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Direitos Humanos e Cidadania

Palestra proferida pela profª. Flávia Piovesan no XX ENED, em Belém-PA, 18.07.99.

Um bom dia a todos. Inicialmente, eu gostaria de agradecer às entidades organizadoras o honroso convite para participar do XX ENED. Aproveito para cumprimentar os meus amigos da mesa, todos os presentes, dizer da minha extrema alegria, do meu encantamento por este convite.

É sempre muito difícil, é um desafio falar após o prof. João Batista. Eu lembro de uma passagem de Paulo Freire em que ele dizia ser este o tempo em que, mais que falar, é preciso falar a palavra certa. Falar a palavra que atua e que transforma. Sendo necessária a coragem do risco. Eu faço minhas essas palavras do prof. Paulo Freire, e presto a minha homenagem ao prof. João Batista pela vitalidade da sua fala, por esse convite irrecusável para essa caminhada que é a caminhada da utopia emancipatória dos direitos humanos.

E com isso eu, na qualidade de representante da segunda geração, tentarei aqui trazer algumas reflexões sobre cidadania e direitos humanos. E buscarei enfrentar três questões que me parecem centrais a essa reflexão. A primeira delas: o que são direitos humanos, qual é a concepção contemporânea de direitos humanos? Segunda questão: qual o impacto da globalização econômica no processo de efetivação dos direitos humanos? E por fim, o convite para a ação: qual é o nosso papel e a nossa responsabilidade na qualidade de agentes jurídicos na construção de uma prática renovada e emancipatória?

Eu começaria aqui com a primeira reflexão partindo dessa questão: o que são direitos humanos? E aí, eu trago aqui as lições de (...) quando afirma que a cidadania não é um dado, mas é um construído e um reconstruído, ou seja, direitos humanos são direitos históricos. Não são um dado em si mesmos, mas compõem uma inversão humana em constante dinâmica de construção e reconstrução. Mas não obstante a esta historicidade dos direitos humanos traduzem a todo tempo uma utopia, como bem falou o prof. João Batista. Uma plataforma emancipatória em reação, em repúdio às formas de opressão, exclusão, desigualdade e injustiça. Os direitos humanos combinam sempre esse exercício da capacidade de indignação com o sentimento de esperança, com o direito à esperança. Trata-se aqui de uma atitude de encantamento e trata-se, sobretudo, de buscar resgatar o potencial transformador das ações humanas e, por isso, eu fico extremamente satisfeita com a fala do prof. João Batista, que é um estímulo a essa crença de que nós somos atores sociais e somos responsáveis, sim, por nossas ações ou por nossas omissões, ou seja, ao potencial transformador das ações humanas.

E tendo em vista esse olhar histórico nós podemos afirmar que a definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. E considerando essa pluralidade nós optamos pela concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida há 50 anos atrás, com a Declaração de 48 e reiterada pela a Declaração de Viena de 1993.

Vejam, a Declaração Universal de 1948 nasce como resposta à barbárie, nasce como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Em face do regime do terror passa a imperar a lógica da discrição, na qual as pessoas são consideradas descartáveis em razão da não pertinência à determinada raça, a raça pura ariana. Com isso 18 milhões de pessoas passam por campos de concentração, 11 milhões de pessoas neles morrem, sendo que desse universo, 6 milhões são judeus, além de ciganos ou individuais do comunismo.

A Segunda Guerra traz a marca do Estado como grande delinqüente. E traz a barbárie do genocídio que resultou no maior número de civis mortos ao longo da humanidade. O regime de terror implicou na ruptura dos direitos humanos, e aí a necessidade de reconstrução desses direitos como diz Celso (...). Então vejam, em face da ruptura emerge a necessidade da reconstrução desse valor, como referencial ético, como panorama e como a utopia e a referência da ordem internacional. E a Declaração surge como esse horizonte moral da humanidade, como esse código de princípios e valores universais. Ela é o parâmetro que divide a civilização da barbárie. Ela remarca a concepção inovadora de que os direitos humanos são direitos universais e que a condição de pessoa é o requisito único, essencial e exclusivo para a dignidade, para o exercício e a titularidade de um direito. Ela é o marco da chamada globalização, ou internacionalização da cidadania e dos direitos humanos. Ela traz a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado de um Estado, não deve se reduzir às amarras, às fronteiras de um Estado. Porque revela tema de legítimo interesse da comunidade internacional.

Vejam, eu lia essa semana, dia 14.07.99, saía na Folha de São Paulo, que ONG’s devem levar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, o assassinato do eletricista alagoano José Joaquim Araújo, que havia acusado policiais de tortura e foi morto logo após. Então vejam, quando nós temos essa sensação de que as instituições nacionais são falhas ou omissas é possível projetar a questão dos direitos humanos à idéia internacional. Não obstante, a responsabilidade primária com relação aos direitos humanos é sempre do Estado, e a comunidade internacional tem essa responsabilidade subsidiária e adicional. Então vejam, isso traduz a idéia de que os direitos humanos são tema global. Os direitos humanos não têm fronteiras. Isso traz a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado. O Brasil não poderá falar à OEA que direitos humanos é tema nosso, ponto. Porque de um lado os direitos humanos, a qualquer tempo, em qualquer país, hoje, tem essa repercussão no campo internacional. Então a soberania passa a ser relativizada, na medida em que são admitidas intervenções em prol da proteção dos direitos humanos. E nós ganhamos em cidadania, nós ampliamos a nossa cidadania porque passamos a ter direitos protegidos aqui pela nossa construção e também na condição de sujeitos de direito pelos tratados internacionais de proteção de direitos humanos. Além disso, com a Declaração, inova, não só porque traz o resgate, a reconstrução dos direitos humanos, mas porque traz a idéia da indivisibilidade dos direitos humanos. Vejam: é tão importante ser livre como ser igual. É tão importante ser igual como ser livre. Os direitos humanos compreendem essa unidade indivisível, interdependente e interrelacionada. A declaração vem inovar prevendo que não há liberdade verdadeira sem igualdade e não há verdadeira igualdade sem liberdade. É por isso, que também concordo com essa ampliação de cidadania. A cidadania não pode ficar restrita ao aspecto político e civil. A cidadania que nós queremos, a democracia que nós queremos não é só a democracia do voto, a democracia política e civil, mas é a democracia econômica, é a democracia social, é a democracia cultural com todos os enfoques de gênero, raça, etnia, idade. Nós queremos reconstruir o conceito democrático.

Então vejam, à luz disso nós temos que afastar a equivocada noção que vem, fundamentalmente, da cultura liberal norte-americana, de que uma classe de direitos, os direitos civis e de cunho políticos, esses sim são verdadeiros direitos. Enquanto os direitos sociais, econômicos e culturais, ao revés, não merecem qualquer reconhecimento. Nós temos que romper, e acho que o ENED é o momento fundamental para afirmar a acionabilidade, a justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Direito à saúde, direito à educação, direito à moradia, direito ao trabalho não são generosidade ou caridade de alguns Estados. São os termos em que, prevê a nossa Constituição, os termos dos tratados internacionais são verdadeiros direitos públicos subjetivos e nós, digo, cultura jurídica, temos um débito lamentável em relação a construção de uma doutrina e de uma jurisprudência que realce a imperatividade jurídica desses direitos como verdadeiros direitos fundamentais. Quer dizer, os direitos fundamentais são direitos legais, constitucionais, internacionais, acionáveis, exigíveis e demandam sérias e responsáveis observâncias. E este, então, é o lema da Declaração de 48, este é o lema da Declaração de Viena de 93. Os direitos humanos são universais, interdependentes e interrelacionados. De nada adianta estarmos aqui, tendo a liberdade de expressão, liberdade que não teria como lembra o professor a 21 anos atrás, a 30 anos atrás, se não tivermos o acesso à educação, o acesso à saúde, o acesso à habitação. Quer dizer, os direitos humanos compõem essa unidade. Não há como violar meio direito humano. Quer dizer, quando há a violação aos direitos sociais, os direitos civis também são alcançados. A população que sofre, que é alvo preferencial da violência aos seus direitos civis, à sua integridade, é a população vulnerável no campo social, no campo econômico e no campo cultural.

Então vejam, com todas essas considerações nós passamos à segunda reflexão: qual é o impacto da globalização econômica no processo de efetivação dos direitos humanos à luz da experiência brasileira?
Podemos perceber que ao longo das últimas décadas os grandes desafios da América Latina foram: abertura política, estabilização econômica e reforma social. E, com o processo de globalização, a agenda desses países passou a incluir, como preocupação central, a inserção na economia e no mercado mundial com o aumento da competitividade internacional.

No entanto, no processo de globalização (e eu até cumprimento aqui o folden, eu lia a parte final, e eu vejo que nós comungamos posições com relação à globalização econômica), mas a globalização tem sido orientada (...) (parte perdida pela troca de lado da fita) de Washington, que é um fruto de um seminário realizado em 1990, em Washingnton, reunindo departamentos de Estados nos EUA, os ministérios das finanças dos demais grupos, é dos sete, e os presidentes dos vintes maiores bancos internacionais, como Fundo Monetário e Banco Mundial. É desse consenso que sai toda a inspiração, isso na década de 90, para as medidas econômicas neoliberais, voltadas para a reforma e estabilização das economias chamadas emergentes, notadamente as latino americanas.

Tem por plataforma o neoliberalismo, o Estado pequeno com redução das despesas públicas, a flexibilização dos direitos sociais, a disciplina fiscal, a reforma tributária e, fundamentalmente, a abertura do mercado ao comércio exterior. Eu convido a todos a lerem um livro, que ontem acabei de ler, um livro pequeno chamado "Brasil Privatizado", em que há dados mais alarmantes do modo pelo qual o nosso Brasil tem sido vendido e o modo pelo qual há essa abertura ao comércio internacional. Esse processo, segundo estatísticas, tem agravado ainda mais o dualismo econômico, e isso trata da realidade latino americana: o aumento das desigualdades sociais e do desemprego, em prol da austeridade econômica.

No caso brasileiro, de acordo com o relatório da OEA dos Direitos Humanos do Brasil, 66% da população rural do Brasil encontra-se abaixo da linha da pobreza, ao passo que a proporção de pobres nas zonas urbanas é de quase 40%. O Brasil, nós todos sabemos em razão do relatório das Nações Unidas publicado dia 11 de julho, agora há uma semana, que o Brasil é o 79º país, entre 174 países do mundo, no índice de desenvolvimento e esse mesmo relatório aponta as assimetrias do processo de globalização. A tese central, vejam, a tese central das Nações Unidas, enquanto organismo internacional, é que a integração econômica do planeta, chamada globalização, tem contribuído para aumentar as desigualdades. E aqui eu trago dados, a assimetria está dada pelo fato, vejam bem, de que a parcela de 20% da população mundial que vive nos países de renda mais (...) concentra 86% do PIB mundial, concentra 82% das exportações mundiais, 78% de investimentos direitos, 74% das linhas telefônicas. Para os 20% mais pobres, sobra 1% do PIB mundial, sobra 1% das exportações mundiais, 1% de investimentos e 1,1% das linhas telefônicas, de números de telefones.

Então vejam, faz-se claro, que esse é um relatório científico, feito por indicadores e pesquisadores, faz-se claro o impacto perverso da globalização econômica, notadamente no caso brasileiro. Como eu disse, há o agravamento desse dualismo econômico e estrutural dos países periféricos, um aumento das desigualdades, da pobreza. Grande parte da população vive mais no estado de natureza do que propriamente no estado civil de direito, o que vem a comprometer a idéia da indivisibilidade e da universalidade dos direitos humanos. Educação, saúde, previdência de direitos fundamentais básicos, reduzem-se a conceitos de mercadoria, objeto de compra e venda e são lançados na dinâmica de livre mercado, num contexto bastante desigual, que pelo relatório da ONU, o mais desigual do planeta. O Brasil continua recordista em concentração de renda no mundo e o PIB dos 20% mais ricos é 32 vezes maior do que o PIB dos 20% mais pobres. Nós temos que agregar a esse autoritarismo econômico social, nós temos que agregar a fragilidade do nosso processo de democratização, se nós rompemos com o regime ditatorial, a partir de 85, com o regime da transição lenta e gradual, ainda nos falta essa segunda etapa de consolidação do processo democrático. Quer dizer, é como se a democratização apresentasse dois momentos: a transição para a democracia e a consolidação democrática. Então nós temos que ter uma avaliação crítica do balanço desses quatorze anos de vivência democrática.

O processo de globalização, portanto, tem esse impacto perverso trazendo esse esvaziamento das noções de universalidade, indivisibilidade dos direitos humanos. Fomenta a desigualdade social e a exclusão social.
E por fim, passo para a última reflexão: qual é o nosso papel, qual é a nossa responsabilidade, na qualidade de agentes jurídicos, na construção de uma prática renovada?

Inicialmente, destaco o desafio da construção de um novo paradigma pautado por uma agenda de inclusão social. Nós estamos à frente desse desafio, que é recuperar a prevalência dos direitos humanos como valor paradigmático e referencial, na busca de um novo consenso, pós-Washington, que aponte a um desenvolvimento sustentável mais igualitário e mais democrático. O próximo milênio tem como débito a globalização da democracia e a globalização dos direitos humanos. Eu chamo atenção a um fato peculiar, os próprios formuladores do consenso de Whashington, dentre eles Joseph (...), que é o vice-presidente do Banco Mundial, hoje reconhece, criticamente, que a agenda desse consenso é reduzida, é insatisfatória, é insuficiente e que ela deve abarcar temas como o desenvolvimento humano, educação, meio ambiente, dentre outros.
Ao imperativo da eficiência, da eficácia econômica nós temos que agregar e conjugar a exigência ética de justiça social inspirada em uma ordem democrática que garanta pleno exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Enquanto agentes jurídicos e atores sociais, acho que é o momento de nós resgatarmos a força normativa da Constituição. Nós sabemos que a Constituição é tanto o que nós somos enquanto sociedade, mas, sobretudo, o que nós pretendemos ser. Nós temos que resgatar a força normativa dos tratados internacionais de direitos humanos. Hoje, nós vivemos a internacionalização dos direitos constitucionais somada à constitucionalização do direito internacional. Nós temos aqui uma ampla responsabilidade, que é fundamental ante de intenso envolvimento dos agentes jurídicos. Contudo, nós sabemos em larga escala que estes apresentam um forte perfil conservador, têm no direito menos um instrumento de transformação social e mais um instrumento de conservação social. Nós temos que despertar esse potencial ético e esse potencial transformador do fenômeno jurídico. Grande parcela dos agentes jurídicos ainda tem marcada formação privativa e não publicista, lêem a Constituição com um olhar de 16, do Código Civil, ou de 40, do Código Penal. A Constituição passa a ser interpretada à luz de categorias envelhecidas da nossa ordem infra-constitucional.

Também faz-se fundamental à cultura jurídica brasileira, aprimorar conhecimento no direito internacional público, em especial no direito internacional dos direitos humanos. Nós temos que romper essa distância entre direito internacional e direito interno, quando o que está em jogo é a defesa da dignidade humana. Nós temos que somar essas duas perspectivas. Lembraria ainda que a formação jurídica brasileira é orientada por uma órbita formalista e é fundamental que nós possamos nos situar na história e possamos olhar para esse Brasil tão complicado, tão complexo, tão contraditório, país número um em desigualdade social, país número dois em violência, perdendo hoje para a Colômbia.
Hoje, mais do que nunca, nós sentimos que o mundo não está em ordem, mas que a ordenação é sempre um problema central e aberto, como já ponderava Canotilho: "Se o passado já foi escrito, o presente e o futuro hão ser inventados". Recaindo-nos a responsabilidade por nossas ações e omissões na qualidade de atores sociais, construtores da nossa história e por ela responsáveis. Como lembra Saramago: "As pessoas nascem todos os dias, só delas é que dependem continuar a viver o dia de ontem ou começar, de raiz e berço, um dia novo, hoje".
Que nós possamos recomeçar com a certeza do potencial transformador das ações humanas. Que tenhamos serenidade, coragem, humildade, ousadia e criatividade. Que possamos fazer do direito um instrumento emancipatório em prol da revitalização e do resgate da dignidade humana. E que possamos buscar, como nos lembrava o professor João Batista, no valor da utopia o alimento das nossas mentes e das nossas almas. E eu termino com as palavras do poeta Eduardo Galeano, que ao indagar para o que serve a utopia, declama: "Ela está no horizonte, me aproximo dois passos, ela se distancia outros dois. Caminho dez passos, e o horizonte se afasta mais dez. Por mais que caminhe nunca poderei alcançá-la. Para quê serve a Utopia? Para isto serve: para que nós possamos caminhar." E os direitos humanos traduzem, digo eu, um irrecusável convite a esta caminhada.

Muito obrigada!

* (...) parte do texto que não foi possível identificar na fita de gravação. 

Mensagem original do discurso proferido na Colação de Grau dos Formandos do Curso de Direito da UFAC no ano de 1999.

"Uma vez na história um jovem chamado Karl Marx, no auge de seus 17 anos de idade, desconhecido para o seu tempo, escrevera a carta que mais tarde seria lida pelo mundo. Mal sabia ele que suas palavras torna-se-iam pilar de um novo pensamento, de uma imortalizada fonte de justiça social e que hoje ainda permanecem testemunhando um sonho aparentemente impossível, uma utopia transgressora à cultura do mundo que prega a exploração do homem pelo homem. O jovem morreu, mas suas palavras jamais serão apagadas. Dizia ele: "Se o homem trabalha apenas para si próprio, poderá porventura tornar-se um erudito célebre, um grande sábio ou um excelente poeta, mas nunca será um homem completo, verdadeiramente grande ... Se escolhermos uma tarefa em que possamos trabalhar o máximo pela humanidade não fruiremos, então, uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões (de pessoas)."

Mais que operar o direito é preciso viver a justiça. Aquele que faz do Direito profissão possui como maiores bens a consciência e a conduta. No desempenho de sua função transmite com lealdade e integridade os ensinamentos que um dia recebera, jamais descuidando do estudo, por compreender que mesmo o mais grandioso dos mestres não deixa de ser discípulo fiel de sua arte, porque todas as formas estão sujeitas à evolução e o Direito não foge à regra. Um advogado permanece em eterno aprendizado, tanto no exercício da profissão como no silêncio de sua sala.

Mas o mundo não precisa tão somente de operadores do direito, mas de artistas, pois o Direito é das artes a mais bela. É ele que funciona como um porta-voz da filosofia do Bem Comum e como um Arauto da Justiça entre os homens, reunindo em si os princípios que norteiam a vida humana. A filosofia do Direito mantém viva a esperança de um mundo construído sobre o alicerce da liberdade, igualdade e fraternidade; está sempre a lembrar ao homem de seu compromisso firmado com a vida, consigo mesmo e com os de sua espécie. O Direito está no homem e o homem o coloca em movimento. No instante de maior perigo, quando o homem coloca a risco o próprio homem, restará sempre a chama do Direito alertando para a ameaça de um provável fim, sendo mais uma vez utilizado como um farol apontando o caminho. Em verdade, o Direito não é o conjunto de leis e princípios reunidos em livros. Os livros são devorados pelas traças e as palavras o tempo as consome. Antes de tudo o Direito é obra do espírito que habita no homem, é um feixe de luz entrecortando as trevas mortais do engano, desespero, pessimismo e loucura; é uma voz que lembra ao homem de sua humanidade esquecida, violada, abandonada. É ela que diz: "Homem, luta pela paz e trata os de tua espécie como iguais. Não é a justiça que semeia a discórdia, o erro e a incompreensão, pois não é ela contrária a si. Os homens é que deturpam a verdade perfeita com sua sede de poder e se colocam acima uns dos outros em busca de uma paz onde o dominado aceita o domínio por sentir-se desprovido de conhecimento e o dominante, de posse dos meios de ensino e massificação, permanece no cume da pirâmide do poder. Homem, a escolha é tua transformar o mundo em pedra ou diamante. Está no processo de tua evolução aprender que sem valores o teu caráter não consegue enfrentar as tempestades da cobiça e do individualismo. Mais cedo ou mais tarde, descobrirás que concentrado-se nas virtudes e acreditando nelas o sacrifício de tua vantagem pessoal em nome do ganho coletivo será motivo de gozo e não de dor."

Mas o mundo não precisa tão somente de artistas, precisa de livres pensadores, homens de olhar crítico e ação reta. Que não sejam técnicos reprodutores de pensamentos concebidos na ideologia da dominação social, onde o mais forte se apodera do mais fraco, condenando-lhe, sem o devido processo legal, à prisão sem paredes ou grades, modelada para a mente, chamada ignorância humana; que não se conformem frente à tamanha desigualdade social e passem a questionar a estrutura orgânica da sociedade, sua contextualização histórica donde o Direito é substrato, pois a história é para o homem o auto-conhecimento humano; que não se calem diante dos inúmeros casos de violação à dignidade da pessoa humana e mesmo quando forem considerados louco pelos que se julgam sãos, empenhem-se na árdua luta da busca da verdade e da aplicação do Direito como formas de se chegar à Justiça, que é pacífica, imparcial e discernida; que trabalhem no sentido de que o ensino jurídico deixe de produzir profissionais adestrados na manipulação dos Códigos e das leis, apoiando alternativas que tornem mais eficiente a atuação da Justiça perante as necessidades da comunidade; que em nome desta mesma Justiça estes homens de visão crítica e atitude reta não se permitam alienar pela linguagem erudita e arcaica ainda utilizada nas petições e sentenças ou pelo amontoado de papéis a que chamam processo, que não se deixem prender às formas criteriosas do meio jurídico, seguindo cegamente a sua sistemática sem antes questionar e entender os seus motivos, que não se deixem cegar pela competição e que, acima de tudo, aprendam a lidar com pessoas, com vidas humanas, com sentimentos e esperanças dos que no processo litigam, ou melhor, degladiam civilizadamente.

Mas o mundo não precisa tão somente de livres pensadores, de olhar crítico e ação, o mundo precisa de homens e a humanidade não foi aprendida na Academia de Direito.

Se um dia estivermos cegos pela busca desenfreada de nossas satisfações pessoais e decidirmos então fazer do Direito um mero instrumento de alcance de nossos interesses mesquinhos e iníquos, seja o desejo de uma carreira brilhante, sucesso e prestígio, seja o sonho do poder e da riqueza, que possamos olhar para o céu e permitir que Deus nos toque o coração de modo a recuperarmos a sanidade perdida para que o egoísmo dê lugar ao ideal de mudança, pois não é decorando artigos dos Códigos e sabendo todos os detalhes a serem questionados nos Concursos que estaremos exercendo plenamente a cidadania, isso apenas nos introjeta no mundo burocrático marcado pela ineficiência, pela despersonalização e pela dureza.

O Direito não é um fim em si mesmo mas uma escala de valores, um meio através do qual se chega ao entendimento, consequentemente ao discernimento, o que leva à Justiça. A Justiça é, pois, auto-suficiente e não o Direito. E é por ela que se deve lutar. Um advogado é um espelho da Justiça, possui independência moral, porque sabe que não basta ser técnico das Letras Jurídicas e operar o Direito. O advogado deve ser antes de tudo um homem de bem, cujo coração palpita unicamente pelas coisas belas e imperecíveis. Seu caráter molda-se à necessidade das coisas morais, aprendendo a conservar o bom senso e a serenidade, projeta-se acima dos acontecimentos não permitindo que estes o dominem. Ser um homem de bem num mundo a delirar é poder crer em si mesmo, com toda a força d’alma, ainda que todos o duvidem, ainda que seja preciso trilhar o caminho que escolhera solitário, nu e faminto; é cumprir a lei da Justiça e do amor, vigiando seus próprios atos, procurando ser útil e desempenhando corajosamente todo o bem que pode. Ser um homem de bem é não envaidecer-se de suas virtudes, portar-se humildemente e com nobreza, é melhorar a si mesmo dia após dia, cumprindo seus deveres e respeitando os direitos, seus e de seus semelhantes; é compensar o mal com a benevolência; é ser corajoso o suficiente para num lance arriscar todos os seus haveres e permanecer alheio ao resultado e sereno o bastante para renovar o ânimo e voltar a percorrer todo caminho já andado, ainda que os obstáculos pareçam maior. Ser um homem de bem é, finalmente, não ter em si nada mais de humano...é ser verdadeiramente Humano!

Sim, mudar é preciso. Mudar a cultura jurídica dos reprodutores do direito. Mudar a nós mesmos, reprodutores da vida. Façamos do Direito um instrumento da Sabedoria que conduz à Justiça. Que seja o Direito utilizado para educar, tornar sábios e ilibados os homens, sem quaisquer distinções e privilégios. Que o Direito possa ser filosofia, e não dogma. Que não seja imposto mas compreendido. Que não seja utilizado como lâmina tolhendo, em siêncio, a liberdade humana e sim como intercessor da Verdade entre os homens. Que não seja elitizado, mas que possa pertencer a todos.

Quanto a nós, futuros operadores do Direito, possuímos a grandiosa missão de sermos pacificadores de homens. Nossa tarefa consiste em unir os homens. O Direito é um caminho e nós o construímos; é palavra e nós a colocamos em movimento. Enquanto acadêmicos, tivemos a oportunidade de conhecer este caminho e saber onde ele pode levar, devemos agora colocar a palavra em movimento. E para colocá-la em movimento é preciso que nos movamos primeiro em sua direção, isto é, que vivamos os ideais que tanto pregamos. Que possamos ingerir a idéia de Justiça e assimilar o que ingerimos, mantendo, assim, um relacionamento verdadeiro com o próximo, seja ele quem for.

Estes são os termos do compromisso assumido desde que ingressamos na Academia de Direito e estas são as derradeiras linhas. "Aos Formandos do Curso de Direito da Universidade Federal do Acre é chegado o momento de tomar em nossas mãos a missão de construir um mundo melhor, trabalhando em prol da Humanidade, no uso de nossas atribuições, fora e dentro do âmbito de trabalho. Mas, acima de tudo, aperfeiçoar o espírito que há em nós, de modo a nos tornarmos espelhos do que tanto desejamos e necessitamos: Justiça, Igualdade, Fraternidade e Paz."

CARTA-ABERTA DAS MÃES SEM-TERRA

Às amigas do peito e do MAMA:
Enviamos a carta aberta das MÃES SEM TERRA. O conteúdo da carta enviada à desembargadora Maria Isabel Benone e ao Poder Judiciário,dispensa comentários. Entretanto aguça o sentimento de luta e solidariedade.
Fraternalmente,

Concita Maia
Sec. Executiva MAMA.

Senhora Desembargadora Maria Isabel Benone;

Desculpe- nos se a forma de tratamento não é a adequada, à sua pessoa e à autoridade qual a senhora esta investida. Nós, humildemente, tomamos por decisão escrever-lhe, estas linhas, para que, pela primeira vez a sua pessoa tenha aceso ao que pensamos. Para fortalecer o juízo que a senhora faz de nós, ou mesmo para que desse modo, reflita sobre as conseqüências que derivam de suas decisões, das assinaturas que são imprimidas por seu punho, nos documentos que trazem o símbolo da justiça.

Todas temos origem humilde. Muitas de nós gostaríamos de ter podido sentar nos bancos de escola, e assim entender melhor o mundo em que vivemos. Não nos foi dado este direito. Por isso muito da noção que temos – nós mulheres, mães sem-terra - do que é Justiça, foram nos repassadas pelas pregações religiosas, tendo como referência , a Bíblia, livro que todos conhecemos, mesmo os analfabetos. Este livro sempre faz referência ao ato de justiça como conseqüência de um ato necessário para a vida. Como necessidade para uma ação fraterna. Como condição para dignidade, elementar para uma vida de comunidade, expressa no ato cristão de dividir. De dividir o pão. De dividir a riqueza. De dividir o amor. De repartir a esperança . De repartir a alegria. Por isso a moeda justiça, parecia-nos marcada na outra face, com o nome repartir. Foi essa justiça que nós, de todas as crenças, aprendemos como a maior mensagem de Cristo. Ele pois nos ensinou a repartir.

Não sabemos de todas a leis a que a senhora diz ser defensora, mas dizem que todas elas são para fazer justiça. O nosso não saber não é apenas porque nos submeteram a ignorância. São leis que não fizemos, por isso com certeza, as leis justas para uns, podem ser profundamente injustas para outros. Em nosso pais, sempre estas leis, são justiça para os ricos, e punição para os pobres.
Vossa sentença, que referenda o ato, que nos coloca pela Quarta vez frente à ordem de despejo, é um exemplo típico de que falamos a verdade. As leis e a justiça advogado pela senhora, parece não conter o mínimo de senso de humanidade. Parece não ter carne. Parece não ter alma. Preocupação social.
Mas não nos surpreende a decisão do Poder Judiciário. Afinal em toda história, que aprendemos em nossos acampamentos, nunca este poder esteve de nosso lado. Sempre esteve do lado de lá da cerca. Um poder que passou séculos convivendo com a escravidão negra e décadas sob ditadura, sem mudar um fio de cabelo - para que assim pudesse aproximar mais dos pobres, daqueles que carecem de justiça - não pode realmente nos dar a esperança de Justiça.
O que nos espanta é que a ordem, ou o referendo a ordem, para que sejamos despejados, violentados, humilhados, agredidos, torturados e até mortos - como mostra nossa história recente - parta justamente das mão de uma mulher. Uma mulher como as nossas mulheres. Mãe, se não, com o potencial para sê-la, que tem o dom da vida, que é o exemplo da capacidade de se doar ao outro, e nunca a de negação.

Sabe quantas crianças estão em nosso meio senhora Dra.? Sabe a senhora o que fazíamos, antes de conseguir abrigo e sonhos aqui debaixo de lonas pretas? Sabe da fome Sra. Dra.? Sabe do choro de nossas crianças, frente às ameaças da violência que partem de seu punho? Três de nossas crianças foram baleadas numa ação parecida no Paraná. Sabe a Senhora da dor, de ver os filhos pisoteados, feridos a bala, mortos, como as mães de nossos companheiros de Eldorado dos Carajás? Sabe a Senhora o que é dor?
Deve saber o que é alegria. Deve saber do riso e da fartura. Deve saber do dormir sem choro de criança com fome, e assim acordar com a plena consciência do dever cumprido. Pouco importando se, "seu ato de justiça", deixou a carne de nosso filhos dilaceradas pelos dentes dos cachorros bem nutridos da PM, ou se logo se anuncie, entre os sem terra, ao próximo cortejo fúnebre.

Com a humildade que temos, mas com a coragem que aprendemos, como fruto de nossa vivência em coletivo, como irmãos, nós lhes dizemos: Não recuaremos um passo da decisão de lutar por esta terra! A justiça, Senhora Dra., para nós, é aquela que reparte o pão, que reparte a riqueza, que só pode existir como fruto do trabalho, da vida. Após 500 anos de escravidão e de ignorância, de exclusão e opressão, de pobreza e miséria, chegou o tempo de repartir. Chegou o tempo de nossa justiça, que para a senhora pode não ser legal, mas que não há um jurista no mundo que nos diga que não seja legítima.

Não queremos enfrentar vossos animais, armas e homens. Nem suas armas, homens e animais. Mas nós o enfrentaremos pela quarta vez. E nós voltaremos de novo. E a senhora , e vossos juizes assinaram de novo outra ordem para nos violentar. E voltaremos de novo. E voltaremos outra vez. E cem vezes, e duzentas vezes. Até que canse o seu punho "de fazer justiça". Porque há corpos que se são destruídos pela violência de vossa polícia. Mas há sonhos, que nem a mais potente arma, de destruir coisas, poderá destruir.
Nós somos aquelas que parimos mais que filhos. Parimos os homens do futuro. Eles serão educados sobre as terras libertas ou sob nossas lonas pretas. Aprenderam a ler e a escrever, coisa que muitos dos nossos não podem fazer. Viverão para entender das leis, para mudá-las. Para faze-las de novo, a partir das necessidades de nosso povo.

Desculpe-nos a audácia, de querer ser lidas ou ouvidas, por quem está tão distante. Visite-nos Sra. Dra. Verá que não há ladrões e assassinos entre nós, como diz a imprensa. Até porque aqueles que roubam nosso pais, e assassinam nossa pátria, não estão no meio do povo. Verá a senhora que não
temos roupas bonitas, as mãos macias e claras, como suas amigas de classe. Mas verá em nossos olhos de mãe, a cara de nosso povo, que é a cara do povo brasileiro.

Comissão de Mães Sem-Terra do Acampamento da Ex-Fazenda Taba.

Belém,12 de março de 2000.

Maria Isabel Benone: Desembargadora que retificou a decisão do Juiz da Comarca de Mosqueiro, para despejar à força, pela Quarta vez, 180 famílias sem-terra, de terras públicas pertencentes a Prefeitura Municipal de Belém. 

Mandamentos do Advogado

Estuda: O direito está em constante transformação. Se não lhe segues os passos, serás cada dia um pouco menos advogado.

Pensa: Estudando se aprende o direito, mas é pensando que ele se exerce.

Trabalha: A advocacia é uma árdua tarefa posta a serviço da justiça.

Luta: Teu dever é lutar pelo direito, mas se acaso um dia encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça.

Sê leal: Leal para com teu cliente, a quem não deves abandonar senão quando te convenceres de que é indigno de ti. Leal para com teu adversário ainda quando ele seja desleal para contigo. Leal para com o juiz, que desconhece os fatos, e que deve confiar no que lhe dizes, e que, mesmo quanto ao direito, às vezes, tem de aceitar aquele que o invoca.

Tolera: Tolera a verdade alheia assim como queres que a tua seja tolerada.

Tem paciência: O tempo vinga-se das coisas feitas sem a sua colaboração.

Tem fé: Crê no direito como o melhor instrumento para o humano convívio; crê na justiça como o objetivo normal do direito; crê na paz como o substitutivo piedoso da justiça; acima de tudo, crê na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem paz.

Esquece: A advocacia é uma luta de paixões. Se cada batalha deixar em tua alma um rancor, logo chegará o dia em que a vida se terá tornado impossível para ti. Findo o combate, esquece a tua vitória tão depressa quanto a tua derrota.

Ama tua profissão: Procura estimar a advocacia de tal maneira que, no dia em que teu filho de pedir conselho sobre o seu destino, consideres uma honra para ti aconselhá-lo que se faça advogado.

 

(Eduardo J. Couture)

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