Por uma nova cidadania
BELISÁRIO DOS SANTOS
JÚNIOR**
A Constituição brasileira de 1988
aponta para o conceito de cidadania como conjunto de direito, mas
igualmente de deveres. Interpretando a Constituição
criativamente, teríamos cidadania, como coragem de participar dos
esforços em criar a sociedade livre, justa e solidária de que
trata a Constituição.
Três idéias são básicas para a construção desse novo
conceito de cidadania: uma nova visão dos direitos humanos, o
estabelecimento de uma ética da solidariedade e a necessidade de
parcerias criativas entre Estado e sociedade no exercício do
dever de convivência.
Uma nova visão dos direitos humanos
A partir de seu caráter histórico,
de sua dimensão internacional, incorporam-se os conceitos de
universalidade e indivisibilidade enunciados definitivamente na
Conferência Mundial de Viena, em 1993. Os direitos humanos são,
portanto, indivisíveis. Isto significa que eles devem ser
cumpridos globalmente. Os direitos humanos fundamentais são
universais. Nem só dos brancos, nem só dos ricos. Isto pode
implicar em afetar profundamente o poder dos ricos e
privilegiados, sempre que tal riqueza ou privilégio seja o
impedimento a uma vida decente de outras pessoas. Não há uma
relação estabelecida e final de tais direitos, já que seu caráter
é progressivo, correspondendo a cada momento ao estágio cultural
da humanidade, como se vê nas sucessivas "gerações".
O direito a uma vida livre e digna
de uns deve ser efetivado sem impedir tal direito a outros. Os
direitos humanos independem de registro escrito no acervo
legislativo de uma nação. Seu reconhecimento pode ocorrer mesmo
à revelia das leis e da Constituição. Têm, outrossim, caráter
internacional. Em outras palavras, a preocupação com a vigência
dos direitos humanos é universal e o seu descumprimento em alguma
parte atinge mesmo aqueles que ali não vivem e não estão
submetidos à mesma autoridade.
Reconhecimento da necessidade de estabelecimento de uma ética
da solidariedade
O período da ditadura viveu a
clara tentativa do Estado de empurrar a cidadania para a lógica
do individualismo e do isolamento dos indivíduos em categorias
estanques: "estudante estuda", "trabalhador
trabalha", "professor ensina", etc. A condição de
patriota era atribuída oficialmente a uns poucos, quando não
apenas a uma categoria de servidores: os militares. Os outros eram
todos suspeitos de práticas chamadas subversivas, quando não
declarados como inimigos internos, dentro da tática de reconhecer
um estado de guerra interno, na aplicação da doutrina da segurança
nacional.
Mas, a oposição foi toda construída
em moldes multissetoriais, suprapartidários, intercorporativos. O
terceiro setor, esse conjunto de forças morais não detentor de
poder oficial, construiu palanques extremamente amplos, forjando
laços de solidariedade que determinaram sua atuação até o
restabelecimento do estado de direito. O revigoramento das
instituições democráticas se fez, de início, sob essa ótica.
No entanto, após a volta ao convívio com os direitos civis e políticos
mais elementares, verificou-se que essa aparente recuperação foi
acompanhada por duas circunstâncias que a limitavam. De um lado,
a conservação de vícios do sistema representativo, originários
da ditadura, como o superdimensionamento da representação de
regiões de menor população, de mais precária cultura política,
mais dependentes do governo federal, ou a elevação de territórios
a estados e a criação artificial de novas unidades federativas.
De outro lado, o novo protagonismo desempenhado pelo poder econômico,
influindo decisivamente no processo eleitoral, manipulando a média
e prestigiando a crescente corporativização do Parlamento.
Tudo isto aponta para a necessidade
de estabelecimento de uma nova cultura política, assentada em
pricípios éticos. Os novos padrões éticos se retiram de uma
nova visão dos direitos humanos. Esta nova visão pode ser
construída a partir de instrumentos internacionais, como a Resolução
32/130 da ONU, tomados pela Assembléia Geral, em 1977. Ali se
estabelece o que se deve ter em conta ao se falar em direitos
humanos:
- os direitos humanos e as liberdades fundamentais constituem um
todo únicos indivisível;
- é impossível a realização dos direitos civis políticos sem
o usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais;
- os direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana e dos
povos são inalienáveis;
- os problemas afetos aos direitos humanos devem ser tratados
globalmente;
- no marco da sociedade internacional, deve ser dada prioridade
absoluta para a busca de soluções a violações massivas e
flagrantes de direitos dos povos e pessoas vítimas de situações
que lesam sua dignidade;
- é essencial para a consolidação dos direitos e liberdades
fundamentais, a ratificação pelos Estados dos instrumentos
internacionais a respeito do tema.
Estabelecimento de parcerias entre Estado e sociedade
O início dos anos 70 foi saudado
no Brasil por uma frase presidencial que demonstrava a distância
entre Estado e sociedade: "O país é rico, o povo é que é
pobre". O Estado ocupado por militares opunha-se à
sociedade, civil por excelência.
Na transição, na euforia da
recuperação de alguns direitos, manteve-se em parte a desconfiança
da cidadania em relação ao governo e aos governantes.
Essa desconfiança foi agravada no início da redemocratização,
já pela multiplicação de escândalos causados pelos novos
detentores do poder, em mau uso de recursos públicos, como pela
volta à cena política, pelo voto popular, de figuras claramente
identificadas com a ditadura militar. Aqui caberia uma reflexão,
poupada pela falta de espaço, sobre a falta de relação,
principalmente nas camadas populares, entre voto e melhoria de
condições de vida.
A Constituição de 1988 estabeleceu a importância da democracia
participativa, reforçando a clássica figura da representação
popular. E a participação popular foi estabelecida sob duas óticas:
no controle do poder político e na administração da coisa pública.
Se, no controle do poder político, há uma grande gama de
alternativas, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa
popular legislativa, em relação à participação popular na
administração existe um campo inexplorado.
** Membro da Comissão de Justiça e Paz e
de vários organismos de defesa e promoção dos direitos humanos.
Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Governo do
Estado de São Paulo desde 1995.
Advogado em São Paulo
|