El Salvador - Músicas Revolucionárias
2.000
ANOS DE JESUS,
20 ANOS DE ROMERO
-circular
fraterna-
Neste "final" e
"mudança" de século, de milênio, de
"paradigmas", somos muitos, com diferentes tons e
perspectivas, os que expressamos nossos sonhos pensando em uma
nova sociedade, e também em uma Igreja nova. Há como uma espécie
de ânimo coletivo sonhador, que se expressa, nos expressa,
segundo necessidades ou interesses, mas que palpita impaciente na
humanidade deste ano 2.000.
Em nível social, político, econômico,
quer-se uma verdadeira mudança, e não apenas umas pinceladas de
marketing. Em nível cristão -que não deixa de ser também
social, político e econômico- trata-se do Jubileu, que deveria
ser o verdadeiro Jubileu, o jubileu definitivo que Jesus de Nazaré
proclamou, tempo de justiça para os pobres, era de libertação
para a humanidade inteira.
Os "humanos" de hoje
temos uns 35.000 anos de caminhada: tempo suficiente para aprender
as grandes lições da história. Infelizmente, o poder neoliberal
que impera hoje na humanidade se manifesta como uma suicida
"exuberância irracional" da especulação, segundo
Alain Greenspan, do todo-poderoso Banco Mundial. E outros altos
mandatários desse Banco e do FMI acabam de reconhecer que "é
preciso começar a levar em conta os pobres..." Já não se
pode prescindir impunemente da maioria da humanidade!
Frente à morte da esperança que
praticamente o sistema nos prega, o jubileu de Jesus se define a
partir de sua proclamação em Nazaré como a libertação total
dos pobres.
Fechando o século mais cruel da
história, deixou-nos para ir à Casa do Pai Dom Hélder Câmara,
insistindo na esperança. E no mundo inteiro a solidariedade vai
sendo, não somente "o novo nome da paz", mas também o
nome inevitável da sobrevivência.
O balanço da iniqüidade
As estatísticas e os balanços de
sempre se multiplicam em revistas e na comunicação eletrônica.
Continuam sendo, infelizmente, os de sempre. Mas agora, com o peso
específico de um fim de época, fazendo memória e exigindo prognóstico.
Aproximadamente 4/5 da população
mundial assistem à globalização mas dela não participam. Um
bilhão e 300 milhões de pessoas devem passar com menos de um dólar
por dia. Calculando a pobreza absoluta como uma renda inferior a
370 dólares por ano, a Ásia tem 778 milhões de pobres
absolutos; a África, 398 milhões; e a América, 156 milhões.
Dos 4 bilhões e 400 milhões de
habitantes dos países "em desenvolvimento",
aproximadamente 3/5 não têm acesso a água limpa; 1/4 não tem
moradia adequada; e 1/5 não tem serviços normais de saúde.
Calcula-se que no novo milênio faltará água potável para 40%
da humanidade, neste nosso planeta terra que é com mais razão
"planeta água". Os Estados Unidos, por outro lado, com
apenas 5% da população mundial, utilizam 25% dos recursos
mundiais. Com ironia e razão, o sociólogo norte-americano Petras
fala de "globalização ou império americano".
A dívida externa se tornou atual
como notícia e como desafio. Essa dívida que, segundo o próprio
papa, "ameaça gravemente o futuro das nações"; e que,
segundo as Nações Unidas, faz 19.000 crianças morrerem a cada
dia na África. Por outro lado, a África transfere para o
Ocidente mais de 33 milhões de dólares diários.
O movimento "Jubileu
2.000" fez uma campanha no mundo inteiro exigindo que sejam
anuladas as dívidas externas dos países pobres. Conseguiram-se
17 milhões de assinaturas. Pouco depois, correu pelo mundo a notícia
alvoroçada de que os senhores do poder mundial iam cancelar parte
dessas dívidas. A verdade é que o que vão cancelar é
simplesmente de uns 25 bilhões de dólares, que equivalem a 1% da
dívida total dos países de todo o Terceiro Mundo; porque o
montante da dívida externa terceiromundista chega à apavorante
cifra de 2 trilhões e 30 bilhões de dólares, e só 41 países
poderão receber esse "generoso perdão".
Entre os balanços desoladores
deste final de século e de milênio, é preciso sopesar
amargamente o desemprego e o trabalho semi-escravo, a violência
de todo tipo (sem esquecer, afirmava João Paulo II, que "a
pobreza é a primeira violência") e o cínico armamentismo.
A "Minuta da Agenda pela Paz e
a Justiça no Século XXI", que responde ao "Chamado de
Haia pela Paz" proclamava que, "às vésperas de um novo
século, é hora de criar condições nas quais o objetivo
primordial das Nações Unidas -'salvar da guerra as próximas
gerações'- possa ser realizado". Ainda pesam na consciência
os 110 milhões de mortos das intermináveis guerras do século
XX. Mas, ainda, somente na África, há 18 países envolvidos em
guerras que afetam 180 milhões de pessoas. Em 70 países
espreitam 119 milhões de minas semeadas, e somente em Angola,
elas já produziram 100 mil mutilados. O exército mexicano, que
em 1995 tinha 130 mil homens, agora tem mais 40 mil, sobretudo
para impedir as mais que justas reivindicações dos povos indígenas
de Chiapas. A administração Clinton atingiu o recorde de 21,3
bilhões de dólares de armamento exportado.
A maior parte das vítimas dessas
guerras, hoje tão modernas e até virtuais, são, como lamentava
Noam Chomsky falando do Timor Leste, "vítimas que não valem
a pena".
"A irmã mãe Terra",
como diria Francisco de Assis, está sendo brutalmente violentada.
Seus produtos já não são naturais, são transgênicos. E só em
nosso Brasil, durante um ano, foram derrubados 16.838 km2 de
florestas. Na Amazônia se derrubou, por dia, uma média
equivalente à área de 7 mil campos de futebol. Um quarto da
superfície da terra está sob ameaça de desertificação.
A diretora do Programa Mundial de
Alimentos, da ONU, reconhecia há pouco a incapacidade da própria
ONU para resolver a "insegurança alimentar" nos próximos
anos, o que quer dizer que entre 800 e 900 milhões de seres
humanos -aproximadamente 20% da população mundial- estão
condenados a morrer... de fome.
A superpopulação das grandes
cidades já é muito mais que uma ameaça. Segundo o informe do
PNUD de 1998, no ano 2015 o México terá mais de 19 milhões de
habitantes, São Paulo mais de 20 milhões, Bombaim mais de 26,
Xangai mais de 17, Buenos Aires mais de 13, Manila mais de 14 e
Lagos mais de 24. Nos próximos 15 anos, portanto, 55% da
humanidade viverá nas cidades, quando, no século XIX, só 5% da
população mundial viviam nelas.
O AMI (Acordo Multilateral de
Investimentos) não morreu; está se travestindo. Assim como não
morreu ainda a Escola das Américas e se está cogitando uma
Escola da África, que não é de hoje: das 53 nações africanas,
43 receberam treinamento militar dos Estados Unidos, e 26 delas
eram nações não democráticas.
Ontem, digamos, em seu
"manifesto comunista", Marx e Engels profetizavam
lucidamente para nosso hoje neoliberal que "o poder estatal
moderno não passa de um comitê executivo encarregado de
gerenciar os negócios comuns da burguesia", do FMI, das
transnacionais. Porque é necessário sempre recordar que,
enquanto se paga a dívida externa, obedecendo aos ditames
neoliberais, não se pagam as dívidas internas de nossos países.
E os governos deixam de estar a serviço de seus povos para
submeter-se a um verdadeiro império neoliberal apátrida.
Quando se propugna tão
insistentemente um desenvolvimento sustentável, devemos entender
dialeticamente, para todas as conseqüências da militância, que
o atual modelo de desenvolvimento dos Estados Unidos e da Europa
é não apenas social, econômica e ecologicamente insustentável,
mas também eticamente iníqüo.
A memória subversiva
Vamos fazer verdade nossa memória,
"e essa verdade será que não há esquecimento" (Mario
Benedetti). Nem da vida, morte e ressurreição de Jesus, nem da
história ambígua de sua Igreja, nem do clamor secular,
crescente, inescutado, dos pobres da terra, nem de tantos e tantas
testemunhas de sangue que nos convocam à fidelidade.
São 2.000 anos de Jesus e 20 anos
de Romero. Duas datas que poderão parecer desproporcionais numa
mesma epígrafe, porque Jesus é Jesus, e que, entretanto, se
relacionam intimamente. Na América Latina, pelo menos, um bom
jeito, e muito nosso, de celebrar o Jubileu da Encarnação e da
Redenção, é celebrá-lo "à Romero".
Muito se está escrevendo, também,
sobre a celebração do Jubileu. Começaram já há meses as
grandes celebrações e se preparam outras ainda maiores. Não
faltaram, entretanto, vozes oportunas que chamassem a atenção.
"No ano 2000, a opção pelos
primidos como sujeitos -escreve Giulio Girardi- impõe-nos uma
tomada de partido contra a interpretação triunfalista do Jubileu
que o concebe como uma exaltação do cristianismo histórico.
Esta opção exige uma reinterpretação do Jubileu como crítica
severa não só à civilização ocidental, mas (também) ao
modelo de cristianismo que sacrificou a opção pelos pobres à opção
pelos impérios; crítica inspirada nas imprecações contra a
religião do templo, lançada pelos profetas e sobretudo pelo próprio
Jesus na instauração da época jubilar."
Naturalmente, cabem as celebrações,
as romarias, o "júbilo" pela vinda de Deus em carne e
em história à nossa terra humana. Mas deveriam ser realizadas
sempre segundo a humildade e a kénosis dessa vinda. Dando ao
Jubileu toda a substância bíblica que nos vem já dos profetas e
que Jesus reabilitou definitivamente para que fosse um Jubileu
total e universal: para que respondesse -essa é a grande
finalidade- ao coração de seu Pai Deus, nosso Pai.
Teoricamente todos entendemos que o
Jubileu, antes de tudo, deve ser voltar a Jesus de Nazaré, ao
Jesus do Evangelho, à sua Causa, o Reino.
Para meu próprio exame de consciência
e partilhando com tantos irmãos e irmãs que caminhamos juntos,
ou que juntos deveríamos caminhar, eu destacaria concretamente:
• A redescoberta do Deus de
Jesus, que é o Deus-Amor, Pai-Mãe de toda a família humana, una
e plural. Um Deus capaz "de fazer sair das pedras filhos e
filhas seus". Deus de todos os nomes, adorado em todas as
religiões, presente de antemão e sempre em todos os corações
humanos.
• Como conseqüência desta fé
nesse Deus, uma autêntica fraternidade/sororidade universal,
"na qual se reconhecerá que somos os discípulos" de
Jesus.
• Mais além da lei, contra a
lei, às vezes (e falo das leis civis e também das leis
religiosas), o amor-justiça, o amor-solidariedade, o amor-misericórdia.
Um amor parcial, porque parte sempre dos pobres, dos excluídos.
Jon Sobrino acaba de lançar um volume de cristologia intitulado
significativamente "A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir
das vítimas".
• A esperança vitoriosa, que se
funda na cruz do Ressuscitado e que se traduz diariamente, em nível
pessoal e em nível social, em uma fidelidade sempre coerente, em
uma militância inclaudicável, em uma testemunhalidade sem arrogância
mas sem medo, que vai até o fim, como foram tantos irmãos e irmãs
mártires. Esperança vivida e celebrada "contra toda esperança",
apesar de todas as claudicações e fracassos, "apesar de
todos os pesares neoliberais e eclesiásticos", faz-me bem
repetir.
Celebrar os 20 anos do bispo Oscar
Arnulfo Romero, mártir em plena eucaristia, a 24 de março de
1980, em El Salvador, deve ser assumir a herança de Romero, as
causas pelas quais ele deu a vida. Sua conversão aos pobres.
Aquele Jubileu de três anos definitivos que ele selou com seu
sangue. Suas atitudes de escuta, de acolhida, de profecia, de
esperança, seu modo tão localizadamente fiel e tão
politicamente conseqüente de ser pastor. O povo, amado, buscado,
assumido pastoralmente, em suas angústias e suas reivindicações,
o fez santo. E santo o vem declarando desde a sua morte-martírio,
e como santo o venera sobretudo na catedral-catacumba de San
Salvador. O verdadeiro processo de canonização do bom pastor
Romero deve ser o processo da assimilação de suas causas e
atitudes.
Neste final de século é
interessante recolher a afirmação de Ludwig Kaufmann, em seu
livro "Três pioneiros do futuro: cristianismo de amanhã":
"Três pioneiros da fé que
olham cara a cara a realidade de seu presente respectivo..., que
indicam um caminho para que nós possamos ser cristãos amanhã.
João XXIII, que confiava que Deus continua atuando na história,
que soube ler os sinais dos tempos e teve a valentia de colocar a
Igreja no caminho do serviço à humanidade. Charles de Foucauld,
inspirador da comunidade dos irmãozinhos (e irmãzinhas), que, em
avanços sucessivos, buscou deixar para trás as fronteiras e os
privilégios dos cristãos europeus. Oscar Romero, que se decidiu
de maneira radical em favor dos pobres e chegou a ser mártir da
Igreja dos oprimidos."
A opção profética
À luz dessas duas datas, e de suas
exigências e esperanças, eu pessoalmente -e penso que com milhões
de irmãos e irmãs desse sonhador coletivo anônimo- gostaria de
ver as seguintes transformações (radicais) na Sociedade, nas
Religiões, na Igreja:
1 - Como Sociedade,
contestar eficazmente essa mundialização globalizada, de acumulação
de lucro, de consumismo atordoado e de exclusão homicida, para
construir a outra mundialização, a partir de uma atitude de
mundialidade em tudo e cada dia. Contra "a especulação,
investimentos especulativos andorinhas, privilégio da circulação
de mercadoria sobre a circulação do trabalho, informação
dispensável, darwinismo global", possibilitar "a
transparência e abundância da informação, a circulação e
aplicação das tecnologias, os investimentos produtivos, a
universalização dos direitos humanos", "e enraizar
estes direitos nas políticas locais de educação, saúde,
comunicações, emprego" (Carlos Fuentes).
Como alguém sugeriu oportunamente,
conjugar constantemente e em nível mundial os verbos
"partilhar, participar, prevenir".
Um objetivo ineludível seria,
evidentemente, substituir a ONU atual e suas instituições por
outras que sejam mundiais de verdade, equitativamente, sem privilégios
e sem cinismo. Para uma mundialidade "onde caibam todos"
e todos os povos, também os povos indígenas, também os minoritários.
Já faz um certo tempo que se
divulga a campanha pela reforma do banco Mundial. E se propugna a
criação do Tribunal Penal Internacional. Em nossa Agenda
Latino-Americana, que a partir do ano 2001 será
"Latino-americana-mundial", apresentamos um ideário e
algumas realizações concretas dessa mundialidade
"outra". Há muitas propostas e ensaios que vão abrindo
esse caminho; desde a reivindicação insistente da Anistia
Internacional pela abolição da pena de morte no mundo inteiro
(em um único ano se cometeram 1.625 execuções) até a criação
do "Banco dos pobres".
Os países, evidentemente, deveriam
ter seu Estado, soberano e servidor. As "comunidades econômicas"
não existiriam para impor-se, mas para complementar-se. E
sobrariam a Otan e seus cupinchas.
Auscultando profeticamente a situação
de nossos povos da América Latina (de todo o Terceiro Mundo) e
antecipando-se profeticamente à situação ainda mais dramática
que o capitalismo neoliberal criou, Medellín denunciava:
"Queremos ressaltar que os principais culpados da dependência
econômica de nosso povos são aquelas forças que, inspiradas no
lucro sem freio, conduzem à ditadura econômica e ao imperialismo
do dinheiro" (2.9).
Como proposta alternativa deveríamos
cultivar, em todos os níveis, uma cidadania espiritualmente
internacionalista, a solidarização das respetivas identidades e
a internacionalização efetiva da solidariedade.
2 - As Religiões deverão pôr-se
de acordo, em nome do Deus da Vida, do Universo e da Paz, para o
serviço comum das grandes Causas da Humanidade, se quiserem ser
religiões humanas, expressões plurais, as mais profundas, da
alma da mesma Humanidade. Essas Causas vitais que são a comida, a
paz, a saúde, a educação, a moradia, todos os direitos humanos,
os direitos dos povos e as exigências da ecologia.
Já se escreveu a "Carta das
Religiões Unidas" e se realizou, no passado mês de
dezembro, na África do Sul, o "Parlamento das Religiões do
Mundo".
Todo fundamentalismo, todo
proselitismo, toda prepotência na vivência da própria religião
está negando-a, porque nega o Deus vivo que todas as religiões
querem cultuar.
O macroecumenismo, adulto,
dialogante, fraterno, passará a ser uma fundamental atitude de
qualquer religião que mereça este nome. Desde a própria
identidade, na abertura à pluralidade da adoração e da esperança.
Seguindo o sábio conselho do sufi persa do século XIII:
"Como um compasso, temos um pé
fixado no Islam, e com o outro viajamos dentro de outras religiões".
3 - A Igreja, para ser a
Igreja de Jesus, deve colocar-se, exclusivamente, a serviço do
Reino e abandonar um auto-serviço obsessivo.
Para isso, as Igrejas, sobretudo a
Igreja Católica, devem abrir-se ao ecumenismo real... sem esperar
o fim do mundo! E inculturar-se de verdade, por causa do
Evangelho, nos diferentes povos e nas diferentes coordenadas históricas.
A revista "Foc Nou", da
Catalunha, compilou uma série de propostas que respondiam à
pergunta, tão atual: "Como deverão ser os cristãos do século
XX?" Respigo aqui algumas dessas respostas, que muitos cristãos
e cristãs, sem dúvida, fazemos nossas também:
"Com senso comum",
"desprendidos de todo o supérfluo que nos invadiu",
"convencidos de que Deus quer salvar a todos",
"interpelados pela Humanidade de hoje", "os crentes
da pós-cristandade", "fazendo causa vital das grandes
causas da Humanidade", "com uma vital experiência do
Deus dos pobres", "sem colocar medida ao amor de
Deus", "mais fiéis ao Evangelho que submissos ao
Vaticano", "com uma espiritualidade distante de todo
integrismo", "pessoas que mantenham viva a esperança",
"enquanto se espera um Vaticano III", "profunda e
intimamente agarrados por Jesus", "com maturidade humana
e de fé", "chispas do fogo abençoado na noite da Páscoa"...
Pensando já mais concretamente em
nossa Igreja Católica, é preciso rever seriamente a
corresponsabilidade e ministerialidade a partir de uma profunda
revisão do exercício do papado e do poder de sua cúria. Digo
isso não só eu, pobre de mim: dizemo-lo milhões, e vozes muito
autorizadas o declararam abertamente. O cardeal Ratzinger, nos
tempos de seu famoso livro "O novo povo de Deus",
escrevia: "A Igreja necessita de homens com paixão pela
verdade e pela denúncia profética. Os cristãos devem ser críticos
inclusive frente ao próprio papa, pois determinado panegirismo
faz um grande mal à Igreja e a ele".
O cardeal Etchegaray, na lição
inaugural do encontro "Igrejas irmãs, povos fraternos",
realizado em novembro último, em Gênova, falava do grande
paradoxo proposto aos últimos papas, "conscientes de serem
(como ministério de Pedro) o princípio da unidade dos cristãos
e que (na realidade) se vêem como seu dramático obstáculo".
"O ministério de Pedro -acrescentava o cardeal- que serve
estruturalmente para promover a sinodalidade da Igreja, é também
de natureza sinodal: sua função própria não o situa fora ou
acima do colégio episcopal. O Papa não é de um grau superior ao
episcopado, e tem suas raízes no mesmo sacramento que faz os
bispos."
Por sua vez, o cardeal Martini, na
Terra Santa, presidindo uma grande peregrinação, reconhecia que
a Igreja Católica deve dar passos bem fundamentais para o
ecumenismo, "entre eles, o modo de exercer o primado de Roma,
que deve ser repensado". "De fato -recordava Martini o
que tinha sido notícia mundial- o próprio Papa se declarou
disposto a repensar e a escutar sugestões sobre a forma de exercício
do primado".
A Igreja está pedindo perdão por
muitos pecados seus ao longo destes dois milênios, mas
continuamos sendo pecadores também hoje. Os Sínodos continentais
que acabam de ser celebrados não foram precisamente sinodais; não
responderam às necessidades e às contribuições das Igrejas de
cada Continente. Os bispos japoneses, para citar um exemplo,
insistiam em que "se considerasse sob uma nova luz a relação
entre as Igrejas da Ásia e a Santa Sé", e especificamente
pediam "um sistema de relações baseado na colegialidade e não
no centralismo".
A reforma do papado e de sua cúria
possibilitará -com o "automatismo" do Espírito e pelas
expectativas da Igreja universal- outras muitas reformas em
corresponsabilidade, em colegialidade, em inculturação, em legítimo
pluralismo, em ministérios.
No Ecumenismo há algumas boas notícias,
mas é tanto o caminho que falta percorrer que acabam sendo muito
lentas e tímidas. O documento de Augsburgo, por exemplo, entre a
Igreja Católica e a Igreja Luterana, chega depois de cinco séculos
de incompreensões, para acabar dizendo que ambas as partes se
complementam na inefável "Justificação"...
Urge que nos sintamos todos irmãos
e irmãs "separados"; nós os católicos também. Urge
entender o ecumenismo como um ir e vir ao encontro do único
Evangelho de Jesus de Nazaré. E urge reconhecer as respectivas
tradições, bem como reconhecer a legítima autonomia das Igrejas
locais, e descobrir nessas tradições e nessa autonomia a ação
do Espírito "que sopra onde quer" e que nos "vai
manifestando a verdade completa". Urge animar os teólogos e
teólogas, ao invés de espantá-los em seu serviço de
sistematização da fé e abertura de horizontes. Lamentavelmente,
"durante o último papado, uns 500 deles (e delas) foram
silenciados de um modo ou de outro, pelo Vaticano".
Diante do mal-estar generalizado,
frente à involução programada e à obsessão por decretar,
definir e fechar a passagem, querer um novo Concílio Ecumênico
-dentro da próxima década, sugere o cardeal Martini- não é
nenhuma frivolidade eclesial.
Que para este novo milênio não se
possa repetir a amarga definição que Rahner fazia da existência
da Igreja fora da Europa, como "o fruto da atividade de uma
multinacional que exportou a religião como um bem que não podia
ser alterado e que foi levado a todas as partes através de uma
cultura e civilização consideradas superiores".
Não é derrotismo amargo nem
hipercrítica irresponsável. É amor à Igreja e sobretudo ao
Reino. É esperança comprometida. O cardeal Franz König, na
defesa que fazia, o ano passado, do Pe. Jacques Dupuis, teólogo
do diálogo inter-religioso, desabafava assim, com emoção bem
eclesial: "Não posso permanecer em silêncio porque meu coração
sangra quando vejo falhas tão evidentes contra o bem comum da
Igreja de Deus".
Programas fraternos
Dentro das muitas celebrações
-mais acertadas, menos acertadas- e respeitando todos os gostos
desde que sejam evangélicos, que respeitem a alma do Jubileu,
quero destacar aqui, convidando ao mesmo tempo, alguns
acontecimentos próximos que nos afetam visceralmente.
- Em San Cristóbal de Las Casas,
Chiapas, México, de 20 a 26 de janeiro se celebrará uma
despedida-homenagem ao Tatic providencial, Dom Samuel Ruiz, com
uma Semana de Teologia, entre outras manifestações.
- En San Salvador, de 19 a 26 de
março, serão celebrados os 20 anos do martírio de nosso "São
Romero da América". Entre outras atividades e celebrações,
o Sicsal (Secretariado Internacional Cristão de Solidariedade com
e da América Latina) realizará seu congresso.
- No Brasil dos 500 anos, mal
contados, mal vividos política e economicamente, de 11 a 15 de
julho, em Ilhéus, Bahia, terá lugar o 10º Encontro
Intereclesial de CEBs, pelos "2.000 anos de caminhada" e
como "Memória, sonho e compromisso".
- Em Belo Horizonte, de 24 a 28 de
julho, será celebrado o Encontro Latino-Americano de Teologia
2000, organizado pelas Sociedades Teológicas do Brasil (Soter),
da Argentina (SAT) e do Uruguai (SUT), mas com alcance
continental.
- Na República Dominicana, de 1º
a 7 de novembro, e com uma peregrinação ao Haiti, celebraremos a
3ª Assembléia do Povo de Deus (APD), um novo pequeno pentecostes
macroecumênico.
- E aqui, dentro da Prelazia de São
Félix do Araguaia, em Ribeirão Cascalheira, dias 17 e 18 de
julho do ano 2001 (dois mil e um, atenção!) vamos celebrar
comprometidamente a Romaria dos Mártires da Caminhada
Latino-Americana, por ocasião dos 25 anos do martírio de nosso
padre João Bosco Penido Burnier.
"Nós somos o tempo",
ponderava Santo Agostinho. Sejamos o Jubileu, com toda a nossa
vida.
Um solene ciclo de conferências,
celebrado neste último ano do século, se intitulava,
ansiosamente: "Em busca do paradigma perdido". Nós, irmãos,
irmãs, não perdemos o paradigma, certo?
Pedro Casaldáliga
No ano 2000
São Félix do Araguaia, MT, Brasil
araguaia@ax.apc.org
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