Em busca da
cidadania global
Entrevista
com Boaventura de Souza Santos
Immaculada Lopez,
da redação da Sem Fronteiras
Foto: Cristina
Lima/ Veraz Comunicação
O
sociólogo português fala sobre economia, lutas sociais e o
futuro da democracia
Nascido em
Portugal, o sociólogo Boaventura de Souza Santos tornou-se um
cidadão do mundo. Para além das fronteiras de seu país, ele
aprendeu que a ciência e o saber acadêmico podem ser valiosos
parceiros das lutas sociais. Na verdade, foi aqui no Brasil que
ele despertou para as maravilhas e dramas do povo.
No começo da década de 70, ele veio pela primeira vez ao país
para viver por alguns meses em uma favela do Rio de Janeiro.
Estudou como a comunidade resolvia seus conflitos e se organizava
internamente — era o trabalho de campo de seu doutorado, que
estava desenvolvendo nos Estados Unidos. “Na ocasião, conheci
pessoas maravilhosas, que à beira da sobrevivência demonstravam
uma enorme sabedoria de vida e consciência do mundo. Percebi que
elas me ensinavam mais do que os meus professores americanos.”
Essa experiência despertou em Boaventura uma grande solidariedade
com os moradores da favela, que se estendeu para todos os excluídos.
Com a revolução democrática em Portugal, em 1974, ele voltou
para seu país e se integrou à Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, onde é professor até hoje. Desde então,
tem se dedicado a uma intensa militância intelectual com inúmeros
trabalhos, estudos e reflexões sobre os excluídos do Brasil e do
mundo.
Considera-se um “otimista trágico”, consciente das
dificuldades para superar os problemas, mas confiante nas
alternativas para se construir um mundo novo, com menos injustiça
e desigualdade. Participante das recentes mobilizações mundiais,
como o Fórum Social de Porto Alegre, Boaventura acredita na criação
de uma sociedade civil global, na qual “as vítimas da globalização
dominante se transformem em protagonistas de sua própria libertação”.
É dessas esperanças e desafios que nos fala a seguir.
Nesse momento da nossa história, como o senhor avalia
a participação da sociedade civil na construção de um novo
mundo?
Em primeiro lugar, vale a pena esclarecer o que chamamos de
“sociedade civil”. Na tradição ocidental, esse conceito
ajudou a definir os espaços democráticos da ação dos cidadãos,
mas também os espaços de exclusão daqueles que não eram
considerados cidadãos, como as mulheres, os trabalhadores, os
negros, os indígenas... Portanto, de acordo com esse conceito
original, muita gente ficou de fora da cidadania.
E qual é o conceito hoje?
Nos anos 80, emergiu a proposta “neoliberal” de
desenvolvimento, que nos conduziu ao atual modelo de globalização.
Temos que ter em mente que esse modelo apoiou muito a idéia de
sociedade civil, devolvendo-lhe competências que estariam
indevidamente nas mãos do Estado. Condenou-se o controle estatal
de empresas públicas e do sistema de previdência social, saúde,
educação... Dessa forma, se fortaleceu um conceito de sociedade
civil que tem muito a ver com mercado e privatizações.
Mas também não é nessa sociedade civil que o senhor
acredita?
Certamente não. Quando nós falamos de sociedade civil, estamos
falando de outra coisa. Falamos da união de cidadãos trabalhando
em ações voluntárias, para conversar, discutir, criar soluções...
sem visar o lucro. É essa concepção de sociedade civil, baseada
na solidariedade, voluntariado e reciprocidade, que nos interessa
hoje.
Além do mais, numa sociedade onde o mercado se tornou dominante,
a sociedade civil solidária passou a envolver os oprimidos e
explorados. Portanto, estamos tentando construir uma sociedade
civil global dos excluídos.
A Ku Klux Klan ou o Bill Gates podem ser considerados sociedade
civil, mas não daquela que queremos fortalecer. Eles sempre
tiveram o Estado à sua mercê pela força financeira. Nós não
temos o poder do dinheiro, mas dos princípios, das idéias,
causas e valores. E temos a nosso favor a maioria da população
mundial que é vítima do sistema atual.
E como fortalecer essa nova sociedade civil?
Esperamos que, através de lutas, como o Fórum
Social Mundial, essas pessoas
recuperem a pretensão de ser cidadãs. A nossa luta é justamente
que as vítimas da globalização dominante se transformem em
protagonistas de sua própria libertação e resistência.
Em que situação está o Brasil?
Há países com uma maior tradição de afirmação da sociedade
civil e acho que o Brasil está entre eles. Alguns amigos
brasileiros dizem o contrário — afinal, já passaram por
momentos de lutas mais intensas como a época da transição
democrática, das Diretas Já etc. e hoje estão um pouco
desanimados. Mas acho normal existirem momentos de maior força,
que depois não se mantêm. De qualquer forma, há países com
muito mais dificuldades que o Brasil, não só por questão da
exclusão, mas também pelo desafio de conciliar a igualdade e a
diversidade.
O senhor poderia explicar melhor a questão da
diversidade?
Vivemos em um mundo onde queremos ser simultaneamente iguais e
diferentes. Pensamos uma cidadania planetária que respeite as
diferentes culturas como a muçulmana, hindu, indígena ou
africana. Não queremos um falso universalismo que destrói todas
as diferenças e que impôs a cultura branca, masculina e
ocidental como um padrão universal.
Qual universalismo o senhor defende?
O universalismo que queremos hoje é aquele que tenha como ponto
em comum a dignidade humana. A partir daí, surgem muitas diferenças
que devem ser respeitadas. Temos direito de ser iguais quando a
diferença não inferioriza e direito de ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza.
O princípio da igualdade nos obriga a políticas de redistribuição
de riquezas. Mas, ao mesmo tempo, o princípio da diferença nos
obriga a ter políticas de reconhecimento e aceitação do outro.
É complicado, pois precisa ser um processo paralelo. Não podemos
reconhecer a identidade dos indígenas e, ao mesmo tempo, tirar
suas terras e riquezas naturais. Portanto, a sociedade civil
transnacional ainda é um grande projeto em construção.
É possível constituirmos um grande movimento
transnacional?
Podemos ter um movimento uno, abarcando os grandes embates entre
Norte e Sul, ricos e pobres, mas que ao mesmo tempo mantenha a
flexibilidade e horizontalidade na sua organização. Não pode
haver dogmatismos, intolerâncias ou aproveitamentos políticos
excludentes. Não podemos esquecer que quem participa dessas
mobilizações ainda é uma minoria que representa a maioria da
população mundial, que muitas vezes ainda é analfabeta, está
com fome e não tem forças para se organizar.
Como esse movimento está ganhando corpo?
Os encontros mundiais que estão acontecendo são muito
importantes. Ao contrário do que imaginam os mais distraídos,
eventos como o Fórum Social Mundial, de Porto Alegre ou as
recentes manifestações de Gênova, não são passageiros, feitos
de um momento para o outro. As pessoas e entidades envolvidas se
mantêm em permanente contato, especialmente pela internet. Todos
se articulam. Há um grande trabalho de interação. Há também
discussões nas organizações internacionais, como a ONU. Uma
grande luta do futuro, inclusive, será democratizar essas
instituições.
A nova sociedade civil poderá fazer as mudanças sozinhas
ou terá que se articular com o governo?
Não temos condições de desperdiçar nenhum tipo de articulação.
A luta junto ao Estado é muito importante, mas feita com independência.
Em alguns países, a sociedade civil pode trabalhar em parceria,
em outros, tem que confrontá-lo.
Além do mais, acredito que seria um grande erro minimizar e
negligenciar o Estado, achar que ele deixou de ser importante.
Infelizmente, é exatamente essa armadilha que a globalização
nos quer impor. Nós que estamos atentos sabemos que o Estado não
está hoje mais fraco do que era antes. A única diferença é que
não está usando mais a sua força para proteger os cidadãos,
mas sim as empresas. Nunca, por exemplo, foram concedidos tantos
incentivos fiscais à iniciativa privada.
Quais os principais desafios para conquistarmos uma
cidadania plena para todos os povos?
Uma das grandes áreas em que vamos ter que lutar muito para impor
uma alternativa é a democracia. Após o fim das diferenças ideológicas,
a democracia tornou-se um mercado. E com ele entrou a corrupção.
Ou seja, hoje compram-se e vendem-se votos de acordo com o
dinheiro disponível. Isso aliás acontece nos Estados Unidos há
muito tempo, mas é mais transparente pois está organizado no
sistema dos lobbys. De qualquer forma, acho repugnante que um
deputado mude o seu voto de acordo com o dinheiro oferecido para
financiar a sua campanha ou montar uma fábrica na sua região.
Essa é uma democracia fraca, altamente capitalista e temos que
lutar por uma outra mais participativa.
Em outras palavras, a democracia atual é de baixíssima
intensidade. A rigor, se considerarmos os primeiros pensadores da
democracia, não temos nenhuma sociedade verdadeiramente democrática.
O próprio Rousseau disse: “Uma sociedade só é democrática
quando ninguém é tão pobre que tenha que se vender e alguém é
tão rico que possa comprar alguém”. Algo muito diferente do
que acontece hoje em dia...
Na área econômica, qual é o desafio?
Temos que lutar para que o mercado livre também seja justo.
Precisamos fortalecer os sistemas alternativos de produção, como
as cooperativas, associações, trocas solidárias... São
iniciativas que põem em cheque as contradições do atual modelo,
questionando por exemplo os sistemas de crédito e financiamento.
Por outro lado, temos que ampliar a agenda dos direitos humanos,
ressaltando os direitos econômicos e sociais. Eles têm ficado de
fora da agenda e, na verdade, interessam a maioria dos
latino-americanos, africanos e asiáticos. Pois para que me
interessa a liberdade de comprar o jornal diário se ele custa a
metade do meu salário da semana? Não faz sentido nenhum.
Algo mais deve ser feito na área dos direitos humanos?
Também precisamos ampliar a noção dos direitos humanos no
sentido dos direitos coletivos, como das mulheres e indígenas.
Acredito que a questão indígena é uma das lutas mais emancipatórias
do continente americano, que nos vai convocar a pensar a
autodeterminação de uma nova forma.
Há algum desafio em relação ao meio ambiente?
Uma das grandes pilhagens atuais é a biopirataria, que rouba a
riqueza das florestas, que estão no hemisfério sul e muitas
vezes em territórios indígenas. A biodiversidade é um patrimônio
muito valioso, e sua utilização depende do conhecimento
tradicional das populações indígenas, rurais e ribeirinhas.
Temos que nos perguntar se esse conhecimento está sendo
defendido, valorizado e remunerado. Não faz sentido que ele gere
lucros fabulosos e aqueles que o detém continuem na miséria e no
isolamento.
A concentração da informação é outra grande ameaça?
Sim. Se é verdade que daqui a cinco anos teremos quatro ou cinco
grandes empresas mundiais de comunicação e que todas as outras
serão dependentes dessas, temos que nos perguntar qual é o
impacto disso para o silenciamento das causas justas e da
democracia. Portanto, temos que dar voz urgentemente àqueles que
vão perdê-la ou já não a têm.
Qual desses desafios é o mais difícil?
Todos são difíceis e necessários, não há um mais importante
do que o outro. Estou consciente das dificuldades, mas acredito
que já estamos articulando alternativas e propostas. Considero-me
um otimista trágico.
Estamos conseguindo avançar na mobilização para a
conquista dessas alternativas?
Já passamos o momento preliminar de mobilização, que se
consolidou a partir de 1999 com o movimento de Seattle, seguido
por Bangkok, Praga, Montreal, Washington, Davos, Gênova... Todas
essas mobilizações aconteceram nos países do Norte, contra
reuniões de organizações internacionais e muito dominadas pelas
agendas dessas reuniões. Nesse sentido, o Fórum Social Mundial,
de Porto Alegre, representou um marco: foi o primeiro no Hemisfério
Sul, num país “em desenvolvimento”, organizado não contra
algo, mas a favor de uma alternativa.
O melhor sinal disso tudo foi que, com 4 mil delegados e mais de
10 mil participantes, Porto Alegre teve uma violência quase zero
se comparada com Davos, na Suíça, ou Gênova, na Itália. Foi
uma grande demonstração do que é um debate civil propositivo.
Muitas propostas foram apresentadas e serão consolidadas nos próximos
fóruns. Acredito que estejamos na fase inicial de um grande
processo.
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