A Violência no
Esporte
Belisário dos Santos Junior
Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São
Paulo
Há momentos na vida pessoal ou na
vida em sociedade em que tudo o que fermenta, tudo o que incomoda,
tudo o que faz mal, vem à tona, aflora à consciência. Alguma
coisa acontece e faz com que aquela semente não se conforme mais
com a terra.
O detonador desse processo
catártico pode ser algo de grande magnitude, cuja ocorrência por
si justifica a reação e pode ser algo pequeno, cuja
verificação, se analisada isoladamente, não explica o
movimento.
Seria difícil dizer se uma briga
entre torcidas ocorrida em agosto de 1995, no Estádio do
Pacaembu, com a morte de um torcedor, foi a mais violenta, a mais
cruel, a mais carregada de ódio entre pessoas que não se
conhecem. Ou se foi o acontecimento mais chocante em termos de
violência relacionada ao esporte.
Pode até não ter sido. Talvez a
presença maciça da polícia em outros momentos, ou a maior
importância de outros jogos, tenha entorpecido o conhecimento
dessa realidade que não é de agora. Ou talvez nos estivéssemos
acostumando à convivência dessas idéias aparentemente
antinômicas, dessas realidades à primeira vista antagônicas:
violência e esporte.
O certo é que com aquele fato a
sociedade acordou e disse BASTA! A cidadania cobrou providências
imediatas. Quis o fim da impunidade. Por falta de reflexão
anterior, exigiram-se medidas de qualquer natureza. Quanto mais
radicais, melhor. Algumas que, se implementadas, inviabilizariam a
sua própria razão de ser, ou poriam em risco a cidadania que
reclamou e se diz desprotegida. Ninguém há de querer o fim do
esporte, ou a imposição às praças de futebol da calma dos
cemitérios.
Novas leis. Será necessário? Mais
ousadia? Mais criatividade? O que se quer da Polícia? O que se
espera da família? Da media? Dos clubes? Da escola? Da
Federação? Da própria sociedade?
O que se quer é o fim do medo. É
poder torcer, vibrar, inconformar-se, sem ser punido pela cruel
lógica de não ser da mesma torcida do agressor potencial. O que
se quer é poder sair do estádio, rindo ou sofrendo conforme o
resultado, sem a agonia de fugir da violência anônima, vestida
de "gang" uniformizada.
Como chegar, ou voltar a isso?
Essa é a razão de ser deste
livro, neste momento de catarse.
As idéias fermentam. Aqui tem seu
entrechoque.
As propostas se multiplicam e se
contradizem. Aqui ocorre seu debate. Várias providências já
foram adotadas. Há outras por implementar.
Este é um foro da cidadania.
Vários setores organizados da sociedade terão suas idéias e
propostas documentadas para reflexão das autoridades, do
Congresso Nacional, e de quem mais se interesse, enfim, em fazer
do esporte uma questão de cidadania, banindo a violência que lhe
é estranha.
Pela alegria, contra a violência.
É a proposta.
A violência e a questão legal
A violência no esporte é uma das
faces da violência cotidiana na sociedade. O esporte que, em
tese, deveria ser a sublimação da violência passou a ser a
própria forma de manifestação desse fenômeno da violência. Os
estádios passaram a ser mais conhecidos como espaço de
violência, que palco de acontecimentos esportivos. Como reverter
tal quadro?
Impunidade
Hoje, quando se começa a falar em
aspectos jurídicos, vem imediatamente à tona a tentação de
editar NOVAS LEIS. De preferência penais. De preferência, com
penas mais rigorosas.
Esse vício de querer transformar o
direito penal em bicho pap‹o, o recurso ao direito penal
simbólico, na realidade esconde o fenômeno real, a questão da
impunidade. Nossas leis bastam. É necessário aplicá-las.
Confira-se o elenco de condutas prevista em nosso Código Penal:
homicídio (art.121); lesão corporal(art.129); rixa(137);
ameaça(art. 147); dano (art. 163); incêndio(art. 250);
explosão(art.251); arremesso de projétil(art. 264); incitação
ao crime(art. 286); bando ou quadrilha(art. 288 ).
As penas são severas. As
inferiores a um ano podem ser substituídas pelas penas
restritivas de direitos: limitação de fins de semana,
interdição temporária de direitos e prestação de serviços à
comunidade.
Assim é possível se falar em
cerceamento ao direito de assistir a jogos, prestação de
serviços à comunidade no horário do futebol etc. Há apoio
legal para tanto. Isto em relação aos maiores de idade.
No que toca aos menores, praticado
o ato infracional, as medidas sócio-educativas vão da
advertência a regime de semi-liberdade, da obrigação de reparar
o dano e da prestação de serviços à comunidade à internação
em estabelecimento educacional, por tempo indeterminado, até
três anos. São disposições do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
O que tem faltado é vontade de
aplicar as leis. Esse é o fenômeno a ser enfrentado.
Responsabilidade
Várias providências já foram
adotadas. O cadastramento de torcedores. O incentivo ao
comparecimento de famílias. A proibição de identificação de
torcidas uniformizadas. São medidas enérgicas a serem mantidas.
Há outras providências por adotar.
- Os grupos organizados de
torcedores foram criados e incentivados pelos clubes e por eles
muitas vezes financiados e prestigiados. A sociedade passa a
exigir que nos regulamentos dos campeonatos se insiram cláusulas
de punição aos clubes cujas torcidas provocarem manifestações
de violência (episódios limite) a critério de um colegiado
formado pela sociedade civil. Isto mesmo que a manifestação não
tenha influído no resultado do jogo (caso em que a
responsabilidade já existe).
- Parte da arrecadação dos jogos
deve ser destinada a um fundo para vítimas de violência no
esporte e para campanhas de cunho pedagógico. Não será nenhum
prejuízo. Basta cercar a evasão de renda.
- Grande preocupação deve cercar
a constituição de torcidas organizadas. As que incluírem ritos
de iniciação ilegais, incentivo à violência por atos ou
símbolos, caracterizam conduta prevista em lei como ilegal e
devem ser extintas por ação judicial. Seu patrimônio deve ter o
destino acima referido.
Educação
O problema não é só de
repressão/prevenção, ou de impunidade/responsabilidade. O
problema é também de memória. Quanto tempo durará essa
campanha na "média"? Quanto tempo a sociedade militará
nessa discussão, hoje diária? Nós precisamos constituir o que
CANETTI chamou de massa de inversão. Manter à tona nossa
inconformação com a violência no esporte, de forma ativa.
Movimentos desse tipo, conduzidos por entidades não
governamentais, cercearam situações de violações aos direitos
humanos, derrubaram ditaduras. Porque não o mesmo contra a
violência?
Assim, deve ser cobrado aos clubes,
às torcidas que remanescerem, à imprensa, à sociedade em geral,
campanhas massivas contra a violência. A cada espetáculo de
futebol, algo deve ser feito, como parte do espetáculo, como
requisito da apresentação esportiva, contra a violência, pela
volta da alegria. Esse processo educativo vai exigir a reflexão
de quantos conviverem com a prática esportiva.
O Respeito à Cidadania
O critério de todas as
providências adotadas é a preservação do espetáculo e dos
direitos da cidadania. Grande esforço deve ser feito para
preservar as garantias dos cidadãos, sem prejuízo da contenção
da violência.
A Recuperação do Futebol
Algumas considerações devem ser
dedicadas à organização e às regras dessa coisa burocratizada
que ainda nos atrai, embora menos do que antes, e que responde
pelo nome de futebol.
O que existe hoje incentiva a
"cera", a contenção contra o ataque, as paralisações
em desfavor do tempo corrido, a burocracia contra a arte, a
onipotência do juiz, o desprezo a conquistas técnicas da
modernidade, o desprestígio do gol.
Voltar a chamar a atenção para o
que ocorre no campo, recriando o futebol como algo atraente, não
traria de volta torcidas que fossem a campo à busca apenas de
jogo?
Solidariedade
Concluo. Se o esporte já serviu a
ditadores e a ditaduras, também nos deu grandes lições de
solidariedade, dentro e fora do campo. Grandes causas já
receberam a adesão de clubes, esportistas e torcidas. A anistia.
O fim dos desaparecimentos forçados. A democracia. A paz. Faixas,
cartazes e bandeiras que cruzaram o mundo, denunciando, lembrando,
exigindo, via satélite.
A mesma criatividade que fez nascer
práticas esportivas cujo sucesso está na solidariedade entre os
jogadores de um time, deve patrocinar ações que restabeleçam a
alegria e determinem o fim da violência entre as torcidas.
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