JAMES CAVALLARO
Esse americano deixou a Human Rights Watch para fundar uma ONG brasileira de defesa dos direitos humanos, o Centro de Justiça Global, juntamente com a jornalista Maisa Mendonça, que participou da entrevista. Ele diz que os direitos das pessoas não devem se limitar ao campo da violência física, da tortura, crimes esses inaceitáveis, e sim estender-se aos direitos econômicos, sociais e culturais. E acredita que as violações cotidianas de hoje em dia, aceitas naturalmente, poderão reduzir-se na medida em que forem denunciadas no exterior.É a essa dura tarefa que Cavallaro resolveu dedicar-se no Brasil.
Entrevistadores: Cláudio
Júlio Tognolli, Leo Gilson Ribeiro, Sérgio Pinto de Almeida,
Guilherme Azevedo, Márcio Carvalho, Sérgio de Souza
Trecho 01
Sérgio de Souza - Sempre
procuramos começar com o entrevistado fazendo uma pequena
biografia.
James Cavallaro
- Tudo bem. Nasci no Brooklyn, Nova York, um bairro da classe
média, mas classe média operária. Me formei em ciências políticas
em 1984, porque me interessava pela política exterior americana e
pelo que o meu governo estava fazendo. E foi assim que comecei a
trabalhar com questões relacionadas aos direitos humanos.
Primeiro foi com os refugiados centro-americanos que cada vez mais
entravam e chegavam nos Estados Unidos. Comecei em 1985 um
trabalho assistencialista numa casa de hospedagem para refugiados
em El Paso, Texas. Eram refugiados das guerras civis da Guatemala,
El Salvador, Nicarágua. Ia descobrindo que o que estava por trás
era uma política americana de apoio aos governos mais abusivos da
ultradireita, regimes democráticos entre aspas, e assim entrei
cada vez mais nas questões dos direitos humanos, partindo do
assistencialismo, chegando às causas e me envolvendo na política
exterior do governo americano. E sentindo, como cidadão
americano, a responsabilidade de fazer algo para contrapor a essa
política. Depois fui para o Chile, 1988/90, trabalhar com um
grupo de direitos humanos que estava defendendo os presos políticos
chilenos condenados à morte. Era para ficar um semestre, fiquei
quase três anos. Voltei para os Estados Unidos, e aí comecei a
trabalhar na Americas Watch, que depois virou Human Rights Watch,
uma ONG grande, sediada em Washington. Já falava espanhol, então
estudei português e, como falava português, eles me colocaram no
Brasil.
Sérgio de Souza - Por
que você se interessou pelo português?
James Cavallaro
- Foi muitos anos antes, por causa da música brasileira,
principalmente da bossa nova, que adorava e ainda adoro. Gosto
muito do som da língua, do português brasileiro, o de Portugal não
gosto. Então, estudei e aprendi português, numa época em que
pouca gente falava essa língua nos EUA. Hoje tem muitos
brasileiros, mas na época não, e americano que fala português
é muito difícil achar.
Sérgio de Souza - Você
veio para cá em que ano?
James Cavallaro
- Foi em 1993/94, quando a instituição resolveu abrir uma
representação no Brasil. Vim para pesquisar onde abrir, quanto
ia custar, e acabei ficando desde 1994 no Rio de Janeiro.
Sérgio de Souza - Você
deixou a Human Rights Watch e hoje está nessa outra ONG...
James Cavallaro
- Centro de Justiça Global.
Sérgio de Souza - Que
dimensão têm essas ONGs?
James Cavallaro
- A Americas Watch era independente e agora é uma divisão da
Human Rights Watch, que é uma instituição muito grande, existe
em setenta países. Aliás, uma das coisas que me incomodavam
quando era funcionário da Human Rights Watch é que não dá o
peso que o Brasil merece. Como instituição com sede no norte,
muitas vezes estabelece suas prioridades segundo as prioridades do
Primeiro Mundo, segundo as prioridades da imprensa americana, ou
da européia. Nos últimos seis ou sete anos, o crescimento da
Human Rights Watch se dá cada vez mais no Leste Europeu. Por quê?
Porque é uma região, depois da queda do Muro de Berlim, que
desperta maior interesse da imprensa americana e da européia.
Sempre tentei, dentro da instituição, conseguir mais recursos e
investimentos para o Brasil, mas, como o Brasil dificilmente entra
nas manchetes internacionais, não é tão interessante para a
instituição. Enquanto Bósnia, Kosovo, todo mundo reconhece o
que são esses lugares. Então, essa é uma das coisas que levaram
à minha saída. E outros fatores também, por exemplo: a Human
Rights Watch, como a Anistia Internacional, prioriza as questões
típicas que as pessoas associam com os direitos humanos, como
brutalidade policial, condições carcerárias, enfim, a violação
do direito à integridade física que, com certeza, constitui uma
violação importante, mas os direitos humanos não se limitam a
esses direitos. Os direitos econômicos, sociais e culturais
simplesmente não entram na agenda nem da Anistia, nem da Human
Rights Watch. Isso acaba promovendo a idéia de que tais direitos
são aspirações, desejos que temos, mas não são direitos de
verdade.
TRECHO 02
Sérgio Pinto de
Almeida - Acho que a ONU e a OEA são tão fortemente alicerçadas
em postulados já consa-grados, em que o lobby a todo
instante se impõe, deve resvalar na corrupção, deve resvalar em
várias nuances, e por isso essas instâncias não têm
credi-bilidade. Acho que as ONGs não deveriam ter como parâmetro
essas instâncias em que a cúpula dos países entra.
James Cavallaro
- Entendo essa colocação como análise global, mas a ONU é
uma coisa tão enorme, que dentro dela você pode pinçar as
poucas instituições que funcionam bem. Então, você lida com
elas. Assim como na OEA. Um exemplo concreto: a Comissão de
Direitos Humanos da ONU tem pessoas especializadas em
determinadas áreas que pesquisam no mundo inteiro. Sobre tortura,
sobre desaparecimentos forçados, sobre as mulheres, sobre
moradia, enfim, várias áreas. Há um relator especial sobre a
tortura, que é uma pessoa extremamente séria, nomeada porque
houve um forte lobby das ONGs junto à Comissão de
Direitos Humanos, em Genebra – é o Nigel Rodley, que foi
durante muitos anos da Anistia Internacional e que conhece
muito bem a tortura. Ele está vindo para o Brasil porque houve
pressão para que viesse. Essa visita tem um potencial enorme de
projetar no exterior a situação real da tortura no país, que lá
fora é muito pouco conhecida. Prevalece no exterior a visão do
FHC, de que no Brasil tem uma Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, e em São Paulo tem a Ouvidoria, e tem a Ouvidoria no
Rio, e no Pará, e tem a lei que tipifica tortura, então está
tudo resolvido. Só que todo mundo sabe que nas delegacias de polícia
o pau come. Fiz uma pesquisa sobre a situação carcerária no
Brasil, dois anos atrás, e visitei quarenta delegacias e outros
centros de detenção, falei com mais de trezentos presos e a
maioria tinha sido espancada, se não torturada, então é uma
coisa que acontece com freqüência. Agora, qual a importância de
usar a ONU? Vem esse relator especial, vai passar vinte dias no
Brasil. O governo brasileiro vai vender a imagem de que está tudo
sendo resolvido aqui, com ouvidorias, secretaria nacional, pá, pá,
pá, e que há poucos casos isolados. Se as ONGs, se a sociedade
civil se organizar e fizer questão de apresentar todos os casos
para ele, ele vai poder fazer um relatório sério, mostrando a
cara real da tortura no Brasil. E, no exterior, o relatório que
for lançado o ano que vem em Genebra, em todas as línguas
oficiais da ONU, vai realmente fazer uma pressão junto ao governo
brasileiro.
Sérgio Pinto de
Almeida - As ONGs terão acesso a esse cidadão?
James Cavallaro
- Sim, vão ter.
Sérgio Pinto de
Almeida - Quando vai ser a visita?
James Cavallaro
- Entre 20 de agosto e 12 de setembro.
Sérgio Pinto de
Almeida - E já estão agendadas as conversas?
James Cavallaro
- Em várias cidades. Em todas, ele terá pelo menos uma reunião
com as ONGs, e vai também visitar penitenciárias, delegacias,
cadeias, para documentar casos. Então, se você pegar as coisas
que funcionam na ONU, na OEA, e usar de forma inteligente, séria,
você pode produzir efeitos reais para o Brasil. Tenho certeza
absoluta de que FHC vai se preocupar muito, mas muito mais com a
situação de tortura nas delegacias de São Paulo, Rio ou de
qualquer outra cidade quando Nigel Rodley publicar um relatório
em todas as línguas oficiais da ONU e lançar em Genebra,
manchando a imagem do Brasil, do que quando alguém denuncia o
caso pro ouvidor tal, ou pro secretário nacional de direitos
humanos. Vai provocar muito mais impacto, levar o governo a
responder internacionalmente de alguma forma concreta.
Sérgio de Souza - Você
não acha que vão maquiar isso tudo, como na visita de um papa?
James Cavallaro
- Vão maquiar, e depende de a gente mostrar a realidade.
Sérgio de Souza - De
que forma?
James Cavallaro
- De várias formas. Esse homem não é burro, isso que é
importante. Ele vive pesquisando tortura em lugares como a África,
a Ásia, Turquia, e uma das coisas que ele exige como condição sine
qua non da visita é o direito de entrar em qualquer dependência
pública, a qualquer hora. Então, o que ele faz? Ele fala com os
grupos locais, que informam: "Em tal delegacia, a tortura é
na sala tal, que fica em tal lugar". Então, ele vai às 3 da
madrugada, e visita.
Sérgio de Souza - Como
ele vai?
James Cavallaro
- Vai com a equipe dele, tem dois assessores, tem tradutores.
Agora, com certeza, tem aquela coisa: quando você tenta entrar
numa delegacia, no mínimo, a polícia faz você esperar o tempo
suficiente para tirar o cara que está no pau naquele exato
momento, e esconder na cela mais distante. Mas ele consegue
entrar, levantar depoimentos. Conheço relatórios que ele fez em
vários outros países, onde conseguiu falar com pessoas horas
depois de sessões de tortura, com todas as seqüelas, todos os
hematomas, e comprovar. Ele coloca: "Documentei que foi isso,
aquilo". Mas, que vai ter resistência, com certeza no Brasil
vai ter.
Sérgio de Souza - O
Brasil não é mais esperto, mais malandro do que os outros países,
não?
James Cavallaro
- Você acha? (risos) Pode até ser, mas isso...
TRECHO 03
Sérgio de Souza - Você
acha que pode alcançar seus objetivos sem o apoio dos meios de
comunicação?
James Cavallaro
- É muito difícil. Vamos pegar o caso, de novo, do "Basta!
Eu Quero Paz!", e você vê o papel dos meios de comunicação.
Começa com um caso onde houve um seqüestro, um caso terrível de
violência, e no final a polícia atuou de forma incompetente –
há discussões sobre isso, mas deu um tiro que teria atingido a
refém, primeiro grande erro, depois colocou o seqüestrador no
camburão e o estrangulou. No dia seguinte, sabe-se que quem
praticou o seqüestro foi um menino de rua que tinha sobrevivido
à Candelária. Então, se eu visse essa situação como
observador, imaginaria o que, qual deveria ser a resposta da
sociedade civil e das ONGs? Deveria ser exigir uma polícia mais
competente? Treinamento, investimento nas políticas de segurança
pública, exigir não só julgamento e punição dos policiais
assassinos, mas também mecanismos de controle externo de
fiscalização e, no mínimo, algo para lidar com a situação do
seqüestrador, quer dizer, menino de rua ao qual, na época da
Candelária, se prometeu todo tipo de apoio por parte do Estado,
que simplesmente nunca se materializou. Então, estas seriam as três
reivindicações principais: investimento na segurança pública;
programas de fiscalização eficazes da polícia, e algum tipo de
investimento para tirar os meninos da rua ou entender mais
amplamente a idéia; investimentos na comunidade carente, para
tentar responder a esses jovens totalmente perdidos que só podem
ir para o caminho da violência. Em vez disso, o que saiu? Saiu um
movimento em que se juntou quem foi morto pela polícia com o
policial que foi morto, o morador dos morros com o morador do
asfalto, Zona Sul, juntou-se com aqueles que sofrem uma violência
cotidiana dez vezes maior, o morador do morro, com o cara que
talvez, uma vez de três em três anos, é assaltado.
Sérgio Pinto de
Almeida - E tudo com o apoio da Rede Globo.
James Cavallaro
- E tudo totalmente despolitizado, todo mundo de branco, todo
mundo com a vela na janela, dizendo "Basta! Eu Quero
Paz!", mas dizendo para quem? Pros bandidos? Pra quem? Isso
é que acho que mostra que a Rede Globo entrou para despolitizar,
para tirar qualquer elemento de conflito, virou um circo.
Sérgio Pinto de
Almeida - Nessa olimpíada de desrespeito aos direitos humanos
e na tecnologia da tortura, além do pau-de-arara, que leio que
foi a contribuição brasileira, em que mais o Brasil contribui?
James Cavallaro
- Não sei, mas lembro que, quando estava trabalhando numa ONG
de direitos humanos no Chile, havia casos na época de chilenos
que tinham sido torturados e tinham ouvido alguém instruindo,
dando instruções em "portunhol", quer dizer,
brasileiro tentando falar espanhol. Infelizmente, acho que uma das
contribuições dos grupos de repressão brasileiros foi a
contribuição da Operação Condor.
Sérgio Pinto de
Almeida - Mas, em termos de aparelhagem, é o pau-de-arara só?
James Cavallaro
- Acho que sim, não sei de onde surgem o choque elétrico e o
afogamento.
Leo Gilson Ribeiro
- Isso foi muito usado na Argélia.
James Cavallaro
- Nos anos 50 e 60, não é? Mas essas são técnicas
"eficazes" porque produzem dores horríveis e não
deixam seqüelas, quer dizer, marcas, porque seqüelas psicológicas
com certeza deixam. São as técnicas mais usadas no Brasil, além
do espancamento e dos abusos mais comuns, menos sofisticados.
Outra herança brasileira é o trabalho dos esquadrões da morte,
que antecedem a ditadura militar de 1964. Havia no Rio grupos
executando supostos bandidos e isso depois vira fenômeno, nos
anos 50 e 60, em alguns países centro-americanos, e muito mais
nos 70, quando vira prática maciça na América Latina, nas
ditaduras, com conotação política.
Maisa Mendonça - E
qual é a contribuição norte-americana?
James Cavallaro
- Tem fita suficiente? (risos) Nessa questão de formação
de equipes de pressão há muitas denúncias contra os Estados
Unidos e contra a CIA, tem todo tipo de documentação. A CIA fez
um bom trabalho de manter essas informações protegidas, dizendo
que são de segurança nacional, uma desculpa para não dar as
provas claras de que, durante muitos anos, treinou os piores
violadores dos direitos humanos nas técnicas de tortura, de
desaparecimento forçado.
Sérgio Pinto de
Almeida - E é curso mesmo?
James Cavallaro -
Tem uma coisa chamada Escola das Américas onde vão generais,
coronéis para ser treinados, fica na Geórgia, Estados Unidos. Dá
para saber que fulano, beltrano e sicrano, que depois torturaram
na Colômbia, na Guatemala etc., e que foram processados pelo
envolvimento nessas violências, foram treinados na Escola das Américas.
Esse tipo de informação existe, mas entrar na Escola das Américas
com uma câmara para filmar uma aula sobre técnicas de interrogatórios,
infelizmente, não se consegue.
Sérgio de Souza - Recentemente
foi divulgada uma estatística sobre a violência da polícia
paulista...
James Cavallaro -
A polícia de São Paulo matou nos primeiros seis meses deste ano
mais de trezentas pessoas.
Sérgio de Souza - A
maioria, pelas costas.
James Cavallaro
- É, a Folha fez uma reportagem sobre um levantamento
da Ouvidoria. A maioria, pelas costas, quer dizer, execuções! No
Rio, o último ano de que temos as cifras é 1998, foram mais de
setecentas pessoas mortas. Em Nova York, que tem uma das polícias
mais violentas dos Estados Unidos, mata-se de vinte a 25 pessoas
por ano. No Rio, é uma semana, duas semanas, São Paulo a mesma
coisa.
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