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Justiça sem Fronteiras

por Belisário dos Santos Jr. e Carlos Alberto Idoeta

Em 1º de outubro de 1946, foi lido aos acusados o veredito do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg que julgou e condenou carrascos nazistas por crimes de guerra (violar leis de guerra), crimes contra a paz (planejar e empreender guerras de agressão) e crimes contra a humanidade (extermínio, deportações e homicídios em massa).

Os réus, entre eles nomes famosos, como Albert Speer, Martin Bormann e Rudolf Hess, receberam garantias de julgamento justo. A produção de provas e os debates entre acusação e defesa se alongaram por 216 sessões em mais de 10 meses. O principal argumento da defesa foi o de que somente os Estados, e não os indivíduos, poderiam ser culpados por tais crimes. O tribunal rejeitou a tese, condenando 12 à forca, três à prisão perpétua e quatro a penas que variaram de 10 a 20 anos de prisão. Três acusados foram absolvidos.

Ao mesmo tempo se criava a Organização das Nações Unidas. Na esteira daquelas atrocidades, inéditas, em 10/12/48 a humanidade proclamaria a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Iniciava-se o reconhecimento da responsabilidade internacional pela proteção da pessoa. Emergia o indivíduo em espaço antes exclusivo do Estado. Surgia o direito em favor dos mais vulneráveis. De tudo isso nascia a esperança do estabelecimento de um novo sistema internacional de Justiça. A Guerra Fria, contudo, protelou indefinidamente o sonho de um Tribunal Criminal Internacional Permanente (TCIP).

Os anos recentes demonstraram a insuficiência dos sistemas nacionais de Justiça para reparação das violações massivas e sistemáticas dos direitos humanos. A persistência da impunidade produz o desprezo pela lei e corresponde à autorização para a prática de condutas inomináveis.

A Anistia Internacional nos relembra que não deve haver abrigo no mundo para os autores de crimes contra a humanidade. Não podem prescrever genocídios, massacres, torturas, limpezas étnicas, em nenhuma latitude. Tais crimes, de caráter massivo, são praticados por agentes públicos, ou seus delegados, por ordem, conivência ou omissão de regimes políticos que, muitas vezes, controlam politicamente ou amordaçam, de fato ou de direito, seus sistemas de Justiça. Klaus Barbie e Paul Touvier foram julgados e condenados décadas depois de seus crimes. Alguns remédios foram exigidos pelo patamar atual de consciência jurídica para compensar essa insuficiência. A convenção da ONU contra a tortura introduziu o princípio da jurisdição universal (o torturador poderá ser processado no País onde estiver).

A Carta de 1988 definiu a imprescritibilidade de alguns crimes, por seu potencial ofensivo. A mesma Constituição afirmou que o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos. Não há mais quem se insurja contra o caráter internacional dos direitos humanos, hoje, com argumentos de expressão. Assim, é possível viver a idéia do TCIP.

Uma corte internacional não será panacéia nem isentará autoridades internacionais de sua obrigação primária de processar e julgar tais criminosos. O TCIP será uma nova instância de Justiça, um modelo para os tribunais nacionais e uma mensagem da comunidade internacional de que atrocidades não mais serão toleradas. Aos governantes que abriguem criminosos se reservará o papel de párias internacionais, sujeitos a crescente pressão por justiça.

Em menos de três meses foram redigidos os estatutos para os tribunais ad hoc para Ruanda e ex-Iugoslávia. A Carta da ONU foi preparada em menos de um ano. O projeto do TCIP se arrasta desde 1948. O trabalho preparatório está pronto e a Itália se ofereceu como anfitriã da conferência dos representantes plenipotenciários. Alguns governos ainda repetem velhas escusas e débeis argumentos, pedindo protelação.

Esperamos do governo brasileiro e dos governos das nações civilizadas um voto afirmativo na Assembléia Geral da ONU, no final do ano. Queremos os mecanismos diplomáticos a serviço de um instrumento inédito de afirmação de leis justas e da responsabilidade internacional pela proteção do ser humano. É tempo de assegurar o fim das violações e exigir justiça para as vítimas e seus algozes. (O Estado de São Paulo, 01/10)

Belisário dos Santos Jr.
Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo

Carlos Alberto Idoeta
Diretor da seção brasileira da Anistia Internacional

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