O
COMPROMISSO DA EDUCAÇÃO COM A CIDADANIA
EXPERIÊNCIA
EM EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA NA CIDADE DE SÃO PAULO
ANTÔNIO
CARLOS FESTER
Mestre,
licenciado e Bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo.
Tesoureiro da Prefeitura Municipal de São Paulo, desde 1966.
Membro da União Brasileira de Escritores. Membro da Comissão de
Justiça e de Paz de São Paulo. Membro da Comissão Especial para
o Programa dos Direitos Humanos na educação, do Ministério da
educação e do Desporto.
Criada
em 1972 para fazer face aos desmandos da ditadura militar, a
Comissão justiça e paz de São Paulo elegeu como prioridade de
seus trabalhos, em 1987, a educação em direitos humanos, baseada
nas idéias de Paulo Freire e da Teologia da libertação.
De
Paulo Freire já me vem à lembranças suas advertências através
das palavras de Elza, sua mulher, de ter sido compreendido pelo
camponês. Sim, os alunos nos compreendem, entendem muito bem o quê
e como estamos dizendo. Mas nós compreendemos os alunos?
Da
Teologia da libertação evoco a afirmação do padre José
Comblin de que o problema não é o fato de ser humano, é o fato
de não ser suficientemente humano.
E
me remeto para a afirmação que o prof. Antonio Candido, sem dúvida
um mestre na educação para os direitos humanos e um dos homens
mais éticos deste país, nos dá:
humanização
é o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor.
Humanizar
alguém é inseri-lo no âmbito das mediações que o tornam
humano, diz o prof. Antonio Joaquim Severino. Ora, as mediações
existenciais são três, a saber: as práticas produtivas
(natureza + trabalho), as práticas sociais (poder) e as práticas
simbolizadoras (produção e fruição da cultura). Educar é
inserir o aluno no âmbito das três práticas. Educar, portanto,
é humanizar.
A
educação para os direitos humanos tem início na respeito pela
identidade, pela cultura e pela liberdade do aluno. “A vida voa
para a vida se não houver impedimento”, escreveu o escritor
Dalton Trumbo, perseguido pelo marcatismo, acrescentando que
“amar é deixar o outro livre”.
Para
tanto o professor precisa repensar suas atitudes. Precisa
re-descobrir-se enquanto indivíduo, único e irrepetível, e como
patrimônio da Humanidade.
Repensar
as atitudes é fundamental para a educação em direitos humanos,
que é uma questão de postura, do ser no mundo. Os direitos
humanos se trabalham através de exemplos; o conceito se sustenta
na realidade, na sua prática.
Precisamos
fazer o que nos cabe, e necessitamos teer uma atitude de vigília
constante, pois o perigo está em tornar um código como válido
sempre e em qualquer circunstância. Precisamos adquirir o hábito
de racionalizar. Como tanto insistem Fábio Comparato e José
Carlos Dias, o brasileiro não racionaliza suas atitudes.
Necessitamos aprender a objetivar, a transcender a nossa
subjetividade, o descobrir o outro, o diferente.
Precisamos,
especialmente, teer presente as idéias de Paulo Freire em A
Pedagogia do Oprimido, deixando para trás as posturas que
exprimem a ação anti-dialógica tais como a conquista e sedução,
a divisão para melhor dominar, a manipulação e conseqüente
invasão cultural, e assumir a teoria da ação dialógica baseada
na colaboração, na união e organização que levam a síntese
cultural e, portanto, à reconstrução do conhecimento.
Educar
para os direitos humanos é possibilitar ao aluno o confronto das
diferentes representações do real, procurando sensibilizá-lo
com a questão da construção do conhecimento, desvelando o véu
que encobre as relações de poder no discurso competente.
Os
direitos humanos não constituem uma disciplina porque são princípios
que embasam ou deveriam ambasar as mais diversas áreas do
conhecimento do homem e do mundo, bem como a postura do ser no
mundo.
A
prática da educação em direitos humanos se dá em três níveis:
numa metodologia participativa baseada no diálogo, na
interdisciplinidade; no conhecimento e discussão dos textos
fundamentais dos Direitos Humanos; e, na reflexão sobre a história
recente do respeito ou desrespeito aos direitos humanos.
Assim,
há que rever os conteúdos, sua relação com realidade, pois é
esta que deve ser objeto de estudo e dar significado aos conteúdos.
É necessário selecionar conteúdos significativos que permitam a
reflexão sobre a realidade concreta. Os conteúdos não são uma
finalidade, mas meios que nos permitem explicar e desvelar a
realidade, podendo assim modificá-la.
A
nível de Comissão Justiça e Paz de São Paulo este trabalho e
estas reflexões tiveram início com o Seminário Internacional de
Educação em Direitos Humanos, em 1987, que teve lugar na
Faculdade de Direito da USP, com a presença de muitas pessoas que
tenho o prazer de encontrar aqui e, entre elas, Letícia Olguin.
Alguns
cursos foram oferecidos para a rede estadual de ensino, em São
Paulo, possibilitando-nos contar, atualmente, com 22
escolas-piloto na região de Mogi das Cruzes. Um curso foi
oferecido para as comissões Justiça e Paz do Brasil, em geral,
além de assessorias em algumas cidades brasileiras, como é o
caso aqui de Curitiba.
Mas
o trabalho mais expressivo foi a participação do Projeto Educação
em Direitos Humanos nas atividades da Secretaria Municipal de
Educação da Cidade de São Paulo, no período de 1989 a 1992.
Tendo seu projeto baseado nas idéias de Paulo Freire e contando
com a sua assessoria, nada mais natural que a Comissão assessorá-lo
quando Freire assumiu aquela secretaria.
Assumiu-a
com quatro prioridades. A primeira, a do acesso à escola,
significando não só maior números de vagas, mas dar condições
ao aluno de permanência em uma escola de qualidade até o final
do curso. A Segunda consistiu na implantação da gestão democrática
do ensino, através de colegiados, conselhos de escolas e grêmios
estudantis que possibilitasse a participação de todos. A
terceira prioridade foi a alfabetização de jovens e adultos,
através de convênios, em parceria com os movimentos sociais,
concretizados na existência de 626 núcleos de alfabetização. A
qualidade de ensino, Quarta prioridade, foi implantada através de
formação permanente dos educadores e do movimento de reorientação
curricular pela via da interdisciplinidade.
A
viabilização do movimento de reorientação curricular se deu
através da predisposição do grupo escola às mudanças,
manifesta sob forma de adesão da equipe técnica do conselho de
escola e da maioria dos professores, por série ou por período:
através da garantia de trabalho coletivo (organização de horário
que o tornassem efetivo) e através da formação permanente dos
professores, por representação.
A
Comissão Justiça e Paz integrou o Grupo de Assessoria Universitária
e o Grupo de Reorientação Curricular pela via da
interdisciplinidade (com representantes dos Núcleos de Ação
Educativa-NAEs, as antigas delegacias de ensino, a nível de
Departamento de Orientação Técnica-DOT).
Dentro
do Projeto de Formação Permanente dos Professores, ofereceu
quatorze cursos, dos quais sete para as escolas envolvidas no
Projeto de Reorientação Curricular, além de palestras avulsas
ou participação em seminários, mesas-redondas etc. foram
realizados encontros com os alunos-educadores para acompanhamento
e intercâmbio dos trabalhos em andamento, através de relatos de
prática. um curso foi oferecido ao público em geral na VI Conferência
Brasileira de Educação, em 1991. A Comissão participou, ainda,
do I e do II Congresso Municipal de Educação. Alguns NAEs e
algumas escolas organizaram seus próprios cursos, multiplicando a
sensibilização para o projeto. Diversos membros e amigos da
Comissão participaram dos cursos e conferências promovidos. A
Comissão cedeu à Municipalidade cópia de seu acervo de vídeo,
bem como apostilas e bibliografia básica.
Além
de ser um componente muito presente nos conteúdos, especialmente
a partir dos temas geradores presentes nas escolas, todos
relacionados com a não vigência dos direitos humanos e, em
especial, dos direitos sociais no Brasil, a preocupação com uma
ética pelos direitos humanos levou à profundas mudanças em
muitas das escolas onde o Projeto se desenvolveu.
Como
resultados concretos observou-se uma mudança nas relações
sociais, inter e extra-escolares. A interação com a comunidade
levou à mobilizações populares e à aliança com outros setores
da população, redundando em conquistas tais como linha de ônibus
na porta de escola, melhoramentos em favelas onde vivem alunos
etc.
Por
outro lado, as escolas abriram seus espaços para a comunidade,
nos fins de semana, para reuniões de entidades como associações
de amigos de bairro, p. ex., ou para atividades esportivas ou
sociais, passaram a ser vistas como propriedade de todos e não do
Estado, entidade abstrata, o que redundou numa notória diminuição
das depredações escolares.
A
Escola Municipal Álvares de Azevedo por algum tempo conseguiu
concretizar a educação em direitos humanos a nível
interdisciplinar, isto é, o componente estava presente em todas
as disciplinas e em todo o currículo, entendendo-se como currículo
tudo o que acontece na escola.
Nos
inúmeros depoimentos dos educadores envolvidos, os mais
gratificantes são os que dizem tratar-se de um caminho irreversível.
A mudança de postura, o entusiasmo, a crença na construção
coletiva do conhecimento e a crença no aluno como sujeito da
construção do seu próprio conhecimento indicam que o trabalho
alcançou, por alguns momentos, em algumas escolas, o eu objetivo.
É
preciso pensar, como escreve a professora Terezinha Rios, que o
educador competente é o comprometido com a construção de uma
sociedade democrática na qual saber e poder tenham equivalência
enquanto elemento de interferência no real e enquanto organização
de relações de solidariedade e não de dominação entre os
homens.
O
educador em direitos humanos precisa deixar acontecer o novo, o
ato criativo, a liberdade, pois esta educação se dá,
especialmente, através da dialogicidade.
Diálogo
entre o saber instituído e o saber formal. De um lado o saber
elaborado pela produção científica, epistemé, sujeito a uma
revisão permanente pois é necessário validar sua significação
em um sistema que justifique empiricamente uma hipótese diretriz.
De outro lado o saber resultante da vivência cotidiana dessa
opinião, baseado em relações perceptivas e afetivas, incomprováveis
e irrefutáveis. O que pode ser verdadeiramente apreendido da
alegria ou da tristeza do outro? Só nos resta conviver,
testemunhar, partilhar, escreveu outro defensor da causa dos
direitos humanos, o negro norte-americano James Baldwin. Entre o
que cremos e o que sabemos a arbitragem da razão é bastante
discutível.
O
texto que se procura elaborar como resultante final desse
confronto (termo quem sabe melhor do que encontro, segundo Roberto
Cardoso de Oliveira) não pode mais estar submetido a um autor
todo soberano, único intérprete de seus dados; mas deve integrar
de alguma maneira o saber do Outro e, se possível, ser polifônico,
onde as vozes dos Outros tenham a chance de serem ouvidas.
Para
Bakhtin as linguagens não se excluem, antes se interseccionam de
múltiplas maneiras. Esta idéia pode ser entendida para as
culturas, sub-culturas e diferentes disciplinas.
Há
que se recuperar a esperança na alteridade de múltiplas
possibilidades e não mais uma diretriz única e inexorável,
escreveu Nicolau Sevcenko.
E
continua: “A maior parte das concepções do que seja pós-modernismo
têm fundo reacionário e esvaziam o sentido crítico profundo do
movimento”. O pós-modernismo é uma proposta de práticas
culturais bastante identificadas com o pacifismo, a ecologia, o
feminismo, os movimentos de libertação sexual e manifestações
afins.
Nisto
tudo reside “o anseio de uma justiça que possa ser sensível ao
pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível
diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza,
de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao
contrário do que nos ensinaram a metafísica e o positivismo
oficial”.
É
necessário desenvolver uma nova sensibilidade, voltada para a
expressão do acaso, do contraditório, do aleatório. É necessário
criar espaço para o humor, o prazer, a contemplação, sem outra
finalidade além da satisfação que o homem neles experimenta.
É
indispensável o aprendizado humilde da convivência difícil com
o imponderável, o incompreensível, o inefável, depois de séculos
de fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado e
controlado.
É
um alívio que o pós-modernismo, momento cultural em que vivemos,
se apresente apenas como um castelo de areia, frágil,
inconsistente, provisório, tal como todo ser humano, nos diz
Sevcenko, concluindo tratar-se, o ser humano, de um enigma que não
merece a violência de ser decifrado.
Castelo
de areia, a expressão de Sevcenko nos remete para a idéia de
sonho, de utopia. Quero encerrar, lembrando que utopia não se
refere a algo irrealizável. Muitas das utopias do século XIX são
realizações do século XX. Utopia significa algo ainda não
realizado.
Assim,
na educação em direitos humanos, precisamos resgatar o direito
ao sonho, ao sonho de uma sociedade justa e fraternal na qual o
homem tenha direito à vida e vida com dignidade, na plena vigência
dos direitos humanos.
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