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Tortura: impunidade que condena o país

Flávia Piovesan e James Louis Cavallaro

O relator especial da ONU sobre a tortura, Nigel Rodley, concluiu dia 12 sua missão oficial no Brasil. Por três semanas, Rodley e a sua equipe mantiveram reuniões com autoridades e com entidades da sociedade civil, receberam dezenas de dossiês elaborados por organizações de direitos humanos denunciando centenas de casos de tortura e espancamento, realizaram visitas a cadeias, a delegacias, a penitenciárias e a centros de internação para adolescentes em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Belém e Marabá. Caberá agora ao relator da ONU processar o amplo e complexo universo de informações a fim de elaborar um relatório final. O relatório significará a mais completa avaliação da tortura no Brasil feita desde o fim da ditadura.

Mas qual é a efetiva importância do relatório? Primeiro, o relatório detalhará o que Nigel Rodley documentou no país. Em estrita observância ao seu mandato na ONU, o relator limitou-se a comentários gerais e não antecipou as conclusões, que só constarão do relatório final. Contudo, tendo em vista as reportagens publicadas pela imprensa de todo o país, foram denunciados gravíssimos casos de espancamento e tortura -a título de exemplo, merecem destaque o caso das condições subumanas encontradas no 2º Distrito Policial em São Paulo (que fizeram o relator exclamar que tratar presos como animais não aumenta a segurança, mas agrava a insegurança); o caso da Febem de Franco da Rocha (em que foram encontrados pelo relator instrumentos de tortura, como pedaços de pau e barras de ferro, tendo sido os adolescentes, que denunciaram tortura, submetidos a novas sessões de espancamento após a visita do relator) e o caso da Casa de Custódia Muniz Sodré, no Rio de Janeiro (em que uma sessão de espancamento de presos deixou um deles tão ferido que um funcionário, ao vê-lo, chegou a chorar na presença do relator).

Casos como esses levaram o relator a afirmar que a situação no país é muito pior do que esperava e que falta vontade política para punir quem comete tortura no Brasil.

Nada disso, porém, surpreende quem acompanha a situação nas delegacias, nos presídios e nas unidades da Febem -nem sequer quem lê ou assiste jornais da TV regularmente. Nem surpreende o próprio governo, que, ao entregar seu primeiro relatório oficial ao Comitê sobre a Tortura da ONU neste ano, reconheceu expressamente a prática da tortura em delegacias e presídios.

Por que, então, tanta preocupação com as observações do relator da ONU?
A resposta envolve o abismo entre a importância que formadores de opinião e autoridades no país conferem ao tratamento do preso, do acusado e do adolescente infrator e a que conferem à imagem do Brasil no exterior. Nigel Rodley não é um cronista qualquer, a mais, das mazelas do sistema penitenciário do Brasil. Como relator da ONU, ele avaliará como o país observa os parâmetros internacionais relativos ao combate à tortura e seu relatório definirá para muitos no exterior o grau de respeito aos direitos fundamentais no país.

É daí que surge o enorme potencial do relatório para provocar mudanças nos sistemas e estruturas que alimentam a subsistência da tortura no século 21. O objetivo central é que o relatório seja um instrumento que permita a obtenção de avanços na medida em que não se limitará a apresentar o diagnóstico da tortura no país, mas lançará recomendações para prevenir e punir a prática.

Como já disse o relator da ONU, a tortura é um "crime de oportunidade", que pressupõe a certeza da impunidade. A luta contra a tortura, portanto, centra-se na criação e manutenção de mecanismos que eliminem a "oportunidade" de torturar, garantindo a transparência das atividades de polícia.

São necessárias medidas preventivas -transparência do sistema, garantia de livre acesso aos centros de detenção para grupos da sociedade civil, autoridades e mídia e treinamento de policiais e dos funcionários responsáveis pela custódia de pessoas- e repressivas -quando da denúncia de tortura, que o Estado cumpra com rigor o dever de investigar, processar e punir seus perpetradores. A tortura lança o Estado à delinquência, subvertendo a própria lógica do aparato estatal, que, de guardião da lei e assegurador de direitos, transforma-se em agente violador da lei e aniquilador de direitos.
Há regras para combater a tortura. Basta citar que a Convenção da ONU contra a Tortura de 1984 foi ratificada por 119 países (dentre eles o Brasil, em 1989), que se comprometeram a prevenir, punir e erradicar o crime de tortura.
Na experiência brasileira, a Constituição de 1988 foi a primeira a consagrar que a tortura deve ser considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, se omitirem (art. 5º, XLIII da Constituição).

Finalmente, em 7 de abril de 1997 foi aprovada a lei nº 9.455, que tipifica o crime de tortura, até então punido sob a forma de lesão corporal ou constrangimento ilegal. Todavia, não obstante o advento da lei, na prática não foram ainda incorporados os seus avanços. Nos poucos casos comprovados, não se tem aplicado essa lei, mas tem-se recorrido aos crimes de lesão corporal ou constrangimento ilegal, como no passado.

Nesse cenário, a visita oficial de Nigel Rodley pode significar uma relevante contribuição para a adoção de medidas concretas. Ainda que a responsabilidade primária com relação a direitos humanos seja sempre do Estado, cabe ao sistema internacional a responsabilidade subsidiária e complementar, especialmente quando as instituições nacionais mostram-se falhas ou omissas em responder a violações de direitos humanos (como a tortura). Nesse sentido, aguarda-se que as pressões internacionais provocadas pelo trabalho do relator especial possam implicar avanços internos para erradicar essa impunidade que condena o país.

Flávia Piovesan, 31, é professora doutora da PUC- SP, procuradora do Estado e membro do Conselho Consultivo do Centro pela Justiça Global. James Louis Cavallaro, 37, cientista político, advogado, formado pelas Universidades de Harvard e Berkeley (EUA), é diretor do Centro de Justiça Global. Foi diretor no Brasil da Human Rights Watch (1994-1999).

Folha de São Paulo, Tendências/Debates, 20 de maio de 2000

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