I
Conferência Municipal de Cidadania e Direitos Humanos
Santo André – 1999
DESMISTIFICANDO
O TEMA DIREITOS HUMANOS
Mesa
de Debates
Antonio
Carlos Ribeiro Fester
Nilmário
Miranda
Coordenação
e Comentários
Celso
Daniel
Antonio
Carlos Ribeiro Fester -
Boa Noite! Estão me ouvindo direito? Estão? Eu queria primeiro
dizer da minha alegria de estar aqui, cumprimentar os
organizadores do evento, agradecer o convite, cumprimentar a todos
e parabenizá-los.
Eu
fui incumbido de fazer uma introdução para definir direitos
humanos – porque se fala muito a respeito, mas nem todo mundo
sabe direito o que seja direitos humanos – então, eu vou estar
conceituando um pouco isso.
Eu
olho para vocês, e é pena que sejam tantos, que esteja meio
escuro e que falte tempo para conhecer um por um, porque vejo que
cada um de vocês é único e irrepetível. Cada um de vocês tem
uma determinada impressão digital, um determinado tom de voz, uma
determinada personalidade, uma determinada contribuição a dar
para a comunidade. Isso significa, inclusive, que crianças que
morrem de fome antes de completar um ano ou cinco anos etc., têm
a possibilidade de dar essa contribuição, que seria única, perdida
pela humanidade. A humanidade é quem
perde com esse desrespeito aos direitos humanos, que faz com que,
em nosso país, tanta gente morra de fome. Mas, enquanto digo
isso, penso numa frase do Sófocles, do século IV a.C., em
que ele diz: “Muitas
maravilhas há, mas a maior delas é o homem.” Acho
importante estarmos pensando nisso, de que somos únicos e
insubstituíveis, a maior maravilha da criação, porque a nossa
auto-estima anda muito por baixo e precisamos começar a nos
estimar para podermos estar estimando o outro. Nessa mesma peça,
Antígone, que conta a história da mulher que desrespeita a ordem
do rei de deixar insepulto o seu irmão – e muitos a consideram
como o primeiro texto a tratar da questão dos direitos humanos –
a mulher age contra a vontade do rei que
mandou deixar o seu irmão insepulto fora da cidade, ela vai,
enterra o irmão e diz: “Agi
em nome de uma lei muito mais antiga do que o rei, uma lei que se
perde na origem dos tempos.” E é um pouco essa a lei dos
direitos humanos. É uma lei essencial, universal, que se perde na
origem dos tempos, ainda que tenha sido sistematizada e esteja
sendo trabalhada a partir
do Iluminismo, da Revolução Francesa etc.
O
que seriam os direitos humanos ? São os direitos necessários
para a satisfação das necessidades humanas fundamentais. São os
direitos fundamentais da pessoa humana. São os direitos que
garantem a dignidade e a integridade da pessoa. Os direitos que
fazem parte da pessoa, que
fazem com que uma pessoa seja realmente uma pessoa. Enfim,
direitos humanos é o direito de ser gente! Porque não basta
viver, é preciso viver com dignidade.
E
o que caracterizaria o ser humano na sua dignidade de pessoa ? A
subsistência em condições dignas; certos atributos do ser
humano, tais como o direito fundamental à vida e outros; a
liberdade como sendo a possibilidade de orientar-se pela decisão
individual ou grupal; e a igualdade.
E
é sobretudo na igualdade que o tema dos direitos humanos “emperra”,
no Brasil. É
muito difícil estabelecer-se
uma cultura de direitos humanos no Brasil, na medida em que
somos um dos países mais desigualitários do mundo. Nós somos a
segunda concentração de renda no mundo, só perdemos para
Botsuana, um país africano. Cerca de 53% do produto interno bruto
do Brasil está nas mãos dos 10% mais ricos. Enquanto no Japão,
um dos sete países mais ricos, o salário mais alto é dez vezes
superior ao salário mínimo, aqui chegamos a ter o salário mais
alto trezentas vezes superior ao salário mínimo. O salário
mínimo não é mínimo, é uma piada. O salário mínimo digno
desse nome, deveria ser algo pelo menos em torno de R$ 1.800,00.
Nós somos, como inclusive foi comentado aqui, o resultado de uma
sociedade escravocrata, absolutamente autoritária, com desprezo
pela vida, na medida em que o negro, durante a escravidão, nunca
foi considerado como uma pessoa, mas como um objeto. Se formos
estudar a história das revoltas que tivemos durante o Brasil
Colonial, vamos ver que as pessoas eram punidas, mas não os
negros. Eles eram vendidos de um Estado para o outro, porque eram
um objeto.
Então
esse desprezo pela vida humana é muito incorporado pela nossa
cultura, e também esse problema econômico, esse problema
cultural do brasileiro se afirmar pelo Q.I,
pelo “quem indica”, pelo “quem
ele conhece”, é o clientelismo das relações políticas,
pelo poder que se estabelece através de relações de nomes de
família e através de dinheiro. É muito recente, em nossa
cultura, que as pessoas se afirmem pelo ser, pelo que são, pelo
que produzem, pelo que trabalham, e é aí que está a base da
verdadeira identidade.
Mas
a identidade, boa parte do tempo, foi baseada no ter e não no
ser. Ter amigos, ter dinheiro, ter cargos,
inclusive por que o funcionalismo
é, para muitos, um palavrão ? Porque, nas suas origens, o funcionalismo era
emprego para aqueles que tinham quem os indicassem. Concursos
públicos são recentes na história do País. Têm, no máximo,
30 ou 40 anos. Assim como a nossa Universidade não tem 70 anos, e
os cursos de pós-graduação são da década de 70.
Estou
falando tudo isso porque é através do conhecimento que se mudam
as mentalidades e que se combatem os preconceitos. Porque
trabalhar com direitos humanos é trabalhar com mentalidades. A
mentalidade é alguma coisa que não é crítica, responsável
pela longa duração na história.
Precisamos
pensar a igualdade. Não só a igualdade econômica, mas pensar a
igualdade em termos de mentalidade. Já está provado, pelo
socialismo real, que lá o pessoal teve igualdade: igualdade em
termos de habitação, assistência à saúde etc. e tal, mas não
se trabalhou a subjetividade. Nós precisamos trabalhar a
subjetividade. Há uma frase do Frei Betto que diz muito bem isso:
“O socialismo socializou
os bens e privatizou o sonho. O capitalismo socializou o sonho e
privatizou os bens”. Por exemplo, uma propaganda de tênis
na televisão, para todo mundo comprar, podendo ou não. Mas
privatizou os bens, os bens estão nas mãos de poucos. Enquanto
isso, o chamado socialismo real socializou os bens mas privatizou
os sonhos. Não deu lugar às utopias, e isso fica muito claro,
inclusive, nas formas de ensino desses países, que eu me dei ao
trabalho de analisar. E onde há essencialmente um trabalho que
chamamos de educação bancária, que é a educação onde você
vai e deposita o conhecimento na cabeça do aluno como se fosse um
cofre. Quer dizer, Paulo Freire não chegou pra valer em Cuba e em
outros lugares. Agora parece que está havendo alguma experiência
nesse sentido, através da educação popular informal.
Creio
que se deve pensar em igualdade a partir da condição humana.
Pensar igualdade no sentido de que nós todos somos um infinito de
possibilidades. Eu não sei o que serei amanhã, sei o que sou
hoje. E, dependendo das circunstâncias, pode ser que amanhã eu
seja um assassino, e, aliás, porque no meu passado, por alguns
momentos se eu tivesse uma arma na mão eu a usaria, é por isso
que não a tenho. Porque sei que sou capaz de matar. Assim como as
duas vezes em que estive perto de uma roleta, descobri que adorava
jogar, e foi por isso que não houve a terceira vez.
Estou
falando aqui um conceito de um nome muito importante da
contracultura da década de 60, que é Norman Brown, que
conceituou loucura
controlada, no livro Vida Contra Morte, que a editora Vozes
publicou. Precisamos parar de nos vermos como gente boa, mas
assumirmos também tudo o que somos capazes de fazer de ruim, e
nessa medida, colocar limites, se auto-policiar, porque a maior
parte dos que estão na cadeia por assassinato são assassinos
primários, que deram um tiro em briga de bar, em briga de
família, em brigas de trânsito e que se julgavam incapazes de
matar. Então nós temos que assumir, Sartre já nos dizia isso: “Se
quisermos assumir a grandeza do homem, temos que assumir também a
sua baixeza.”. Isso me lembra meu pai. Ele era o primo pobre
de uma família importante, e toda vez, que ela aparecia no
jornal, ele dizia: esse é meu primo, essa é minha prima. Daí,
um dia, apareceu um assassino com o mesmo sobrenome e eu disse:
olha o seu primo aqui ! E ele respondeu : Ah ! Esse aí não é
meu primo.
Portanto,
em termos de mentalidade, é necessário pensarmos o problema da
igualdade, e nos descobrirmos iguais a todos. Nem melhores nem
piores, mas diferentes. Diferentes enquanto indivíduos e iguais
enquanto potencialidades humanas. Capazes de assassinar, capazes
de salvar vidas; capazes de chorar, capazes de rir. Na medida em
que somos únicos, somos diferentes uns dos outros, jamais
desiguais.
Quero
lembrar que os direitos humanos são essenciais, ou seja, são
inerentes a todo e qualquer ser humano. São universais e
pertencem a todos os homens – sem exceção. Não só a
trabalhadores sofridos, vítimas de bandidos, pobres ou ricos.
São inalienáveis, ninguém pode decidir se o outro é digno de
respeito ou não. Ninguém pode decidir se o outro é digno de
viver ou não. E são invioláveis, existem independentemente das
leis. As leis apenas os consagram. Os direitos humanos, inclusive,
são frutos de lutas contínuas, são históricos, estão sempre
em “processo”.
Podemos
classificar de individuais os direitos de liberdade, que seriam:
direito à vida e vida com dignidade, direito a não ser submetido
à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; a
não ser submetido a escravidão ou servidão; direito à
igualdade diante da lei; à liberdade de opinião, de religião,
de reunião, de associação, de locomoção etc. Temos também os
direitos sociais ou de igualdade: direito ao salário digno, à
saúde, educação, moradia, transporte, participação etc.
Percebam que esse, geralmente, são competência do Estado.
Temos os chamados direitos dos povos ou direitos da solidariedade:
direito à existência dos países e das pessoas, à
autodeterminação, à paz e segurança, ao patrimônio comum da
humanidade, ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado,
direito ao desenvolvimento. São todos esse direitos que,
interdependentes, não estão todos contemplados na Declaração
Universal de 1948, muito pelo contrário, a Declaração Universal
de 48 é muito pobre e individualista, e ela acabou requerendo uma
série de outras declarações que foram sendo assinadas de 48 pra
cá, que são as Declarações Internacionais tais como a sobre os
Direitos Econômicos e Sociais, ou sobre o Direito à Saúde,
Direitos da Criança, Direitos da Mulher, o Pacto Internacional
contra a Tortura, do qual o Brasil, inclusive, é signatário,
enfim, uma série de documentos que vão aprimorando essa questão
e aprofundando e ampliando a noção do que sejam os direitos
humanos.
E
aqui eu quero aproveitar, tenho uns cinco minutos ainda, dizendo
uma coisa: democracia é quando há um perfeito equilíbrio dos
direitos que são competência do indivíduo e dos direitos que
são de competência do Estado. É lógico que isso é sempre
dialético. Democracia, segundo Milton Santos, se dá quando o
indivíduo e o Estado são interlocutores em pé de igualdade.
E
queria ainda falar um pouco de cidadania. A cidadania é a mais
avançada conquista dos direitos humanos e se realiza na vida
cotidiana. Nós, e apenas nós, construímos a cidadania. E
assegurar a cidadania significa assegurar a liberdade e a
igualdade de todos. E ela estaria baseada no diálogo, e o
diálogo é algo que vem sendo redefinido por diversos filósofos
nos últimos anos e com projeção para o terceiro milênio que se
aproxima, porque até agora o que nós tivemos foi um diálogo
entre sujeito e objeto. Quer dizer: um diálogo autoritário.
Agora se fala em diálogos entre sujeitos. Quer dizer, entre eu e
tu. Os dois somos sujeitos, ninguém é objeto do outro, mas os
dois são sujeitos. Para que esse diálogo seja efetivo, para que
haja sujeito, é necessário aquilo que alguns chamam de praxis,
ou seja, a
coerência entre o pensar e o agir, muito difícil nos tempos
atuais. Que as pessoas sejam capazes de falar como agem e de agir
como falam. Nessa medida elas se tornam, entre aspas, “mais transparentes”, são sempre as mesmas e o
diálogo se torna mais produtivo.
Eu
teria mais coisas para falar, mas posso falar no debate, o meu
tempo está acabando...
Eu
encerro dizendo duas coisas: a última vez em que estive com Paulo
Freire, sem imaginar que seria a última – nós trabalhamos com
ele durante quatro anos, com o Projeto Educação em Direitos
Humanos – eu disse a ele: olha professor, acho uma maravilha
trabalhar com o senhor porque em qualquer lugar o senhor é o
mesmo. É o mesmo na sala da sua casa, numa mesa de conferência,
num gabinete de secretário da educação, o senhor é sempre o
mesmo e eu acho isso uma beleza! “O que é isso, Antonio Carlos,
isso não é mérito nenhum. É apenas o respeito que eu tenho
pela minha própria identidade.”
Paulo Freire foi um dos homens, que conheci, que conseguiu
essa coerência entre o falar e o agir, e que conseguiu,
realmente, dialogar.
Uma
das funções dos direitos humanos seria a humanização. Vou
dizer, rapidamente, o conceito de humanização segundo Antonio
Candido: “ O processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos
problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, e o cultivo do humor.”
Eu
gosto muito desse trecho, o
cultivo do humor, porque Jean-Paul Sartre encerra sua
entrevista dos setenta anos, dizendo: “Olha, é necessário
manter o humor.” Então nós precisamos ter noção da
relatividade das coisas e sermos capazes de rir de nós mesmos
quando “pisarmos na maionese”. Porque quem não tem senso de
humor, quem não é capaz de rir de si mesmo, quem pensa que sabe
tudo, que pode tudo, é onipotente, fascista e autoritário.
Então eu encerro dizendo isso, que manter o humor
é fundamental, nesses dias difíceis.
Eu
teria alguma coisa a mais para dizer sobre tolerância, tema de um
dos últimos documentos internacionais assinados, e que é uma
virtude que precisamos desenvolver e o Brasil não tem – o
brasileiro é permissivo mas não é tolerante. Mas isso nós
podemos deixar para o debate ou para uma outra ocasião. Muito
obrigado!
Celso
Daniel - Eu
queria agradecer muitíssimo a pessoa do Prof. Antonio Carlos
Fester, e como eu fiz confusão aqui no início, que representa
aqui e participa da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e além
disso também, pertence a Rede Brasileira de Educação em
Direitos Humanos. Queria agradecer porque ele realmente, em
pouquíssimas palavras e de maneira extremamente concisa – e
ainda por cima respeitando de maneira rigorosa o tempo disponível
– nos deu aqui uma aula a respeito dos conceitos básicos
relativos aos direitos humanos. Sem dúvida nenhuma é um elemento
extremamente importante para essa abertura, elementos extremamente
importantes para esta mesa aqui, que tem como tema geral, que eu
não tinha mencionado ainda, Desmistificando
o Tema Direitos Humanos. Eu acredito que nós estamos
exatamente caminhando nesse sentido a partir dessa primeira
apresentação do professor Antonio Carlos.
Antonio
Carlos Ribeiro Fester –
Só um aparte: eu esqueci do “desmistificando”.
Nós não somos defensores de bandidos. Nós lutamos é pela
dignidade de todo e qualquer ser humano. Direitos humanos envolve
direito ao lazer, a tudo que seja básico e indispensável para o
homem. Fumar não é um direito humano porque não é
indispensável. Ter carro também não é um direito humano porque
não é indispensável. Agora a nossa luta é para, se uma cela
tem capacidade para quatro presos, que ali tenha quatro presos. É
para que não seja torturado porque a pena não prescreve isso. É
para que o preso não tenha que entrar numa máfia para obter seu
cigarro diário. Quero deixar isso claro, para ser desmistificado
porque existe todo um preconceito contra nós, alimentado por uma
mídia de má fé, que faz questão de dizer que somos defensores
de bandidos. Nós somos defensores de presos. Nós somos
defensores de presos sim, enquanto pessoa, que tem dignidade
humana pelo simples fato de existir. Pois, como diz Fernando
Pessoa, “basta existir
para ser completo”.
Celso
Daniel –
Agradeço novamente ao professor Antonio Carlos Fester e, reitero
a idéia, a sugestão e o convite para que as pessoas presentes
comecem a elaborar as
suas questões por escrito, para serem encaminhadas à mesa. Pelo
menos aquelas diretamente aferidas ao professor Antonio Carlos
Fester.
E
queria aqui passar a palavra ao deputado federal Nilmário
Miranda. Antes disso, apresentando a todos vocês, o livro chamado
“Os Filhos Desse Solo”,
um livro escrito pelo Nilmário Miranda e pelo Carlos Tibúrcio,
ambos os autores do livro, que foi lançado recentemente, estão
aqui presentes e o Nilmário já se dispôs, inclusive, num
momento do coquetel, pelo menos durante alguns minutos, para
aqueles que tiverem interesse, ele se dispõe a participar dessa
noite de autógrafos. Ele já autografou alguns exemplares do
livro, inclusive o meu, com muita satisfação para mim, e estará
também a disposição logo mais, durante o coquetel que vai
acontecer logo após o encerramento dessa primeira mesa de
debates.
Então,
sem mais demandas, eu passo aqui a palavra para o meu amigo e
companheiro deputado federal Nilmário Miranda.
São
Paulo, 19 de abril de 2001
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