Madre
Cristina
Antonio
Carlos Fester
Entrar
na intimidade de uma pessoa é algo que deveria ser feito de
joelhos, porque é como se você entrasse em contacto com algo
sagrado, com sua alma. Não me recordo exatamente das palavras,
mas foi essa a maneira pela qual M. Cristina me iniciou, a mim e a
muitos outros psicoterapeutas, de uma maneira respeitosa, responsável,
mas, ao mesmo tempo, alegre e otimista no trabalho psi.
Foi
no fim dos anos 50, início dos 60, na Faculdade Sedes Sapientiae,
então uma Faculdade feminina, que M. Cristina criou uma Clínica
Psicológica que servia de laboratório de aprendizado para os
novos psis, enquanto proporcionava atendimento gratuito para as
pessoas sem condições de pagar, um atendimento que se dava com o
mesmo cuidado que recebiam, em outros lugares, pacientes pagantes.
Mais
do que isso, criou uma forma nova, aberta, possível de se
trabalhar com psicoterapia. Não havia ainda, no início,
Faculdade de Psicologia - eram pessoas formadas em Pedagogia, às
vezes em Filosofia, que se encaminhavam para este mister. E
existiam os médicos psiquiatras, que também não recebiam
aprendizado de psicodinâmica nas escolas médicas. Naquele tempo,
a única alternativa de formação era a instituição psicanalítica,
então fechada, elitista, cara, inatingível para a grande
maioria.
Tudo
o que M. Cristina fazia era claro, límpido, simples. Foi com essa
simplicidade que montou a Clínica Psicológica, na época, um
modelo. Com essa mesma limpidez em que razão e coração se
juntavam a cada instante, mas sem se confundirem, abraçou suas opções
sociais. No melhor sentido cristão da palavra, politizou a
atmosfera da Faculdade. Sua simples presença passou a ser símbolo
de postura progressista e responsável. Quase como uma fada, foi
um dos baluartes das pessoas que se opunham ativamente contra a
ditadura militar, proporcionando-lhes cobertura e proteção
material, psicológica e afetiva. Ela desconhecia o medo e a
subserviência que, naqueles anos, atingia muita gente “boa”.
Criou
um curso de Psicologia em que se colocava (então novidade) a
dimensão social (e política) como parte real da compreensão dos
fenômenos psíquicos. Tive a oportunidade de, modestamente, ajudá-la
nestas tarefas. Depois de ter sido seu aluno, seu supervisionado,
fui também seu companheiro de Faculdade durante alguns anos. Daí
vem uma parte fundamental de minha formação pessoal e
profissional. Recordo-me de muitas aulas em que era interrompido
para que ela comunicasse aos meus alunos a realização de alguma
manifestação antiditadura, ou para discutir algum assunto
relacionado à terrível situação do Brasil daqueles dias.
Mais
tarde, com a dissolução da Faculdade feminina, que se juntou à
PUC, criou o Instituto Sedes Sapientiae, que até agora é um dos
centros formadores mais importantes do Brasil, para profissionais
das áreas psi e afins. Mais do que isso, é, bem à maneira de M.
Cristina, um lugar aberto, acolhedor e ampliador de idéias novas
e de pessoas que querem aprender. No Sedes ministram-se numerosos
cursos livres, de extensão e de aperfeiçoamento. No momento de
sua criação, M. Cristina dizia que a idéia era de que as
pessoas frequentassem para estudar, discutir e aprender, não para
conquistar diplomas ( O Sedes não concederia qualquer tipo de
certificado). Com isso, ficava patente sua postura anti-elitista e
informal, tentando se distanciar dos vícios da academia, que ela
tanto criticava. A vasta gama de assuntos, de que se ocupam os
diferentes grupos temáticos do Sedes, dão bem idéia da
amplitude do espírito da M. Cristina (e das pessoas que a
assessoraram e seguiram) : desde cursos de formação em psicanálise,
psicodrama, gestalt, psicologia infantil, até cursos para
trabalhadores de saúde mental, setores de trabalho indigenista,
de cuidado de crianças carentes e vítimas de violência, etc.
etc. Enfim, é um lugar por onde, acima de tudo, perpassa uma
preocupação de cidadania, no seu melhor sentido. Tudo isso
reflete, com seus desdobramentos, a postura política de M.
Cristina, que facilmente se inscreve, para facilitar sua definição,
no espírito da Teologia da Libertação. Não é por outro motivo
que, em seu enterro, foi homenageada inclusive pelos sem terra.
Antonio
Carlos Cesarino
Médico
psiquiatra, doutor em medicina pela Universidade de
Heidelberg e membro da Comissão Justiça e Paz de São
Paulo.
|