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              Brasil e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
 
 Antônio
              Augusto Cançado Trindade Ph.D.
              pela Universidade de Cambridge (Inglaterra) juiz
              vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos professor
              titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco Associado
              do Institut de Droit International A decisão do Brasil de aceitação da competência
              contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos reconcilia
              a posição de nosso país com seu pensamento jurídico mais lúcido,
              além de congregar as instituições do poder público e as
              organizações não-governamentais e demais entidades da sociedade
              civil brasileira em torno de uma causa comum: a do alinhamento
              pleno e definitivo do Brasil com o movimento universal dos
              direitos humanos, que encontra expressão concreta na considerável
              evolução dos instrumentos internacionais de proteção nas cinco
              últimas décadas. Há meio século, no mesmo ano da adoção das
              Declarações Universal e Americana dos Direitos Humanos, a Delegação
              do Brasil à IX Conferência Internacional Americana (Bogotá,
              1948) propunha a criação de uma Corte Interamericana de Direitos
              Humanos (1). Esta só se estabeleceu, no entanto, em 1979, depois
              da entrada em vigor da Convenção Americana sobre Direitos
              Humanos (uma década após a adoção desta), como órgão
              judicial autônomo, dotado de funções consultiva e contenciosa,
              responsável pela interpretação e aplicação da Convenção
              (2). O Brasil, Parte na Convenção desde 1992
              (consoante decisão tomada em l985 (3), vem de tomar a correta
              decisão de aceitar a competência em matéria contenciosa da
              Corte. Nesse propósito, foi encaminhada Mensagem do Poder
              Executivo ao Congresso Nacional (nº 1.070, de 9 de setembro último),
              prontamente aprovada pela Câmara dos Deputados (em votação unânime
              de 13 de outubro passado). Falta agora o pronunciamento do Senado
              Federal, para ultimar as providências no tocante ao depósito,
              pelo Poder Executivo, do instrumento (ato unilateral) de aceitação
              pelo Brasil da competência obrigatória da Corte sob o artigo 62
              da Convenção Americana. Em 13 de maio último, por ocasião da III
              Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada no auditório
              da Câmara dos Deputados, me permiti, em longa exposição no
              painel inaugural, recordar as razões que ao longo dos anos venho
              sustentando em favor da pronta aceitação pelo Brasil da
              mencionada competência da Corte (4). De início, não há, como
              na verdade nunca houve, qualquer impedimento a que o Brasil assim
              procedesse. Muito ao contrário, tal decisão se impunha porquanto
              a própria Constituição brasileira de 1988 propugna (artigo 7º
              das Disposições Transitórias) pela formação de um tribunal
              internacional de direitos humanos, — o qual, por sinal, já
              existe, e opera regularmente há quase 20 anos. Sendo os direitos
              humanos inerentes a toda pessoa humana, são portanto anteriores e
              superiores a qualquer forma de organização política, e sua
              salvaguarda não se esgota assim na ação do Estado. O Brasil participou ativamente dos trabalhos
              preparatórios da Convenção Americana, e apoiou sua adoção de
              forma integral (na Conferência de 1969 de San José da Costa
              Rica, onde veio a sediar-se a Corte), inclusive quanto a suas cláusulas
              facultativas, como a do artigo 62, sobre a aceitação pelos
              Estados Partes da competência contenciosa da Corte (5). Tal
              aceitação constitui, com efeito, uma garantia adicional pelo
              Brasil, a todas as pessoas sujeitas à sua jurisdição, da proteção
              de seus direitos (tais como consagrados na Convenção Americana),
              quando as instâncias nacionais não se mostrarem capazes de
              garanti-los. Ao mesmo tempo, fortalece institucionalmente a Corte,
              ao passar esta a contar com o reconhecimento de um país de dimensão
              continental e com uma vasta população necessitada de maior proteção
              de seus direitos. O Brasil se junta, desse modo, aos 18 dos 25
              Estados Partes na Convenção que já assumiram esse compromisso.
              Pela iniciativa que vem de tomar, o Brasil enfim reconhece que não
              é razoável aceitar tão-somente as normas substantivas dos
              tratados de direitos humanos, fazendo abstração dos mecanismos
              processuais para a vindicação e salvaguarda de tais direitos.
              Umas e outros encontram-se indissoluvelmente interligados, sendo a
              via jurisdicional, de base convencional, a forma mais evoluída de
              proteção internacional dos direitos humanos. No presente domínio,
              as jurisdições nacional e internacional encontram-se em
              constante interação (6), motivadas pelo propósito convergente e
              comum de proteção do ser humano, como co-partícipes que são na
              luta contra as manifestações do poder arbitrário. Face a
              insuficiências e carências do direito interno, muitos casos de
              direitos humanos, que as instâncias nacionais não conseguiram
              resolver, só têm encontrado solução graças ao concurso das
              instâncias internacionais de proteção. É significativo que
              algumas decisões destas últimas — a exemplo das da Corte
              Interamericana — tenham tido um real impacto no ordenamento
              interno dos Estados demandados, mostrando-se valiosas na luta
              contra a impunidade, verdadeira chaga que corrói a crença nas
              instituições públicas e gera a anomia e apatia sociais. Há, ainda, um efeito didático na aceitação
              pelo Brasil da competência contenciosa da Corte Interamericana:
              tal iniciativa haverá de fomentar um interesse bem maior, em
              particular por parte das novas gerações, pelo estudo e difusão
              da jurisprudência da Corte — formada até o presente por 42
              Sentenças (sobre o mérito dos casos, as reparações às vítimas,
              e exceções preliminares), 15 Pareceres, e 28 Medidas Provisórias
              de Proteção, — que permanece virtualmente desconhecida em
              nosso país, inclusive em nossos círculos jurídicos. A garantia
              da não-repetição de violações passa necessariamente pela
              educação e capacitação em direitos humanos, tornando-se
              essencial, para este fim, o conhecimento da referida jurisprudência
              protetora. A concretizar-se, o mais breve possível, como
              todos confiamos, a iniciativa do Poder Executivo, já aprovada em
              votação unânime pela Câmara dos Deputados, que acolhe
              reivindicações de entidades de nossa sociedade civil, terá o
              Brasil manifestado, em termos claros e definitivos, seu
              compromisso real com a proteção internacional dos direitos
              humanos, neste ano do cinqüentenário das Declarações Universal
              e Americana de 1948. Este passo significativo, que já há muito
              estava o Estado devendo à Nação, contribuirá certamente à
              busca da prevalência dos direitos humanos e do fim da impunidade
              em nosso país. (1) Cf. detalhes
              in: A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacional dos
              Direitos Humanos — Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos,
              São Paulo, Edit. Saraiva, 1991, pp. 551-553 e 586-589. (2) Sobre o alcance
              de sua competência e funções, cf. A.A. Cançado Trindade,
              ‘‘A Corte Interamericana de Direitos Humanos’’, Carta
              Internacional — Universidade de São Paulo (USP), outubro de
              1997, vol. V, n. 56, pp. 7-10. (3) Cf. documentação
              in: A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacional..., op.
              cit. supra n. (1), pp. 564-573; e, para um relato histórico
              detalhado, cf. A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacional
              dos Direitos Humanos e o Brasil )1948-1997): As Primeiras Cinco Décadas,
              Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1998, pp. 33-43,
              60-66, 111-117 e 163-200. (4) O texto da
              exposição, intitulada ‘‘Memorial em Prol de uma Nova
              Mentalidade quanto à Proteção dos Direitos Humanos nos Planos
              Internacional e Nacional’’, vem de ser reproduzido pela
              Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no tomo recém-publicado
              de seus Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
              em Direito, pp. 3-48. (5) Cf. documentação
              nas fontes citadas na nota (3), supra. (6) Cf., a
              respeito, A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional
              dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1997,
              capítulo X, pp. 401-447. |