Milton Santos chega aos Céus
Anos atrás,
estávamos, Milton Santos, sua mulher e eu, sentados no mesmo
banco de uma igreja, participando da missa de sétimo dia de
parente de membro da Comissão. Percebi que ele participava
ativamente da missa, fazendo em voz alta a leitura dos fiéis,
ajoelhando-se, enfim, cumprindo todo o ritual, com a simplicidade
e alegria que lhe eram peculiares. Não resisti à curiosidade :
Mas, professor, o senhor não é ateu ? Respondeu : Acredito que
seja, mas sou também um homem bem educado. Estou aqui para
participar com todos e participar pressupõe que eu siga os
costumes da casa, no caso, os costumes da Igreja. Quanto a ser
ateu, deixo o trabalho desta definição para Deus. Recentemente,
no enterro de uma amiga com família dividida religiosamente,
lembrei-me desta sua postura, quando vi rostos constrangidos, uma
resistência a participação.
Recentemente
falei com o professor Milton Santos algumas vezes, por telefone, a
propósito de quererem lançar sua candidatura para o prêmio Juca
Pato, no qual concorreria com outro intelectual de peso, com
grande chance de perder, não pelo mérito, mas por sabermos como
se dão as premiações, muito mais ao sabor dos relacionamentos
pessoais, dos momentos, das políticas e muitas outras variáveis.
Respondeu-me, com muito bom humor, que gostaria de concorrer assim
mesmo, afinal, na vida, sempre perdera, estava acostumado a perder
(a candidatura acabou não se viabilizando por outros motivos
independentes de nós dois, por motivos burocráticos, afinal).
Manifestei o desejo de visitá-lo, ele pediu-me um tempo, estava
com dores resultantes do tratamento, me avisaria quando as coisas
melhorassem. Hoje, abro o jornal e leio que ele está livre de
todo e qualquer sofrimento.
Milton
de Almeida Santos, nascido aos 3 de maio de 1926, em Brotas de
Macaúba, Bahia. Marido de Marie Hélène, pai de Rafael, amargou,
há poucos anos, a perda de outro filho. Homem amoroso, afável,
fino, discreto e combativo. Dizia que a maior coragem, nos dias
atuais, é pensar. Coragem que sempre teve. Doutor honoris causa
pelo mundo afora, ganhador do prêmio Vautrin Lud, em 1994 ( o
prêmio Nobel da geografia), professor em diversos países (em
função do exílio político causado pela ditadura de 1964),
autor de cerca de 40 livros, como membro da Comissão Justiça e
Paz não furtou-se a dar aulas aos professores municipais, quando
do Projeto Educação em Direitos Humanos naquela secretaria,
quando Paulo Freire era o secretário. Em outro evento da
Comissão, um seminário sobre preconceito, promovido pela
Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, falou sobre
cidadanias mutiladas, inclusive a dele próprio, pelo fato de ser
negro em um país de falsa democracia racial. Na mesma fala,
defendeu a necessidade de liberdade que o intelectual deve ter
para pensar. Uma liberdade que
nem sempre é garantida ao militante, preso aos slogans, ao
pensamento do grupo em que milita. Defendeu o direito à
diversidade e à tolerância. Milton Santos, um humanista.
A
Comissão Justiça e Paz de São Paulo fica mais pobre sem a sua
presença, professor, ainda que enriquecida pela sua
participação, na certeza de que o senhor, ao contrário do que
pensava, não perdeu, antes venceu. Uma vitória feita pela sua
capacidade de superar-se a si mesmo, pela sua capacidade de
superar o sofrimento, o qual jamais pode tirá-lo da luta por um
mundo melhor, uma vez que morreu, apesar de doente, em plena
atividade. Obrigado, professor. Até breve.
Antonio
Carlos Ribeiro Fester
|