Por uma Concepção
Multicultural
de Direitos Humanos
Boaventura de Sousa Santos
Introdução: as tensões da
modernidade
Nos últimos tempos tenho observado
com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se
transformaram na linguagem da política progressista. De facto,
durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos
humanos foram parte integrante da política da guerra fria, e como
tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação
das violações dos direitos humanos, complacência para com
ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em
nome dos objectivos do desenvolvimento - tudo isto tornou os
direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório. Quer
nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as
forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do
socialismo para formular uma política emancipatória. E no
entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes
projectos de emancipação, essas mesmas forças progressistas
recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da
emancipação. É como se os direitos humanos fossem invocados
para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderão realmente
os direitos humanos preencher tal vazio? A minha resposta é um
sim muito condicional. O meu objectivo neste trabalho é
identificar as condições em que os direitos humanos podem ser
colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória.
Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tensões dialécticas
que informam a modernidade ocidental. A crise que hoje afecta
estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os
problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em
minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século
é um factor-chave para compreender tal crise.
Identifico três tensões dialécticas.
A primeira ocorre entre regulação social e emancipação social.
Tenho vindo a afirmar que o paradigma da modernidade se baseia
numa tensão dialéctica entre regulação social e emancipação
social, a qual está presente, mesmo que de modo diluído, na
divisa positivista «ordem e progresso». Neste final de século,
esta tensão deixou de ser uma tensão criativa. A emancipação
deixou de ser o outro da regulação para se tornar no duplo da
regulação. Enquanto até finais dos anos sessenta as crises de
regulação social suscitavam o fortalecimento das políticas
emancipatórias, hoje a crise da regulação social - simbolizada
pela crise do Estado regulador e do Estado-Providência - e a
crise da emancipação social - simbolizada pela crise da revolução
social e do socialismo enquanto paradigma da transformação
social radical - são simultâneas e alimentam-se uma da outra. A
política dos direitos humanos, que foi simultaneamente uma política
reguladora e uma política emancipadora, está armadilhada nesta
dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a
ultrapassar.
A segunda tensão dialéctica
ocorre entre o Estado e a sociedade civil. O Estado moderno, não
obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é
potencialmente um Estado maximalista, pois a sociedade civil,
enquanto o outro do Estado, auto-reproduz-se através de leis e
regulações que dimanam do Estado e para as quais não parecem
existir limites, desde que as regras democráticas da produção
de leis sejam respeitadas. Os direitos humanos estão no cerne
desta tensão: enquanto a primeira geração de direitos humanos
(os direitos cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da
sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal
violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira gerações
(direitos económicos e sociais e direitos culturais, da qualidade
de vida, etc) pressupõem que o Estado é o principal garante dos
direitos humanos.
Por fim, a terceira tensão ocorre
entre o Estado-nação e o que designamos por globalização. O
modelo político da modernidade ocidental é um modelo de
Estados-nação soberanos, coexistindo num sistema internacional
de Estados igualmente soberanos - o sistema interestatal. A
unidade e a escala privilegiadas, quer da regulação social quer
da emancipação social, é o Estado-nação. O sistema
interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos
anárquica, regida por uma legalidade muito ténue, e mesmo o
internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração
do que uma realidade. Hoje, a erosão selectiva do Estado-nação,
imputável à intensificação da globalização, coloca a questão
de saber se, quer a regulação social quer a emancipação
social, deverão ser deslocadas para o nível global. É neste
sentido que já se começou a falar em sociedade civil global,
governo global e equidade global. Na primeira linha deste processo
está o reconhecimento mundial da política dos direitos humanos.
A tensão, porém, repousa, por um lado, no facto de, tanto as
violações dos direitos humanos, como as lutas em defesa deles
continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro
lado, no facto de, em aspectos cruciais, as atitudes perante os
direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos.
A política dos direitos humanos é basicamente uma política
cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos
humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do
religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religião
é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como
poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente
cultural e global?
Nesta ordem de ideias, o meu
objectivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o
potencial emancipatório da política dos direitos humanos no
duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação
cultural e da política de identidades, por outro. A minha intenção
é justificar uma política progressista de direitos humanos com
âmbito global e com legitimidade local.
1. Acerca das globalizações
Começarei por especificar o que
entendo por globalização. A globalização é muito difícil de
definir. Muitas definições centram-se na economia, ou seja, na
nova economia mundial que emergiu nas últimas duas décadas como
consequência da intensificação dramática da transnacionalização
da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros - um
processo através do qual as empresas multinacionais ascenderam a
uma preeminência sem precedentes como actores internacionais.
Para os meus objectivos analíticos privilegio, no entanto, uma
definição de globalização mais sensível às dimensões
sociais, políticas e culturais. Aquilo que habitualmente
designamos por globalização são, de facto, conjuntos
diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações
sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização.
Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única
chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em
rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer
conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não
substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações
sociais, as globalizações envolvem conflitos e, por isso,
vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização
é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade,
a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam
por desaparecer totalmente de cena.
Proponho, pois, a seguinte definição:
a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou
entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição
social ou entidade rival.
As implicações mais importantes
desta definição são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as
condições do sistema-mundo ocidental não existe globalização
genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a
globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras
palavras, não existe condição global para a qual não
consigamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica.
Na realidade, não consigo pensar uma entidade sem tal
enraizamento local; o único candidato possível, mas improvável,
seria a arquitectura interior dos aeroportos. A segunda implicação
é que a globalização pressupõe a localização. De facto,
vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de
globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente
correcto se a presente situação e os nossos tópicos de
investigação se definisse em termos de localização, em vez de
globalização. O motivo porque é preferido o último termo é
basicamente porque o discurso científico hegemónico tende a
privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores.
Existem muitos exemplos de como a
globalização pressupõe a localização. A língua inglesa
enquanto língua franca é um desses exemplos. A sua
propagação enquanto língua global implicou a localização de
outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua
francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado
processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais
não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes
de relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou
sequencialmente. A globalização do sistema de estrelato de
Hollywood contribuiu para a etnicização do sistema de estrelato
do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos
dos anos 60 - de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello
Mastroiani a Sofia Loren - que simbolizavam então o modo
universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus
filmes, provincianamente europeus, se não mesmo curiosamente étnicos.
A diferença do olhar reside em que de então para cá o modo de
representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um
exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se
globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau
português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada
vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade
portuguesa ou brasileira.
Uma das transformações mais
frequentemente associadas à globalização é a compressão
tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos
se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que aparentemente
monolítico, este processo combina situações e condições
altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser
analisado independentemente das relações de poder que respondem
pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um
lado, existe a classe capitalista transnacional, aquela que
realmente controla a compressão tempo-espaço e que é capaz de a
transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e
grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os
refugiados, que nas duas últimas décadas têm efectuado bastante
movimentação transfronteiriça, mas que não controlam, de modo
algum, a compressão tempo-espaço. Entre os executivos das
empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas
representam um terceiro modo de produção da compressão
tempo-espaço.
Existem ainda os que contribuem
fortemente para a globalização mas que, não obstante,
permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses
da Bolívia, do Perú e da Colômbia, ao cultivarem coca,
contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas
eles próprios permanecem «localizados» nas suas aldeias e
montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das
favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana
marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo
o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada.
Finalmente, e ainda noutra
perspectiva, a competência global requer, por vezes, o acentuar
da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm
de vincar o seu carácter exótico, vernáculo e tradicional para
poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de
turismo.
Para dar conta destas assimetrias,
a globalização, tal como sugeri, deve ser sempre considerada no
plural. Por outro lado, há que considerar diferentes modos de
produção da globalização. Distingo quatro modos de produção
da globalização, os quais, em meu entender, dão origem a quatro
formas de globalização.
A primeira forma de globalização
é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual
determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a
actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua
inglesa em língua franca, a globalização do fast food
americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das
leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.
À segunda forma de globalização
chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico
de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais,
as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de
modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais
globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou
zonas francas; desflorestamento e destruição maciça dos
recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico
de tesouros históricos, lugares ou cerimónias religiosos,
artesanato e vida selvagem; dumping ecológico («compra»
pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos
países capitalistas centrais para gerar divisas externas);
conversão da agricultura de subsistência em agricultura para
exportação como parte do «ajustamento estrutural»; etnicização
do local de trabalho (desvalorização do salário pelo facto de
os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado «inferior»
ou «menos exigente»).
A divisão internacional da produção
da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais
especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países
periféricos cabe tão-só a escolha de globalismos localizados. O
sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos
globalizados.
Todavia, a intensificação de
interacções globais pressupõe outros dois processos, os quais não
podem ser correctamente caracterizados, nem como localismos
globalizados, nem como globalismos localizados. Designo o primeiro
por cosmopolitismo. As formas predominantes de dominação
não excluem aos Estados-nação, regiões, classes ou grupos
sociais subordinados a oportunidade de se organizarem
transnacionalmente na defesa de interesses percebidos como comuns,
e de usarem em seu benefício as possibilidades de interacção
transnacional criadas pelo sistema mundial. As actividades
cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos e organizações
Sul-Sul, organizações mundiais de trabalhadores (a Federação
Mundial de Sindicatos e a Confederação Internacional dos
Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes
internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações
transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos
feministas, organizações não governamentais (ONG's)
transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos
e associações ecológicas e de desenvolvimento alternativo,
movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do
sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não
imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais
ou subalternas, etc, etc.
O outro processo que não pode ser
adequadamente descrito, seja como localismo globalizado, seja como
globalismo localizado, é a emergência de temas que, pela sua
natureza, são tão globais como o próprio planeta e aos quais eu
chamaria, recorrendo ao direito internacional, o património
comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem
sentido enquanto reportados ao globo na sua totalidade: a
sustentabilidade da vida humana na Terra, por exemplo, ou temas
ambientais como a protecção da camada de ozono, a preservação
da Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos
marinhos. Incluo ainda nesta categoria a exploração do espaço
exterior, da lua e de outros planetas, uma vez que as interacções
físicas e simbólicas destes com a terra são também património
comum da humanidade. Todos estes temas se referem a recursos que,
pela sua natureza, têm de ser geridos por fideicomissos da
comunidade internacional em nome das gerações presentes e
futuras.
A preocupação com o
cosmopolitismo e com o património comum da humanidade conheceu
grande desenvolvimento nas últimas décadas, mas também fez
surgir poderosas resistências. O património comum da humanidade,
em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países
hegemónicos, sobretudo dos Estados Unidos. Os conflitos, as
resistências, as lutas e as coligações em torno do
cosmopolitismo e do património comum da humanidade demonstram que
aquilo a que chamamos globalização é na verdade um conjunto de
arenas de lutas transfronteiriças.
Neste contexto é útil distinguir
entre globalização de-cima-para-baixo e globalização
de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemónica e
globalização contra-hegemónica. O que eu denomino de localismo
globalizado e globalismo localizado são globalizações
de-cima-para-baixo; cosmopolitismo e património comum da
humanidade são globalizações de-baixo-para-cima.
2. Os Direitos Humanos enquanto Guião
Emancipatório
A complexidade dos direitos humanos
reside em que eles podem ser concebidos, quer como forma de
localismo globalizado, quer como forma de cosmopolitismo ou, por
outras palavras, quer como globalização hegemónica, quer como
globalização contra-hegemónica. Proponho-me de seguida
identificar as condições culturais através das quais os
direitos humanos podem ser concebidos como cosmopolitismo ou
globalização contra-hegemónica. A minha tese é que, enquanto
forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos
humanos tenderão a operar como localismo globalizado - uma forma
de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento
do «choque de civilizações» tal como o concebe Samuel
Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto
do mundo ("the West against the rest"). A sua abrangência
global será obtida à custa da sua legitimidade local. Para
poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização
de-baixo-para-cima ou contra-hegemónica, os direitos humanos têm
de ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo,
tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação
equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global
e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma
política contra-hegemónica de direitos humanos no nosso tempo.
É sabido que os direitos humanos não
são universais na sua aplicação. Actualmente são
consensualmente identificados quatro regimes internacionais de
aplicação de direitos humanos: o europeu, o inter-americano, o
africano e o asiático. Mas serão os direitos humanos universais
enquanto artefacto cultural, um tipo de invariante cultural, parte
significativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a
considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas
apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais.
Por isso mesmo, a questão da universalidade dos direitos humanos
trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona.
Por outras palavras, a questão da universalidade é uma questão
particular, uma questão específica da cultura ocidental.
O conceito de direitos humanos
assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles
tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana
universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana
é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o
indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de
ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo
exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica,
como soma de indivíduos livres (Panikkar 1984: 30). Uma vez que
todos estes pressupostos são claramente ocidentais e facilmente
distinguíveis de outras concepções de dignidade humana em
outras culturas, teremos de perguntar por que motivo a questão da
universalidade dos direitos humanos se tornou tão acesamente
debatida. Ou por que razão a universalidade sociológica desta
questão se sobrepôs à sua universalidade filosófica.
Se observarmos a história dos
direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda
Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de
direitos humanos estiveram em geral ao serviço dos interesses
económicos e geo-políticos dos Estados capitalistas hegemónicos.
Um discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu
atrocidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de acordo
com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre
a manipulação da temática dos direitos humanos nos Estados
Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk
identifica uma «política de invisibilidade» e uma «política
de supervisibilidade». Como exemplos da política de
invisibilidade menciona Falk a ocultação total, pelos media,
das notícias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor
Leste (que ceifou mais que 300.000 vidas) e a situação dos cerca
de cem milhões de «intocáveis» na India. Como exemplos da política
de supervisibilidade, Falk menciona a exuberância com que os
atropelos pós-revolucionários dos direitos humanos no Irão e no
Vietname foram relatados nos Estados Unidos. A verdade é que o
mesmo pode dizer-se dos países da União Europeia, sendo o
exemplo mais gritante justamente o silêncio mantido sobre o genocídio
do povo Maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim
facilitando o contínuo e próspero comércio com a Indonésia.
A marca ocidental, ou melhor,
ocidental liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode
ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração
Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos
povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos
individuais, com a única excepção do direito colectivo à
autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos
subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos
direitos cívicos e políticos sobre os direitos económicos,
sociais e culturais e no reconhecimento do direito de propriedade
como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito económico.
Mas há também um outro lado desta
questão. Em todo o mundo milhões de pessoas e milhares de ONG's
têm vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo
grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos,
em muitos casos vitimizados por Estados capitalistas autoritários.
Os objectivos políticos de tais lutas são frequentemente
explicita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente
foram-se desenvolvendo discursos e práticas contra-hegemónicos
de direitos humanos, foram sendo propostas concepções não
ocidentais de direitos humanos, foram-se organizando diálogos
interculturais de direitos humanos. Neste domínio, a tarefa
central da política emancipatória do nosso tempo consiste em
transformar a conceptualização e prática dos direitos humanos
de um localismo globalizado num projecto cosmopolita.
Passo a enumerar as principais
premissas de uma tal transformação. A primeira premissa
é a superação do debate sobre universalismo e relativismo
cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos
conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção
emancipatória de direitos humanos. Todas as culturas são
relativas, mas o relativismo cultural enquanto atitude filosófica
é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupações e
valores universais, mas o universalismo cultural, enquanto atitude
filosófica, é incorrecto. Contra o universalismo, há que propor
diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra
o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para
distinguir política progressista de política conservadora,
capacitação de desarme, emancipação de regulação. Na medida
em que o debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir
para um diálogo competitivo entre culturas diferentes sobre os
princípios de dignidade humana, é imperioso que tal competição
induza as coligações transnacionais a competir por valores ou
exigências máximos, e não por valores ou exigências mínimos
(quais são os critérios verdadeiramente mínimos? os direitos
humanos fundamentais? os menores denominadores comuns?). A advertência
frequentemente ouvida hoje contra os inconvenientes de
sobrecarregar a política de direitos humanos com novos direitos
ou com concepções mais exigentes de direitos humanos (Donnelly,
1989: 109-24) é uma manifestação tardia da redução do
potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação
de baixa intensidade possibillitada ou tolerada pelo capitalismo
mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado
de democracia de baixa intensidade.
A segunda premissa da
transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as
culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas
elas a concebem em termos de direitos humanos. Torna-se, por isso,
importante identificar preocupações isomórficas entre
diferentes culturas. Designações, conceitos e Weltanschaungen
diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações
semelhantes ou mutuamente inteligíveis. Na secção seguinte
darei alguns exemplos.
A terceira premissa é que
todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas
concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria
existência de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura
fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só
cultura. A ideia de completude está na origem de um excesso de
sentido de que parecem enfermar todas as culturas, e é por isso
que a incompletude é mais facilmente perceptível do exterior, a
partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de
incompletude cultural até ao seu máximo possível é uma das
tarefas mais cruciais para a construção de uma concepção
multicultural de direitos humanos.
A quarta premissa é que
todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana,
algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de
reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a
outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade
ocidental desdobrou-se em duas concepções e práticas de
direitos humanos profundamente divergentes - a liberal e a
marxista - uma dando prioridade aos direitos cívicos e políticos,
a outra dando prioridade aos direitos sociais e económicos. Há
que definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais
amplo.
Por último, a quinta premissa
é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os
grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença
hierárquica. Um - o princípio da igualdade - opera através de
hierarquias entre unidades homogéneas (a hierarquia de estratos
socio-económicos; a hierarquia cidadão/estrangeiro). O outro - o
princípio da diferença - opera através da hierarquia entre
identidades e diferenças consideradas únicas (a hierarquia entre
etnias ou raças, entre sexos, entre religiões, entre orientações
sexuais). Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente
e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem
todas as diferenças são desiguais.
Estas são as premissas de um diálogo
intercultural sobre a dignidade humana que pode levar,
eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos humanos, uma
concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se
organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente
inteligíveis, e que se constitui em redes de referências
normativas capacitantes.
2.1. A hermenêutica diatópica
No caso de um diálogo
intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes mas
também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de
sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis. Tais
universos de sentido consistem em constelações de topoi fortes.
Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes
de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação
que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível
a produção e a troca de argumentos. Topoi fortes
tornam-se altamente vulneráveis e problemáticos quando «usados»
numa cultura diferente. O melhor que lhes pode acontecer é serem
despromovidos de premissas de argumentação a meros argumentos.
Compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra
cultura pode revelar-se muito difícil, se não mesmo impossível.
Partindo do pressuposto de que tal não é impossível, proponho a
seguir uma hermenêutica diatópica, um procedimento hermenêutico
que julgo adequado para nos guiar nas dificuldades a enfrentar,
ainda que não necessariamente para as superar. Na área dos
direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio
social para as possibilidades e exigências emancipatórias que
eles contêm só será concretizável na medida em que tais
possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas
pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste
sentido, não podem ser obtidas através da canibalização
cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica
diatópica.
A hermenêutica diatópica
baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por
mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria
cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do
interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade
induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica
diatópica não é, porém, atingir a completude - um objectivo
inatingível - mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência
de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola,
por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto
reside o seu carácter dia-tópico.
Um exemplo de hermenêutica diatópica
é a que pode ter lugar entre o topos dos direitos humanos
na cultura ocidental, o topos do dharma na cultura
hindu e o topos da umma na cultura islâmica.
Segundo Panikkar, dharma «é o que sustenta, dá coesão
e, portanto, força, a uma dada coisa, à realidade e, em última
instância, aos três mundos (triloka). A justiça dá coesão
às relações humanas; a moralidade mantém a pessoa em harmonia
consigo mesma; o direito é o princípio do compromisso nas relações
humanas; a religião é o que mantém vivo o universo; o destino
é o que nos liga ao futuro; a verdade é a coesão interna das
coisas... Um mundo onde a noção de Dharma é central e
quase omnipresente não está preocupado em encontrar o 'direito'
de um indivíduo contra outro ou do indivíduo perante a
sociedade, mas antes em avaliar o carácter dharmico (correcto,
verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ou
acção no complexo teantropocósmico total da realidade»
(1984:39).
Vistos a partir do topos do dharma,
os direitos humanos são incompletos na medida em que não
estabelecem a ligação entre a parte (o indivíduo) e o todo (o
cosmos), ou dito de forma mais radical, na medida em que se
centram no que é meramente derivado, os direitos, em vez de se
centrarem no imperativo primordial, o dever dos indivíduos de
encontrarem o seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo o
cosmos. Vista a partir do dharma, e na verdade também a
partir da umma, como veremos a seguir, a concepção
ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria
muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas
garante direitos àqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica
por que razão, na concepção ocidental dos direitos humanos, a
natureza não possui direitos: porque não lhe podem ser impostos
deveres. Pelo mesmo motivo é impossível garantir direitos às
gerações futuras: não possuem direitos porque não possuem
deveres.
Por outro lado e inversamente,
visto a partir do topos dos direitos humanos, o dharma
também é incompleto, dado o seu enviezamento fortemente não-dialético
a favor da harmonia, ocultando assim injustiças e negligenciando
totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais
rica. Além disso, o dharma não está preocupado com os
princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia,
e negligencia o facto de, sem direitos primordiais, o indivíduo
ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por
aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a
esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual
irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas sim os indivíduos.
Num outro nível conceptual pode
ser ensaiada a mesma hermenêutica diatópica entre o topos
dos direitos humanos e o topos da umma na cultura
islâmica. Os passos do Corão em que surge a palavra umma
são tão variados que o seu significado não pode ser definido
com rigor. O seguinte, porém, parece ser certo: o conceito de umma
refere-se sempre a entidades étnicas, linguísticas ou religiosas
de pessoas que são o objecto do plano divino de salvação. À
medida que a actividade profética de Maomé foi progredindo, os
fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais
evidentes e, consequentemente, a umma dos árabes foi
transformada na umma dos muçulmanos. Vista a partir do topos
da umma, a incompletude dos direitos humanos individuais
reside no facto de, com base neles, ser impossível fundar os laços
e as solidariedades colectivas sem as quais nenhuma sociedade pode
sobreviver, e muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo é a
dificuldade da concepção ocidental de direitos humanos em
aceitar direitos colectivos de grupos sociais ou povos, sejam eles
as minorias étnicas, as mulheres, as crianças ou os povos indígenas.
Este é, de facto, um exemplo específico de uma dificuldade muito
mais ampla: a dificuldade em definir a comunidade enquanto arena
de solidariedades concretas, campo político dominado por uma
obrigação política horizontal. Esta ideia de comunidade,
central para Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, que
reduziu toda a complexidade societal à dicotomia Estado/sociedade
civil.
Mas, por outro lado, a partir do topos
dos direitos humanos individuais, a umma sublinha demasiado
os deveres em detrimento dos direitos e por isso tende a perdoar
desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a
desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulmanos.
A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental
da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado
rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim
vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação
e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas
hindu e islâmica deve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que
o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a
qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não
hierarquicamente organizada.
O reconhecimento de incompletudes mútuas
é condição sine qua non de um diálogo intercultural. A
hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação
local como na inteligibilidade translocal das incompletudes. Um
bom exemplo de hermenêutica diatópica entre a cultura islâmica
e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos é dado por
Abdullahi An-na'im (1990, 1992). Existe um longo debate acerca das
relações entre islamismo e direitos humanos e da possibilidade
de uma noção islâmica de direitos humanos. Este debate abrange
um largo espectro de posições e o seu impacto ultrapassa o mundo
islâmico. Embora correndo o risco de excessiva simplificação,
duas posições extremas podem ser identificadas neste debate.
Uma, absolutista ou fundamentalista, é sustentada por aqueles
para quem o sistema jurídico religioso do Islão, a Shari'a, deve
ser integralmente aplicado como o direito do Estado islâmico.
Segundo esta posição, há inconsistências irreconciliáveis
entre a Shari'a e a concepção ocidental dos direitos humanos, e
sempre que tal ocorra a Shari'a deve prevalecer. Por exemplo,
relativamente ao estatuto dos não- muçulmanos, a Shari'a
determina a criação de um Estado para muçulmanos que apenas
reconhece estes como cidadãos, negando aos não-muçulmanos
quaisquer direitos políticos. Ainda segundo a Shari'a, a paz
entre muçulmanos e não-muçulmanos é sempre problemática e os
confrontos podem ser inevitáveis. Relativamente às mulheres, o
problema da igualdade nem sequer se põe; a Shari'a impõe a
segregação das mulheres e, em algumas interpretações mais
estritas, exclui-as de toda a vida pública.
No outro extremo, encontram-se os
secularistas ou modernistas, que entendem deverem os muçulmanos
organizar-se em Estados seculares. O Islão é um movimento
religioso e espiritual e não político e, como tal, as sociedades
muçulmanas modernas são livres de organizar o seu governo do
modo que julgarem conveniente e apropriado às circunstâncias. A
aceitação de direitos humanos internacionais é uma questão de
decisão política independente de considerações religiosas.
Apenas para dar um exemplo, entre muitos, desta posição: uma lei
tunisina de 1956 proibiu a poligamia com o argumento de ter
deixado de ser aceitável, tanto mais que a exigência corânica
de justiça no tratamento das co-esposas era impossível de
realizar na prática por qualquer homem, excepto o Profeta.
An-na'im critica estas duas posições
extremas. A via per mezzo que propõe pretende encontrar
fundamentos interculturais para os direitos humanos, identificando
as áreas de conflito entre a Shari'a e «os critérios de
direitos humanos» e estabelecendo uma reconciliação ou relação
positiva entre os dois sistemas. O problema da Shari'a histórica
é que exclui mulheres e não-muçulmanos do campo de
reciprocidade. Para o resolver, é necessária uma reforma ou
reconstrução da Shari'a. O método proposto para tal «Reforma
islâmica» assenta numa revisão evolucionista das fontes islâmicas,
que reconsidera o contexto histórico específico em que a Shari'a
foi criada pelos juristas dos séculos VIII e IX. Nesse contexto
histórico específico, uma construção restritiva do Outro e da
reciprocidade foi provavelmente justificada. Hoje, porém, o
contexto é totalmente diferente e é possível reencontrar nas
fontes originárias do Islão plena justificação para uma visão
mais ampla de reciprocidade.
Seguindo os ensinamentos de Maomé,
An-na'im demonstra que uma análise atenta do conteúdo do Corão
e do Suna revela dois níveis ou fases da mensagem do Islão: uma,
do período da Meca Antiga, e outra, do período subsequente, de
Medina. A mensagem primitiva de Meca é a mensagem eterna e
fundamental do Islão, que sublinha a dignidade inerente a todos
os seres humanos, independentemente de sexo, religião ou raça.
Esta mensagem, considerada demasiado avançada para as condições
históricas do século VII (a fase de Medina), foi suspensa e a
sua aplicação adiada até que no futuro as circunstâncias a
tornassem possível. O tempo e o contexto, diz An-na'im, estão
agora maduros para tal.
Não me cabe avaliar a validade
específica desta proposta para a cultura islâmica. Esta postura
é precisamente o que distingue a hermenêutica diatópica do
orientalismo. O que quero realçar na abordagem de An-na'im é a
tentativa de transformar a concepção de direitos humanos
ocidental numa concepção intercultural que reivindica para eles
a legitimidade islâmica, em vez de renunciar a ela. Em abstracto
e visto de fora, é difícil ajuizar qual das abordagens, a
religiosa ou a secularista, terá mais probabilidades de
prevalecer num diálogo intercultural sobre direitos humanos a
partir do Islão. Porém, tendo em mente que os direitos humanos
ocidentais são a expressão de um profundo, se bem que
incompleto, processo de secularização, sem paralelo na cultura
islâmica, estaria inclinado a sugerir que, no contexto muçulmano,
a energia mobilizadora necessária para um projecto cosmopolita de
direitos humanos poderá gerar-se mais facilmente num quadro
religioso esclarecido. Se este for o caso, a abordagem de An-na'im
é muito promissora.
A hermenêutica diatópica não é
tarefa para uma só pessoa, escrevendo dentro de uma única
cultura. Não é, portanto, surpreendente que a abordagem de An-na'im,
um genuíno exercício de hermenêutica diatópica, seja por ele
conduzida com consistência desigual. Na minha perspectiva, An-na'im
aceita demasiado fácil e acriticamente a ideia de direitos
humanos universais. Apesar de este autor subscrever uma abordagem
evolucionista e estar realmente atento ao contexto histórico da
tradição islâmica, a sua interpretação resulta
surpreendentemente ahistórica e ingenuamente universalista quanto
à Declaração Universal dos Direitos Humanos. A hermenêutica
diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento diferente,
mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A
hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento
colectiva, interactiva, intersubjectiva e reticular.
A hermenêutica diatópica
conduzida por An-na'im a partir da perspectiva da cultura islâmica
e as lutas pelos direitos humanos organizadas pelos movimentos
feministas islâmicos, seguindo as ideias da «Reforma islâmica»
por ele propostas, têm de ser complementadas por uma hermenêutica
diatópica conduzida a partir da perspectiva de outras culturas e,
nomeadamente, da perspectiva da cultura ocidental dos direitos
humanos. Este é provavelmente o único meio de integrar na
cultura ocidental a noção de direitos colectivos, os direitos da
natureza e das futuras gerações, bem como a noção de deveres e
responsabilidades para com entidades colectivas, sejam elas a
comunidade, o mundo ou mesmo o cosmos.
Mais genericamente, a hermenêutica
diatópica oferece um amplo campo de possibilidades para os
debates que estão actualmente a ocorrer nas diferentes regiões
culturais do sistema mundial sobre os temas gerais do
universalismo, relativismo, multiculturalismo, pós-colonialismo,
quadros culturais da transformação social, tradicionalismo e
renovação cultural. Porém, uma concepção idealista de diálogo
intercultural poderá esquecer facilmente que tal diálogo só é
possível através da simultaneidade temporária de duas ou mais
contemporaneidades diferentes. Os parceiros no diálogo são
apenas superficialmente contemporâneos; na verdade, cada um deles
sente-se apenas contemporâneo da tradição histórica da sua
cultura. É assim sobretudo quando as diferentes culturas
envolvidas no diálogo partilham um passado de sucessivas trocas
desiguais. Que possibilidades existem para um diálogo
intercultural se uma das culturas em presença foi moldada por
massivas e prolongadas violações dos direitos humanos
perpetradas em nome da outra cultura? Quando as culturas partilham
tal passado, o presente que partilham no momento de iniciarem o diálogo
é, no melhor dos casos, um quid pro quo e, no pior dos
casos, uma fraude. O dilema cultural que se levanta é o seguinte:
dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis
algumas das aspirações à dignidade humana por parte da cultura
subordinada, será agora possível pronunciá-las no diálogo
intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a sua
impronunciabilidade?
Imperialismo cultural e epistemicídio
são parte da trajectória histórica da modernidade ocidental. Após
séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas
as culturas de forma igual? Será necessário tornar impronunciáveis
algumas aspirações da cultura ocidental para dar espaço à
pronunciabilidade de outras aspirações de outras culturas?
Paradoxalmente - e contrariando o discurso hegemónico - é
precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental
tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída
aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na
translocalidade do cosmopolitismo, num diálogo intercultural.
O carácter emancipatório da
hermenêutica diatópica não está garantido a priori e,
de facto, o multiculturalismo pode ser o novo rótulo de uma política
reaccionária. Basta mencionar o multiculturalismo do primeiro
ministro da Malásia ou da gerontocracia chinesa quando se referem
à "concepção asiática de direitos humanos" para
justificar as conhecidas e as desconhecidas "Tianamens".
Para prevenir esta perversão, dois imperativos interculturais
devem ser aceites por todos os grupos empenhados na hermenêutica
diatópica. O primeiro pode formular-se assim: das diferentes
versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que
representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa
cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro.
Como vimos, das duas diferentes interpretações do Corão, An-na'im
escolhe a que possui o círculo mais amplo de reciprocidade, a que
abrange igualmente muçulmanos e não-muçulmanos, homens e
mulheres. O mesmo procedimento deve ser adoptado na cultura
ocidental. Das duas versões de direitos humanos existentes na
nossa cultura - a liberal e a marxista - a marxista deve ser
adoptada, pois amplia para os domínios económico e social a
igualdade que a versão liberal apenas considera legítima no domínio
político.
O segundo imperativo intercultural
pode ser enunciado do seguinte modo: uma vez que todas as culturas
tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios
concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com concepções
concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos
sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os
inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza. Este é, consabidamente, um imperativo muito
difícil de atingir e de manter. Os Estados constitucionais
multinacionais como a Bélgica aproximam-se dele em alguns
aspectos. Existe neste momento grande esperança que a África do
Sul venha a ser outro exemplo.
3. Conclusão
Na forma como são agora
predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie
de esperanto que dificilmente se poderá tornar na linguagem
quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões do globo.
Compete à hermenêutica diatópica proposta neste artigo
transformá-los numa política cosmopolita que ligue em rede línguas
nativas de emancipação, tornando-as mutuamente inteligíveis e
traduzíveis. Este projecto pode parecer demasiado utópico. Mas,
como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma ideia tem uma
estranha semelhança com a utopia. Seja como for, o importante é
não reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo,
podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais
injusto ou opressivo que seja.
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