O
tamagochi e o cuidado
SABER CUIDAR
LEONARDO
BOFF
(Importante
obra de Leonardo Boff, filósofo, teólogo e cientista, editada
pela Editora Vozes, sob o título SABER CUIDAR - Ética do humano
- compaixão pela terra)
Abertura
A
sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da
comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais
incomunicação e solidão entre as pessoas. A Internet pode
conectar-nos com milhões de pessoas sem precisarmos encontrar
alguém. Pode-se comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir
comida, assistir a um filme sem falar com ninguém. Para viajar,
conhecer países, visitar pinacotecas não precisamos sair de
casa. Tudo vem à nossa casa via on
line.
A
relação com a realidade concreta, com seus cheiros, cores,
frios, calores, pesos, resistências e contradições é mediada
pela imagem virtual que é somente imagem. O pé não sente mais o
macio da grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra
escura, O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano,
caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do
toque, do tato e do contato humano.
Essa
anti-realidade afeta a vida humana naquilo que ela possui de mais
fundamental: o cuidado e a compaixão. Mitos antigos e pensadores
contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência
humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na
criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado é, na
verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência.
No cuidado se encontra o ethos* fundamental do humano. Quer dizer,
no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes
que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir.
O
tipo de sociedade do conhecimento e da comunicação que temos
desenvolvido nas últimas décadas ameaça a essência humana.
Porventura, não descartou as pessoas concretas com as feições
de seus rostos, com o desenho de suas mãos, com a irradiação de
sua presença, com suas biografias marcadas por buscas, lutas,
perplexidades, fracassos e conquistas? Não colocou sob suspeita e
até difamou como obstáculo ao conhecimento objetivo, o cuidado,
a sensibilidade e o enternecimento, realidades tão necessárias
sem as quais ninguém vive e sobrevive com sentido? Na medida em
que avança tecnologicamente na produção e serviço de bens
materiais, será que não produz mais empobrecidos e excluídos,
quase dois terços da humanidade, condenados a morrer antes do
tempo?
Nossa
meditação procura denunciar semelhante desvio. Ousamos
apresentar caminhos de cura e de resgate da essência humana, que
passam todos pelo cuidado.
Alimentamos
a profunda convicção de que o cuidado, pelo fato de ser
essencial, não pode ser suprimido nem descartado. Ele se vinga e
irrompe sempre em algumas brechas da vida. Se assim não fosse,
repetimos, não seria essencial. Onde o cuidado aparece em nossa
sociedade? Em algo muito vulgar, quase ridículo, mas extremamente
indicativo: no tamagochi.
O
que é o tamagochi? É
uma invenção japonesa dos inícios de 1997. Um chaveirinho
eletrônico, com três botões abaixo da telinha de cristal, que
alberga dentro de si um bichinho de estimação virtual.
O
bichinho tem fome, come, dorme, cresce, brinca, chora, fica doente
e pode morrer. Tudo depende do cuidado que recebe ou não de seu
dono ou dona.
O
tamagochi dá muito trabalho. Como uma criança, a todo momento
deve ser cuidado; caso contrário, reclama com seu bip; se não
for atendido, corre risco. E quem é tão sem coração a ponto de
deixar um bichinho de estimação morrer?
O
brinquedo transformou-se numa mania e tem mudado a rotina de
muitas crianças,jovens e adultos que se empenham em cuidar do
tamagochi, dar-lhe de comer, deixá-lo descansar e fazê-lo
dormir. O cuidado faz até o milagre de ressuscitá-lo, caso tenha
morrido por falta de atenção e de cuidado.
Bem
disse um perspicaz cronista carioca: “solidão, seu codinome é
tamagochi”. O cuidado pelo bichinho de estimação virtual
denuncia a solidão em que vive o homem/a mulher da sociedade da
comunicação nascente. Mas anuncia também que, apesar da
desumanização de grande parte de nossa cultura, a essência
humana não se perdeu. Ela está aí na forma do cuidado,
transferido para um aparelhinho
eletrônico, ao invés de ser investido nas pessoas concretas à
nossa volta: na vovó doente, num colega de escola deficiente físico,
num menino ou menina de rua, no velhinho que vende o pão matinal,
nos pobres e marginalizados de nossas cidades ou até mesmo num
bichinho vivo de estimação qual seja um hamster, um papagaio, um
gato ou um cachorro.
O
cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também
de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade.
É o que vamos propor no presente livro.
Sonhamos
com um mundo ainda por vir, onde não vamos mais precisar de
aparelhos eletrônicos com seres virtuais para superar nossa solidão
e realizar nossa essência humana de cuidado e de gentileza.
Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a
Terra, onde os valores estruturantes se construirão ao redor do
cuidado com as pessoas, sobretudo com os diferentes culturalmente,
com os penalizados pela natureza ou
pela história, cuidado com os espoliados e excluídos, as
crianças, os velhos, os moribundos, cuidado com as plantas, os
animais, as paisagens queridas e especialmente cuidado com a
nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonhamos com o cuidado
assumido como o ethos* fundamental do humano e como compaixão
imprescindível para com todos os seres da criação.
*
As palavras com asterisco (*) usadas no texto são
explicadas no Glossário para
facilitar a compreensão das idéias expostas no livro.
Glossário
Animus/anima:
expressão
difundida pelo psicanalista C.G. Jung (1875—1961) para designar
a dimensão masculina (animus)
e feminina (anima) presentes
em cada pessoa e que se reflete nos padrões culturais de
comportamento.
Androcentristno:
palavra
de origem grega que designa a centralização do poder na figura
do homem (andér), dominando,
por isso, a mulher.
Antrópíco,
princípio: conjunto
de idéias, baseadas na seguinte constatação: o fato de estarmos
aqui e dizermos tudo o que dizemos, só é possível porque o
universo se constituiu com tal simetria e caminhou com tal propósito
que culminou no ser humano; se assim não fosse não estaríamos
aqui.
Antropóide:
grupo de
primatas superiores que inclui os orangotangos, gorilas e chimpanzés.
Arquétipo:
padrões
de comportamento existentes no inconsciente coletivo da
humanidade, representando as experiências básicas feitas no afã
de orientar sua vida. Eles emergem na consciência sob a forma de
grandes símbolos, sonhos, utopias e figuras exemplares.
Auto-organização:
organização
espontânea da matéria e das energias originárias que dá origem
aos seres vivos, chamada também de autopoiese*.
Autopoiese:
autocriação
e auto-organização dos seres vivos.
Biosfera:
tudo
o que vive no ar, no solo, no subsolo e no mar forma a biosfera.
Caos:
Comportamento
imprevisível de certos sistemas, especialmente, vivos e que
possibilitam ordens novas ou diferentes; por isso diz-se que o
caos não é “caótico” mas generativo.
Cibionte:
macroorganismo
resultante da simbiose* e da articulação do biológico com o mecânico
e o eletrônico. As sociedades atuais constituem o cibionte, pois
coexistem e co-evoluem juntos os seres humanos, as sociedades, as
máquinas e as redes de informação formando um todo que prolonga
o processo evolutivo, agora co-pilotado pelo ser humano.
Complementaridade,
princípio: enunciado
pelo físico quântico dinamarquês Niel Bohr, segundo o qual matéria
e a radiação podem ser, simultaneamente, onda e partícula. As
duas descrições se complementam. Esse princípio se aplica também
em outros campos onde se verificam oposições, entendidas como
complementares dentro do sistema global.
Corporeidade:
conceito
que exprime a totalidade do ser humano enquanto é um ser vivo,
parte da criação e da natureza. Não se deve confundir com corporalidade,
termo da antropologia dualista que interpreta o ser humano
como a união de duas panes distintas, o corpo e a alma.
Cosmológico,
princípio: hipótese
segundo a qual o universo se rege pelas quatro forças* originárias
da natureza, a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca
e forte e mostra semelhanças em todos os lugares (é, pois, homogêneo)
e em todas as direções (é, pois, isotrópico). Isso foi
espetacularmente comprovado pela radiação de fundo, último eco
do big bang que vem,
por igual, de todas as partes do universo.
Co-evolução:
evolução
conjunta dos ecossistemas com seus respectivos representantes,
incluindo os sistemas sociais e técnicos.
Cosmologia:
ciência
que estuda o cosmos, sua origem, sua evolução e seu propósito.
Imagem de mundo que uma sociedade produz para orientar-se nos
conhecimentos e para situar o lugar do ser humano no conjunto dos
seres.
Dissipativa,
estrutura: mecanismos
presentes nos processos de autoorganização dos seres vivos
mediante os quais se dissipa a tendência natural para a desordem
(entropia) e se mantém a organização deles no decorrer do
tempo, graças ao fluxo de energia e de informação que os
atravessa.
Ecossistema:
conjunto
de todos os sistemas, sejam naturais sejam técnicos, projetados
pelo ser humano.
Elementos
primordiais: elementos
químicos fabricados por ocasião do big
bang, durante os três primeiros minutos do universo. Trata-se
principalmente do hidrogênio que compõe 3/4 de toda a massa do
universo e do hélio que constitui o outro 1/4 da massa, mais
alguns indícios de deutério e de lítio.
Empoderamento:
tradução
de empowerment em inglês
que significa a criação de poder nos sem-poder ou a socialização
do poder entre todos os cidadãos e reforço da cidadania ativa
junto aos movimentos sociais.
Entropia:
desgaste
natural e irreversível da energia de um sistema fechado, tendendo
a zero; equivale à morte térmica.
Ethos:
em grego
significa a toca do animal ou a casa humana; conjunto de princípios
que regem, transculturalmente, o comportamento humano para que
seja realmente humano no sentido de ser consciente, livre e
responsável; o ethos constrói pessoal e socialmente o habitat
humano; veja moral.
Feng-shui:
filosofia
ecológica chinesa que procura construir, o mais adequadamente
possível, um ambiente de moradia ou de trabalho humano
considerando o equilíbrio de todas as energias que atuam naquele
espaço.
Flutuação:
oscilação
que ocorre em determinada ordem, dada a natureza de seu equilíbrio
que é sempre frágil e sempre por refazer ou criar; os sistemas
vivos e sociais se encontram sempre em flutuação.
Força
gravitacional: força
atrativa que atua sobre as massas; é a mais universal das forças,
embora a mais fraca.
Força
eletromagnética: força
que atua somente sobre as partículas que têm carga; se oposta,
as partículas se atraem; se semelhante, elas se repelem.
Força
nuclear fraca: responsável
pela desintegração dos átomos e da radioatividade. Só age a nível
atômico (10-15 cm).
Força
nuclear forte: força
que liga os quarks (as mais elementares das partículas) para
formar os prótons e os neutrons e que liga os prótons e neutrons
para formar o núcleo atômico. Ela não age sobre os fótons e os
eléctrons. É a mais poderosa das forças da natureza.
Gaia:
um dos nomes da Terra na mitologia grega. O cientista James
Lovelock chamou a Terra de Gaia porque ela mostra reações e
formas de equilíbrio, própria dos seres vivos. Ele seria um
superorganismo vivo.
Higino:
escravo
egípcio de César Augusto, depois diretor da Biblioteca Palatina
em Roma e autor da fábula-mito do Cuidado essencial, analisada em
nosso livro. Morreu no ano 10 de nossa era.
Hinduísmo:
religião,
com muitas ramificações da maioria dos povos indianos,
resultante de uma evolução secular do vedismo e do bramanismo,
que se transformaram pela especulação filosófica e pela integração
de cultos locais.
Holismo:
provém
de holos em grego que
significa totalidade. É a compreensão da realidade que
articula o todo nas partes e as partes no todo, pois vê tudo como
um processo dinâmico, diverso e uno.
Hominídeos:
grupo da
espécie dos primatas que inclui o ser humano atual (homo
sapiens sapiens) e seus ancestrais diretos (homo
sapiens).
Logos:
espírito,
razão, estrutura de sentido (lógica).
Massa
invisível: matéria
de natureza desconhecida que não emite nenhuma luz. A existência
dessa massa invisível deriva dos estudos dos movimentos das
estrelas e do gás nas galáxias. Calcula-se que de 90-98% da
massa total do universo seja massa invisível.
Matriarcado:
veja
matrifocal.
Matrifocal:
diz-se de
uma cultura que tem nas mulheres (mães) o eixo e o foco de
organização social. Chama-se também de matriarcal como oposto a
patriarcal.
Mecânica
quântira: teoria
física desenvolvida nos começos do século XX que descreve as
propriedades da matéria e das energias à escala subatômica.
Segundo essa teoria, a matéria e a luz podem ser consideradas
simultaneamente como partícula e como onda. Só podem ser
descritas em termos de probabilidades. A partícula de luz é
chamada de quantm de energia, donde vem o nome da teoria.
Moral:
formas
concretas pelas quais o ethos
se historiza; as morais são diferentes por causa das culturas
e dos tempos históricos diferentes. Mas todas as morais remetem
ao ethos do humano
fundamental que é um só.
Morfogenético:
na
autopoiese* da vida não são importantes apenas os fatores físico-químicos,
mas também as formas singulares que os seres assumem, pelo que se
distinguem de outros dentro da mesma e comum tradição biológica.
Noosfera:
termo
cunhado por Teilhard de Chardin para designar a nova fase da
humanidade depois da antroposfera e da biosfera, fase
caracterizada pela consciência planetária e pela
responsabilidade pelo destino comum dos seres humanos e do planeta
Terra.
Nucleossíntese:
formação
dos núcleos atômicos através de reações nucleares, seja por
ocasião do big bang (nucleossíntese
primordial, responsável pelos elementos leves como o hidrogênio
e o hélio), seja no coração das grandes estrelas vermelhas
(onde se fabricaram os elementos mais pesados que o hélio e menos
pesados que o ferro), seja nas supernovas (= morte explosiva de
uma estrela que consumiu seu carburante, onde se forjaram todos os
demais elementos, mais pesados que o ferro).
Ontológico:
que tem a
ver com a essência, com a identidade profunda, com a natureza de
um ser, como, por exemplo, o cuidado essencial com referência ao
ser humano.
Panenteísmo:
literalmente
significa tudo em Deus e Deus em tudo; doutrina que afirma a mútua
presença das criaturas em Deus e de Deus nas criaturas; o panenteísmo
supõe a diferença entre criatura e Criador, contrariamente ao
panteísmo que nega essa diferença e afirma ser tudo igualmente
Deus.
Paradigma:
conjunto
de princípios, idéias e valores compartilhados por uma
comunidade servindo de referência e de orientação; a mudança
de paradigma ocorre quando surgem novas visões da realidade, como
está se verificando hodiernamente.
Pathos:
capacidade
de sentir, sentimento profundo; donde vem simpatia, patético,
paciente.
Simbiose:
associação
entre espécies vivas, beneficiando-se mutuamente; por extensão,
associação entre seres vivos, sistemas sociais e máquinas; é
o que ocorre, concretamente, no funcionamento de nossas sociedades
atuais.
Sinergia:
interação
de todas as energias em presença, em vista da manutenção de
cada ecossistema e dos indivíduos que a ele pertencem.
Sintropia:
coordenação
de energias que têm por efeito diminuir a entropia, quer dizer,
o desgaste de energia e maximalizar sua utilização.
Sistema
complexo: o
conjunto de elementos interconectados entre si forma um sistema;
ele é complexo quando os elementos são numerosos e diversos são
os tipos de relação que vigoram entre eles.
Sustentabilidade:
diz-se
que uma sociedade ou um processo de desenvolvimento possui
sustentabilidade quando por ele se consegue a satisfação das
necessidades, sem comprometer o capital natural e sem lesar o
direito das gerações futuras de verem atendidas também as suas
necessidades e de poderem herdar um planeta sadio com seus
ecossistemas preservados.
Tao:
conceito
central do taoísmo e de difícil apreensão. Pode significar o
caminho do universo, das coisas e das pessoas; a energia
primordial que permite fazer caminho, que tudo pervade e orienta.
Quando interiorizado na pessoa significa transfiguração e união
com o Todo e com tudo.
Taoísmo:
religião
e filosofia originária da China (VI-V aC), baseada no Tao como se
explica sob o verbete Tao. Principais representantes: Lao-tse e
Chuang-tsu.
Termodinâmica:
ramo da física
e da química que estuda o calor e suas transformações. Há duas
leis básicas. A primeira afirma que o calor é energia, sempre
constante no universo. A segunda afirma que o calor (energia)
sempre tem um desgaste não mais recuperável. Chama-se entropia.
Um sistema fechado tende a gastar toda a sua energia e
estabilizar-se na morte térmica. Um sistema aberto conhece a
sintropia, isto é, a capacidade de reduzir a entropia e de criar
ordens menos energívoras.
Upanishad:
palavra sânscrita
para designar os textos sagrados hindus, considerados revelação
divina; datam do fim do período védico (700-300 aC);
interpretando os Veda, insistem na necessidade de libertar-se do
ciclo dos nascimentos pelo conhecimento da ilusão da realidade.
Vácuo
quântico: espaço
repleto de partículas e antipartículas virtuais que aparecem e
desaparecem em frações de milionésimos de segundos. Tudo sai e
tudo volta ao vácuo quântico, pois é a fonte originária de
tudo o que existe e possa existir na ordem de ser que conhecemos.
Zen-budismo:
forma de
budismo que se difundiu no Japão a partir do século VI,
acentuando o valor da meditação (zen)
sem imagens, o amor à natureza e à prática dos trabalhos
manuais que ajudam no autodomínio e no autoconhecimento.
Conclusão
O
cuidado e o futuro dos espoliados e da Terra
A
categoria cuidado se mostrou chave decifradora da essência
humana.O ser humano possui transcendência e por isso viola todos
os tabus, ultrapassa todas as barreiras e se contenta apenas com o
infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não sem razão
recebeu dele o espírito.
O
ser humano possui imanência e por isso se encontra situado
num planeta, enraizado num local e plasmado dentro das
possibilidades do espaço-tempo. Ele tem algo da Tellus/Terra
dentro de si; é feito de húmus, donde se deriva a palavra homem.
O
ser humano se encontra sob a regência do tempo. Este não
significa um puro correr, vazio de conteúdos. O tempo é histórico,
feito pela saga do universo, pela prática humana, especialmente
pela luta dos oprimidos buscando sua vida e libertação. Ele se
constrói passo a passo, por isso sempre concreto, concretíssimo.
Mas simultaneamente o tempo implica um horizonte utópico,
promessa de uma plenitude futura para o ser humano, para os excluídos
e para o cosmos. Somente buscando o impossível, consegue-se
realizar o possível. Em razão dessa dinâmica, o ser humano
possui algo de Saturno, senhor do tempo e da utopia.
Mas
não basta dizer tais determinações. Elas, na verdade, dilaceram
o ser humano. Colocam-no distendido e crucificado entre o céu e a
terra, entre o presente e o futuro, entre a injustiça e a luta
pela liberdade.
Que
alquimia forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno?
Que energia articulará a transcendência e a imanência, a história
e a utopia, a luta pela justiça e a paz para que construam o
humano plenamente?
A
fábula-mito de Higino nos transmite a sabedoria ancestral: é o
cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu
para dentro da terra e coloca a terra para dentro do céu; é o
cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a
imanência, da imanência para a transcendência e da história
para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a paz
no meio dos conflitos de toda ordem. Sem o cuidado que resgata a
dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará
um novo paradigma de convivência.
O
cuidado é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus).
O espírito se humaniza e o corpo se vivifica quando são moldados
pelo cuidado. Caso contrário, o espírito se perde nas abstrações
e o corpo se confunde com a matéria informe. O cuidado faz com
que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo,
aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o
cuidado que permite a revolução da ternura ao priorizar o social
sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria
da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O
cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário,
cordial, e conectado com tudo e com todos no universo.
O
cuidado imprimiu sua marca registrada em cada porção, em
cada dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o
cuidado o humano se faria inumano.
Tudo
o que vive precisa ser alimentado. Assim o cuidado, a essência da
vida humana, precisa também ser continuamente alimentado. As
ressonâncias do cuidado são sua manifestação concreta nas várias
vertebrações da existência e, ao mesmo tempo, seu alimento
indispensável. O cuidado vive do amor primal, da ternura, da carícia,
da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as
coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamagochi, definha e
morre.
Hoje,
na crise do projeto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado
em toda parte. Suas ressonâncias negativas se mostram pela má
qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida da
humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação
exacerbada da violência.
Não
busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no
próprio ser humano, entendido em sua plenitude que inclui o
infinito. Ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua
essência que se encontra no cuidado.
Que
o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera
humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará
a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria
e mátria de todos.
In:
"Saber cuidar" Ética do humano - compaixão pela terra
- Editora Vozes
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