da fome Sra. Dra.? Sabe do choro de
nossas crianças, frente às ameaças da violência que partem
de seu punho? Três de nossas crianças foram baleadas numa ação
parecida no Paraná. Sabe a Senhora da dor, de ver os filhos
pisoteados, feridos a bala, mortos, como as mães de nossos
companheiros de Eldorado dos Carajás? Sabe a Senhora o que é
dor?
Deve saber o que é alegria. Deve saber do riso e da fartura.
Deve saber do dormir sem choro de criança com fome, e assim
acordar com a plena consciência do dever cumprido. Pouco
importando se, "seu ato de justiça", deixou a carne
de nosso filhos dilaceradas pelos dentes dos cachorros bem
nutridos da PM, ou se logo se anuncie, entre os sem terra, ao
próximo cortejo fúnebre.
Com a humildade
que temos, mas com a coragem que aprendemos, como fruto de
nossa vivência em coletivo, como irmãos, nós lhes dizemos:
Não recuaremos um passo da decisão de lutar por esta terra!
A justiça, Senhora Dra., para nós, é aquela que reparte o pão,
que reparte a riqueza, que só pode existir como fruto do
trabalho, da vida. Após 500 anos de escravidão e de ignorância,
de exclusão e opressão, de pobreza e miséria, chegou o
tempo de repartir. Chegou o tempo de nossa justiça, que para
a senhora pode não ser legal, mas que não há um jurista no
mundo que nos diga que não seja legítima.
Não queremos
enfrentar vossos animais, armas e homens. Nem suas armas,
homens e animais. Mas nós o enfrentaremos pela quarta vez. E
nós voltaremos de novo. E a senhora , e vossos juizes
assinaram de novo outra ordem para nos violentar. E voltaremos
de novo. E voltaremos outra vez. E cem vezes, e duzentas
vezes. Até que canse o seu punho "de fazer justiça".
Porque há corpos que se são destruídos pela violência de
vossa polícia. Mas há sonhos, que nem a mais potente arma,
de destruir coisas, poderá destruir.
Nós somos aquelas que parimos mais que filhos. Parimos os
homens do futuro. Eles serão educados sobre as terras
libertas ou sob nossas lonas pretas. Aprenderam a ler e a
escrever, coisa que muitos dos nossos não podem fazer. Viverão
para entender das leis, para mudá-las. Para faze-las de novo,
a partir das necessidades de nosso povo.
Desculpe-nos a
audácia, de querer ser lidas ou ouvidas, por quem está tão
distante. Visite-nos Sra. Dra. Verá que não há ladrões e
assassinos entre nós, como diz a imprensa. Até porque
aqueles que roubam nosso pais, e assassinam nossa pátria, não
estão no meio do povo. Verá a senhora que não
temos roupas bonitas, as mãos macias e claras, como suas
amigas de classe. Mas verá em nossos olhos de mãe, a cara de
nosso povo, que é a cara do povo brasileiro.
Comissão de Mães
Sem-Terra do Acampamento da Ex-Fazenda Taba.
Belém,12 de
março de 2000.
Maria Isabel
Benone: Desembargadora que retificou a decisão do Juiz da
Comarca de Mosqueiro, para despejar à força, pela Quarta
vez, 180 famílias sem-terra, de terras públicas pertencentes
a Prefeitura Municipal de Belém.
Estuda:
O direito está em
constante transformação. Se não lhe segues os passos, serás
cada dia um pouco menos advogado.
Pensa: Estudando
se aprende o direito, mas é pensando que ele se exerce.
Trabalha: A
advocacia é uma árdua tarefa posta a serviço da justiça.
Luta:
Teu dever é lutar pelo direito, mas se acaso um dia
encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela
justiça.
Sê leal:
Leal para com teu cliente, a quem não deves abandonar senão
quando te convenceres de que é indigno de ti. Leal para com
teu adversário ainda quando ele seja desleal para contigo.
Leal para com o juiz, que desconhece os fatos, e que deve
confiar no que lhe dizes, e que, mesmo quanto ao direito, às
vezes, tem de aceitar aquele que o invoca.
Tolera:
Tolera a verdade alheia assim como queres que a tua seja
tolerada.
Tem paciência:
O tempo vinga-se das coisas feitas sem a sua colaboração.
Tem fé:
Crê no direito como o melhor instrumento para o humano convívio;
crê na justiça como o objetivo normal do direito; crê na
paz como o substitutivo piedoso da justiça; acima de tudo, crê
na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem
paz.
Esquece: A
advocacia é uma luta de paixões. Se cada batalha deixar em
tua alma um rancor, logo chegará o dia em que a vida se terá
tornado impossível para ti. Findo o combate, esquece a tua
vitória tão depressa quanto a tua derrota.
Ama tua profissão:
Procura estimar a advocacia de tal maneira que, no dia em que
teu filho de pedir conselho sobre o seu destino, consideres
uma honra para ti aconselhá-lo que se faça advogado.
(Eduardo J.
Couture)
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