HUMANISMO
JURÍDICO
Dalmo
de Abreu Dallari
Professor da Faculdade de
Direito da USP
Através do
reconhecimento e da proteção dos direitos humanos o direito
recupera seu sentido humanista e se restabelece o vínculo do
direito com a justiça. O que na linguagem contemporânea se
nomeia como “direitos humanos” são as faculdades
e possibilidades que decorrem da condição humana e das
necessidades fundamentais de toda pessoa humana. Tais faculdades e
possibilidades são inerentes à natureza humana e se referem à
preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à
plena realização de sua personalidade.
Por essas
características fica evidente que a ordem jurídica positiva não
pode ser contrária aos direitos humanos, não se admitindo que
uma norma legal, sua interpretação e aplicação contrariem as
exigências éticas da dignidade humana. Precisamente por se
tratar de faculdades e possibilidades que nascem com a pessoa
humana elas devem ter na ordem jurídica positiva sua proteção e
a garantia da possibilidade de sua satisfação e expansão.
Pode-se dizer que os diretos humanos são os equivalentes das
necessidades humanas fundamentais, aquelas que devem ser atendidas
para que se preserve o mínimo compatível com a dignidade humana
e para que todos tenham a possibilidade de se desenvolver nos
planos material, psíquico e espiritual. Por isso mesmo são
universais, pois se referem a características de todos os seres
humanos, de todas as épocas e de todos os lugares.
Há cinquenta
anos a Organização das Nações Unidas proclamou a Declaração
dos Direitos Humanos, não criando um direito novo mas despertando
a consciência da humanidade para a necessidade de repor nas relações
humanas o direito antigo, que nasceu com a própria humanidade e
que o egoísmo, a ambição desmedida por riqueza, poder e prestígio
político e social de alguns havia sufocado, deixando o caminho
aberto à injustiça, à violência e à degradação de milhões
de seres humanos. Um ponto fundamental, que deve ser sempre
ressaltado, é a afirmação contida no artigo primeiro da Declaração:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”. se em algum lugar do mundo, em algum momento, houver
uma regra jurídica que não dê a todos, sem qualquer exceção,
a mesma liberdade e que não assegura a todos, de modo igual, a
mesma proteção à dignidade e aos direitos, essa regra deverá
ser repudiada por contrariar as exigências éticas e jurídicas
dos direitos humanos.
Um dado muito
positivo e já bem visível é que a proclamação da ONU surtiu
efeito, apesar das resistências dos privilegiados e dos que
tradicionalmente usam sua força econômica, política ou militar
para manter privilégios. No ano de 1966 a própria ONU deu um
passo avante, aprovando os Pactos de Direitos Humanos – o Pacto
de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais -, dotados de plena eficácia jurídica e já
incorporados ao direito positivo de quase todos os povos do mundo,
inclusive do Brasil. Além disso, os preceitos dos direitos
humanos penetraram também nas Constituições, inclusive na
brasileira, o que significa que qualquer interpretação ou aplicação
de uma norma jurídica que contrarie os direitos humanos será
antijurídica e inconstitucional.
Mais do que
uma celebração formal, o registro dos cinquenta anos da Declaração
Universal de Direitos, com todas as consequências altamente benéficas
que ele já produziu, é a constatação de que a humanidade
reencontrou o bom caminho. Ninguém há de ser tão ingênuo ou tão
distanciado da realidade a ponto de acreditar que desapareceram as
agressões à liberdade, as discriminações sociais, a
marginalização e a humilhação dos mais fracos. Mas qualquer
pessoa razoavelmente informada e de boa fé percebe que são muito
raro os lugares do mundo em que as violências contra a pessoa
humana permanecem ocultas e podem ser praticadas sem que ninguém
denuncie ou proteste e sem que os violadores sejam impedidos de
gozar pacificamente os resultados de sua brutalidade física ou
moral.
A tentativa de
manter os privilégios e as injustiças sob máscaras ditas
modernizantes, como neoliberalismo, globalização e a lei do
mercado, já não enganam ninguém, apesar do grande esforço
feito através dos meios de comunicação de massa, por meio de
teorias e comunicadores que, apesar de sua arrogância e de sua
postura de donos da verdade, não conseguem esconder que são
meros serviçais de dominadores egoístas e antiéticos,
indiferentes às tragédias humanas e sociais que provocam. Os
humanistas estão vencendo a batalha e o jurídico está fechando
os caminhos ao economismo materialista, ao militarismo antidemocrático,
ao desenvolvimentismo em favor dos ricos e contra os pobres, ao
totalismo político.
Todos
os seres humanos, mas os operadores de modo especial –
magistrados, advogados, membros do Ministério Público, delegados
de Polícia – devem intensificar seu trabalho em favor do
direito e da justiça, sem acomodações e transigências, com
otimismo, coragem e determinação, porque assim chegará mais
cedo a nova sociedade, fundada no reconhecimento e na efetividade
dos direitos humanos. Esse é o caminho, o único, que poderá
conduzir a humanidade a uma era de respeito pela liberdade e pela
dignidade de todos os seres humanos, de solidariedade, de justiça
e de paz.
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