Brutalidade Policial, Sociedade Civil e
Democracia; Reflexões Baseadas na Comparação entre Brasil e
Estados Unidos
James Louis CavallaroCamila Moreno
Resumo
Diante do material produzido nas pesquisas conduzidas pela
Human Rights Watch nos Estados Unidos e no Brasil, este artigo tem
como objetivo apresentar algumas reflexões comparativas de
realidades distintas que acabam por apontar falhas
estruturais comuns à instituição
policial, que convergem na explicação da brutalidade de suas ações,
e a necessidade de maior fiscalização por parte da sociedade
civil. No horizonte desta questão encontra-se uma concepção de
democracia que define-se não só no direito ao voto, mas também no dever proporcional de
fiscalizar e cobrar o bom funcionamento das instituições, sendo que
nas recomendações para conter a violência policial nos dois países,
como nas causas da mesma, encontramos elementos comuns nas duas realidades analisadas.
Existe uma tendência generalizada de tomar como referência
o modelo americano ao refletir sobre questões atuais, envolvendo
a sociedade civil democraticamente organizada, contrapondo a
realidade brasileira
ao 'como seria se fosse nos Estados Unidos'. Através deste
trabalho pretendemos mostrar que
a violência utilizada pela polícia americana não deve
servir de modelo para a conduta policial, uma vez que, apesar dos
altos níveis de profissionalismo que caracterizam as polícias
americanas, estas cometem graves abusos que são freqüentemente
nem apurados, nem punidos com a devida imparcialidade e transparência.
Posturas críticas dentro da sociedade americana condenam a truculência
policial que exacerba-se sob o programa de tolerância zero, como
aquele implantado em Nova Iorque. Defensores dos direitos civis
empenham-se em denunciar e exigir punição para a brutalidade
habitual da atividade policial. O que interessa-nos ressaltar é,
de que modo, em realidades sociais distintas, no caso Estados
Unidos e Brasil, é percebida a utilização da violência
‘justificada’; entende-se como tal a violência praticada por
aqueles que perante a sociedade estão investidos do poder de polícia,
e portanto estão sob o escudo da justiça para agirem eximidos da
responsabilidade decorrida do ‘cumprimento do dever’. A
dificuldade surge em como distinguir, e desta forma punir, a violência
dos criminosos, daquela dos defensores da lei e da ordem.
Ao criticar a atuação
da polícia surge a dificuldade em articular quais seriam as
alternativas, e de quais meios poderia dispor, enquanto sociedade
civil, para participar deste controle. Diante da esterilidade do
modelo de crítica que não promove consciência de meios
alternativos para, uma vez balizado o problema, conduzí-lo a uma
solução, propomos comparar duas realidades distintas que
enfrentam problemas semelhantes. Em seguida apontamos algumas
medidas que podem ajudar a pensar uma solução prática para que
a sociedade exerça o seu dever de controlar a atuação da
instituição policial. A Human Rights Watch defende o modelo político
no qual a sociedade civil, representada democraticamente através
do voto, participe ativamente não só da eleição de seus
representantes, mas do controle constante de suas ações. Assim,
para qualquer um dos setores da sociedade, saúde, educação,
transporte ou segurança pública, por exemplo, deve haver a
responsabilidade de fiscalização diária dos poderes e
interesses que eles representam. Controlar a força policial
depende, o mesmo sendo válido para exercer realmente a democracia
em qualquer âmbito, de cobrar a vontade delegada aos
representantes civis no momento da votação.
I .
Situação nos Estados Unidos
Em
julho de 98 foi lançado nos Estados Unidos um relatório da Human
Rights Watch, dedicado exclusivamente a documentar, denunciar e
apontar soluções para a brutalidade policial em quatorze das
maiores cidades naquele país. O documento afirmava principalmente
que investigações internas mal conduzidas não responsabilizavam
policiais por atos abusivos e que processos criminais
em tais casos raramente eram instaurados. De acordo com o relatório,
faltariam aos órgãos
externos de fiscalização basicamente o financiamento e o acesso
necessário para monitorar a polícia de forma adequada;
entretanto, ao invés de tratar as causas do problema, diversas
cidades americanas estariam pagando milhões de dólares oriundos
de cofres públicos em condenações provenientes de
processos civis que alegam brutalidade policial.
Na
realidade americana, policiais que recorrem à violência como prática
rotineira, mesmo sendo alvos de denúncias constantes, são
protegidos pelo silêncio de seus companheiros e de investigações
superficiais realizadas pelos próprios policiais. Histórias de
violência emergem e são tratadas somente quando cometem um abuso
tão flagrante, tão inevitavelmente vergonhoso, que não pode ser
ignorado. Mesmo que em tais ocasiões um policial eventualmente
venha a sofrer sanções disciplinares, seus superiores, os quais
deveriam ter intervindo para reprimir os abusos cometidos,
tipicamente escapam das investigações ou de qualquer ação
disciplinar. A responsabilidade final pela força excessiva
empregada pela instituição policial acaba assim, via de regra,
dissolvida em seus procedimentos internos.
Abusos
como o uso injustificável de armas de fogo, ocorrência de
espancamentos graves, estrangulamentos fatais e outras formas de
violência física foram denunciados em cidades por todo os
Estados Unidos. A habitualidade de tais práticas somada à falta
de vontade por parte das autoridades em reverter essa situação
constituem violações a tratados internacionais dos direitos
humanos aplicáveis nos Estados Unidos, assim como constituem também
violações às políticas da maioria dos departamentos de polícia
e às leis estaduais e federais. Desta forma, o tão prezado rigor
no indistinto cumprimento da lei na sociedade americana, não é
necessariamente válido neste caso, onde acaba-se
invertendo a função da polícia para com a sociedade civil. Impõe-se
uma lei paralela, o
vale tudo contra o criminoso, e o corporativismo que procura
proteger todo e qualquer policial contra os ataques (devidos e
indevidos) da sociedade civil.
Dados
sobre abusos policiais são particularmente difíceis de serem
obtidos. As corregedorias da polícia operam sob um manto de
sigilo e são relutantes em revelar até mesmo informações básicas
sobre suas atividades. Na prática, a instauração de unicamente
processos de natureza cível
permite que os departamentos policiais ignorem abusos cometidos
por policiais, pois as indenizações pagas às vítimas não provêm
dos orçamentos dos departamentos de polícia ou do bolso dos
policiais envolvidos: na esmagadora maioria dos casos, o município,
o dinheiro público, é quem paga as despesas ou indenizações
outorgados pelo júri. Na maioria das cidades, nenhuma investigação
criminal ou
administrativa é provocada através da apresentação de uma ação
civil indenizatória, de um acordo entre as partes, ou sequer de
uma sentença responsabilizando o policial, não importando a
gravidade da alegação. A avaliação de desempenho do policial não
é, em suma, de forma alguma afetada.
Especificamente,
processos criminais
contra policiais são raros; promotores locais são relutantes em
levar casos contra policiais acusados de violações aos direitos
humanos porque eles normalmente trabalham bem próximos dos
policiais em processos contra criminosos. Ganhar tais casos pode
ser muito difícil devido ao fato das vítimas, muitas vezes,
poderem ser de fato criminosos, e da tendência dos júris, que
acreditam nas versões policiais. Processos na Justiça Federal
contra policiais segundo as leis de proteção aos direitos civis
são raros. No ano 1996, por exemplo, de um total de 11.721
queixas alegando abuso recebidas pela Divisão de Direitos Humanos
do Departamento de Justiça, em somente 37 casos os policiais
foram denunciados, com um total de 29 condenações ou
reconhecimento da responsabilidade pelo denunciado.
Em
face da repercussão internacional do programa implantado na
cidade de Nova Iorque, conhecida como regime de ‘tolerância
zero’, em que mesmo o menor delito deverá receber repressão,
julgamento e até punição exemplar, ressaltamos que o processo
de maior rigor na prática policial tem trazido consigo aumentos
radicais nas denúncias de brutalidade oficial. O que de fato
observou-se foi a atuação da polícia de Nova Iorque, uma das
mais violentas dos Estados Unidos, agora justificada em seus
abusos no cumprimento da dita ‘tolerância zero’, que acaba não
tolerando mesmo é a presença de negros, hispânicos e imigrantes
do terceiro mundo, maiores vítimas dos abusos registrados.
Entre
1993 e 1996, do início do período de implantação do programa
de tolerância de zero, o número de queixas contra a polícia
aumentou em 56%. Em números absolutos, o Civilian Complaint
Review Board (conselho cidadão para revisão de queixas)
recebeu 18.336 queixas, entre estes quatro anos, mas em apenas um
caso o policial envolvido foi afastado devido à investigação do
conselho. De um total de 972 queixas que envolviam
brutalidade, a polícia impôs alguma medida disciplinar em
apenas 215 policiais, sendo um caso apenas de afastamento
definitivo
Diante
deste quadro algumas das propostas a serem implementadas nos
Estados Unidos, recomendadas pela Human Rights Watch, foram as
seguintes:
Condicionar
o apoio federal aos departamentos de polícia à relatórios
regulares sobre o uso excessivo de violência física e melhorias
na fiscalização e disciplina;
Estabelecer
sistemas de precaução que identifiquem policiais "de
risco" e remova aqueles que cometem abusos;
Oferecer
financiamento adequado e apoio político para órgãos externos de
fiscalização;
Empregar
promotores especiais em cada estado para atuar em processos
criminais contra policiais.
II.
Situação no Brasil
De
um modo geral as ações policiais no Brasil são executadas com o
que já foi chamado de ‘rigor
necessário’. A sociedade acaba justificando um certo
tipo de prática porque as vítimas seriam, via de regra,
suspeitos ou bandidos. O senso comum entende que para combater
eficientemente a marginalidade urbana, a polícia deve aplicar o
mesmo código de conduta dos transgressores, tornando cada vez
mais difícil, e arriscado, distinguir uns e outros. Assim, a
truculência e o despreparo dos profissionais designados para
lidar com a segurança pública torna cada vez mais tênue a linha
que os separa dos verdadeiros marginais e bandidos.
Na
maior parte das vezes o apoio da opinião pública, ao nosso ver
muitas vezes irrefletido, é nada mais do que o reflexo de uma
população saturada com os níveis crescentes de violência
urbana em todo o país, onde o sentimento de insegurança e impotência
cresce até mesmo em cidades menores. O que não é muito claro
para muitos, é que, ações violentas praticadas pela polícia
expressam um padrão de comportamento que já é considerado aceitável,
no caso até heróico, pela população equivocada. Aceitar a adoção
desta prática pela polícia justifica a impossibilidade de
conduzir-se uma investigação séria no caso de denúncias
envolvendo, por exemplo, extermínio, praticado pela mesma
instituição. O ponto que destacamos é que quando as práticas,
violentas e inconseqüentes,
dos marginais tornam-se indiscerníveis daquelas realizadas pela
polícia, a sociedade que neste caso aplaudiu a atuação desta última,
acaba ficando a mercê das duas.
O
relatório produzido pela Human Rights Watch em abril de 1997
abordando o tema da brutalidade policial no Brasil, concluiu que a
impunidade, produto do descompromisso de várias instituições
brasileiras, é o fator que mais contribui para a manutenção de
práticas abusivas por parte da polícia.
Ainda de acordo com o documentado no relatório sobre a
situação brasileira, muitas autoridades têm respondido à
população preocupada com a criminalidade com políticas que
toleram ou promovem graves violações dos direitos de suspeitos
de prática criminosa. O relatório trata as violações mais
graves: a execução extra-judicial, a tentativa de homicídio com
armas de fogo e o desaparecimento forçado de civis, assim
como a resposta insatisfatória a estes crimes por parte das
autoridades políticas, do Ministério Público e do Judiciário.
Nos
maiores centros urbanos brasileiros, a polícia mata muitas vezes
sem justificativas. Quando
age de tal forma, freqüentemente preenche falsos relatórios
descrevendo execuções extra-judiciais como tiroteios envolvendo
perigosos criminosos. Em
muitos casos, estes policiais homicidas levam os corpos de suas vítimas
para os setores de emergência dos hospitais para que recebam os
“primeiros socorros”. Ao
remover os corpos das vítimas do local do crime, violando a
legislação brasileira, estes policiais efetivamente eliminam a
possibilidade de uma investigação adequada dos casos por parte
dos peritos. Em
alguns estados, policiais dão continuidade à abominável prática
de desaparecimento forçado utilizada no Brasil durante o regime
militar. Tal prática,
que normalmente inclui detenções não registradas ou a sonegação
de informações sobre o destino ou o paradeiro das vítimas,
seguida de execução extra judicial e sumiço do cadáver, é uma
aberração que deve ser imediatamente erradicada pelas
autoridades brasileiras.
No
Estado do Rio de Janeiro, a polícia chegou a matar uma média de
60 pessoas por mês nos primeiros meses de 1998; em São Paulo, a
média na região metropolitana da capital tem sido de
aproximadamente 40 pessoas no mesmo período. Em Nova Iorque, uma
cidade violenta com uma polícia agressiva e muitas vezes
truculenta, a média anual é de menos de 30. Se é certo que este tipo de violação
pode ser mais corrente no Brasil do que nos Estados Unidos, onde
os casos mais frequentemente denunciados são de espancamento e
abordagens violentas, o ponto fundamental é que em ambos a prática
policial diverge radicalmente do que a lei exige, constituindo
assim uma grave ameaça à ordem democrática e ao estado de
direito.
A
polícia, geralmente responsável pelos inquéritos iniciais de
seus próprios crimes, raramente investiga os homicídios
cometidos por policiais de forma diligente. Quando chegam ao
Ministério Público, estes casos precariamente documentados quase
nunca recebem prioridade. Uma vez apresentada a denúncia, os fóruns
brasileiros, particularmente os da Justiça Militar, não cumprem
a obrigação legal de condenar e sentenciar policiais violentos.
O preconceito contra suspeitos é quase tão difundido na Justiça
quanto entre as forças policiais e a sociedade em geral.
Como escreveu um juiz mineiro ao absolver policiais
acusados de seqüestrar um preso e torturar diversos outros: “O
enunciado ‘direitos humanos’ só existe para proteger o
infrator da norma penal quando, na verdade, deveria existir para
proteger o cidadão honesto contra a ação do bandido.”
Em
muitos estados, as autoridades encarregadas de supervisionar a
segurança pública têm adotado políticas que parecem, de fato,
fomentar os abusos contra os direitos humanos. Por exemplo, no Rio
de Janeiro, em novembro de 1995, o governador do estado assinou um
decreto autorizando a concessão de gratificações salariais para
policiais que demonstram ‘bravura’. Ao mesmo tempo, o secretário
de Segurança Pública reativou uma antiga medida que permitia a
promoção de policiais pelo mesmo motivo. Na prática, estas
gratificações e promoções foram utilizadas para recompensar
policiais que assassinaram suspeitos de crimes, independentemente
das circunstâncias. A Human Rights Watch mostrou, por exemplo,
que em 92 incidentes em um período de um ano, nos quais 179
policiais foram promovidos por bravura, 72 civis foram mortos
enquanto foram 6 os policiais que morreram. No entanto, apesar das
provas claras de que estas e outras políticas incentivavam
diretamente a violência policial (um levantamento do ISER de
outubro de 1997 mostrou que a média mensal de pessoas mortas pela
polícia militar na capital fluminense pulou de 16 para
32 no período seguinte à posse do Cel. Cerqueira na
Secretaria de Segurança Pública), a sociedade e os orgãos públicos
demoraram para por um fim a elas. Apenas em junho de 1998, a
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou um
projeto de lei suspendendo as premiações por bravura.
Ao
mesmo tempo, diversas autoridades estaduais no Brasil afora têm
desencadeado esforços encorajadores para atacar o problema da
violência policial. Em
São Paulo, o secretário de Segurança Pública implementou um
programa para retirar temporariamente da ativa policiais
envolvidos em assassinatos, oferecendo-lhes um serviço de
aconselhamento psicológico.
O secretário criou também a Ouvidoria para receber denúncias
de violência policial. Em
Belo Horizonte, o Ministério Público estabeleceu uma Promotoria
para tratar de casos de violações dos direitos humanos.
Esta Promotoria já denunciou quase 500 policiais civis por
abuso de autoridade ou lesão corporal — os únicos
crimes pelos quais policiais que participam de torturas podiam
ser processados, segundo o Código Penal Brasileiro, até a lei
tipificando o crime de tortura, em abril de 1997. Em setembro de
1998 a recém criada Ouvidoria de Polícia de Minas Gerais começou
a funcionar. Em Pernambuco, o governo do estado forneceu suporte
financeiro para um programa de proteção às testemunhas
coordenado por uma das mais atuantes organizações não-governamentais
do estado; este programa, PROVITA, está sendo implementado em
mais quatro estados no Brasil. Esperamos que este número dobre em
1999. Em diversos
casos examinados no estudo da Human Rights Watch, as autoridades
foram bem sucedidas na acusação de policiais responsáveis por
execuções extra-judiciais. Apesar de claramente constituirem-se
em exceções, estes casos demonstram que o círculo de impunidade
pode ser quebrado, particularmente naquelas instâncias em que
organizações não-governamentais atuam como assistentes da acusação
ou pressionam as autoridades para que punam judicialmente
policiais violentos.
Em
seguida enumeramos as medidas através das quais, assim organizada
e devidamente representada, a atuação da sociedade civil no monitamento da atuação da polícia pode tornar-se
efetiva.
Em
primeiro lugar tornar possível de fato processar criminalmente
policiais violentos; estabelecer competência federal para crimes
contra os Direitos Humanos e assim investigar de forma
independente o abuso policial, pois o método atual de investigação
interna dos crimes cometidos por policiais é talvez o fator que
mais propicie a impunidade. A
revisão dos procedimentos para que tais processos fossem exequíveis
deveria incluir os seguintes elementos:
Investigar
através do Ministério Público, e não através do inquérito
policial, criando grupos de Investigadores Independentes dentro
Ministério Público.
Tornar
Independentes os Institutos Médico-Legais,
pois na grande maioria dos estados brasileiros, os profissionais
do Instituto Médico Legal (IML) e outros especialistas como os técnicos
em balística são subordinados à polícia ou ao Secretário de
Segurança Pública que controla a polícia.
Como resultado desta falta de independência, exames
obrigatórios nos detentos deixam freqüentemente de ser
realizados e exames médicos, incluindo as autópsias, muitas
vezes são efetuados sem detalhamento suficiente, particularmente
em casos em que as vítimas são suspeitas de envolvimento com o
tráfico de drogas ou outros comportamentos criminosos. A independência
do IML é fundamental também para a manutenção de estatísticas
precisas de homicídios, porque permitiria o cruzamento dos dados
da polícia sobre uso de força letal com as cifras do IML sobre
as causas e circunstâncias da morte em casos de homicídios de
civis pela polícia.
Eliminar
definitivamente a competência da Justiça Militar para crimes
contra civis. Criar neste sentido orgãos intermediários como
Ouvidorias ou Conselhos para os Direitos Humanos.
Proteger
as testemunhas através de programas especiais que as denúncias não
sejam responsabilidade da mídia, como tem acontecido com os raros
casos de reportagens que tratem de denúncia sobre esquemas e
redes de corrupção.
Impor
disciplina administrativa através da Constituição, a qual deve
sofrer emendas retificando as cláusulas que garantem a manutenção
dos cargos de policiais apesar de seu envolvimento em graves violações
dos direitos humanos. Os policiais são servidores públicos que
devem estar sujeitos à demissão pela violação dos direitos
humanos básicos.
Controlar
a força letal e controlar os disparos das armas de fogo. As
autoridades deveriam tomar medidas decisivas para assegurar que a
utilização da força letal por parte dos policiais ocorra apenas
em casos extremos de proteção à vida.
A força letal não deveria ser utilizada para controlar ou
eliminar pessoas simplesmente porque estas são vistas como
indesejáveis ou pelo seu envolvimento em atividades criminosas,
da mesma forma que não deveria ser utilizada quando terceiros, não
envolvidas na atividade criminosa, são desnecessariamente
expostas ao perigo.
As
forças policiais — civil e militar — devem manter um controle
mais rígido sobre a utilização das armas de fogo.
Uma maneira de garantir um controle mais rigoroso é
requerer o preenchimento de relatórios para cada disparo de arma.
Esta exigência sublinharia a extrema gravidade da natureza
da utilização das armas de fogo e desestimularia o uso irresponsável
e criminoso das mesmas.
Proibir
imediatamente e por completo o uso de armas de fogo não oficiais,
não sujeitas ao devido controle, pois é
essencial que as autoridades policiais possam registrar as
ocasiões de uso das armas de fogo por seus subordinados.
Implantar
treinamento mais intenso e técnico de policiamento preventivo e
ostensivo.
Organizar
e publicar dados sobre os abusos cometidos que possam ser
acessados pela comunidade.
III. Pontos
Comuns
De
acordo com a nossa proposta inicial, tratar dos pontos comuns
à prática abusiva da força policial nos Estados Unidos e
no Brasil, passamos aos elementos que são anteriores às diferenças
entre as duas realidades sociais e que acabam justificando a
brutalidade com a qual a polícia usualmente conduz suas
atividades: impunidade legal, falta de rigor por parte dos ministérios
públicos, a limitada competência federal e ausência de transparência
no processos que apuram denúncias.
O
primeiro ponto a ressaltar é a impunidade a que estão sujeitas
às ações criminosas praticadas pelas polícias americana e
brasileira. Tal fato deve-se basicamente em serem as investigações
de atos criminosos de competência interna à própria instituição
policial. A Justiça Militar é um tribunal de exceção inadmissível
na realidade social de hoje em dia. Responsabilidade civil e
responsabilidade criminal da polícia deveriam ser
repensadas em termos de que, no modo como são atribuídas,
constituem uma fratura na condição plena de cidadania. Uma vez
que os guardiães da lei e da ordem na cidade, a polícia, fica
ela mesma eximida da responsabilidade sobre a violência de seus
atos, a injustiça justificada pelo cumprimento da lei, provoca-se
uma espiral de impunidade, onde acaba sendo inviável atribuir a
alguém a origem de um determinado ato de abuso.
A
responsabilidade é dissolvida no interior da própria instituição
que deste modo auto justifica suas práticas abusivas. A recuperação
da função original da polícia de guardar o cumprimento da lei e
da ordem na cidade, e nesta função justificar o uso de alguma
força, pode ser recuperada desde que a sociedade assuma a função
que lhe cabe de monitorar e controlar a ação desta força. Por
isso, os processos de apuração de toda e qualquer denúncia de
abuso policial tem que necessariamente envolver de modo direto a
sociedade civil. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, isto
implica que os processos oficiais (sejam na justiça, sejam dentro
da corporação policial) ocorram na máxima
transparência; em contrapartida, a sociedade civil, através
das Ouvidorias ou orgãos criados com funções semelhantes (Civilian
Review Boards) devem ter a competência de conduzir investigações
paralelas.
É
interessante destacar a importância do papel das autoridades
federais na luta contra a brutalidade nos dois países. A fraca
atuação das autoridades federais americanas e a falta quase que
total de competência das autoridades da união para com os casos
de violência policial constituem um dos pontos centrais para a
reforma dos mecanismos de controle externo da polícia.
Precisamente por relativamente independentes e por tanto não
sujeitas às pressões locais, as autoridades federais têm
cumprido um papel central na defesa dos direitos civis nos Estados
Unidos, ajudando assim a manter o frágil equilíbrio entre a
vontade, às vezes mal intencionada, da maioria em uma sociedade
democrática (que
pode querer excluir certos grupos ou violar os direitos dos
chamados marginais) e os direitos individuais.
Os
excessos, simplesmente entregues a si mesmos, acabam igualando a
polícia aos marginais e bandidos, e acabam tornando os cidadãos
refém de ambas. Quando aqueles investidos da guarda da lei não
estão mais também sujeitos a ela, fica muito difícil manter
qualquer outro dentro do mesmo limite.
Bibliografia
Human Rights
Watch. Brutalidade Policial
Urbana no Brasil, Nova York: Human Rights Watch, 1997, 117 páginas.
Human Rights
Watch. Shielded from
Justice: Police Brutality and Accountability in the United States,
New York: Human Rights Watch, 1998, 440 páginas.
Formado em Ciência Política na Universidade de Harvard, e em
Direito na Universidade da Califórnia, Berkeley. É diretor
no Brasil da Human Rights Watch.
Formada em Direito pela PUC/RS e filosofia na UFRGS, mestranda
em filosofia na UFRJ, é assessora jurídica do escritório
brasileiro da Human Rights Watch.
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