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 Bioética, Biodireito
              e Direitos Humanos
              
               Vicente de Paulo
              Barretto 
               
              Sumário 
              1.
              Para além do direito
              natural 
              
              2.  A face oculta do direito cosmopolita 
              
              3.  Velhos temas , novas perplexidades 
              
              4.  Origens e evolução temática da bioética 
              
              5.  Os princípios da bioética 
              
              6.  A agenda temática da bioética 
              
              7.  Duas respostas aos temas da bioética 
              
              8.  Da bioética aos direitos humanos 
                
                
               
              1. Para além do direito
              natural 
               
              A idéia de um direito com valor universal constituiu uma das
              características comuns do pensamento filosófico, político e jurídico
              da modernidade, tendo sido formulada por pensadores que se
              diferenciavam em suas posições doutrinárias, mas que
              compartilharam a mesma intenção de procurar estabelecer como
              fundamento da ordem jurídica positiva um direito encontrado na
              natureza do homem e da sociedade. A escola jusnaturalista moderna
              terminou por ser um referencial obrigatório no pensamento filosófico
              e jurídico dos últimos três séculos, ainda que não se possa
              estabelecer um mesmo eixo temático entre os seus representantes,
              que além de sustentarem a existência de um direito natural,
              pouco se assemelharam na abordagem dos problemas filosóficos, políticos
              e jurídicos. As diferentes concepções do direito e do Estado,
              desenvolvidas nas obras de autores como Hobbes, Puffendorf,
              Thomasius, Locke, Rousseau e outros, têm, no entanto, um mesmo
              princípio básico, qual seja a da existência de uma lei natural
              e de um direito natural, fundamentos da sociedade, do Estado e do
              direito. No final do século XVIII, foi essa idéia comum que
              serviu como argumento ideológico para as declarações de
              direitos da Revolução Norte-Americana de 1776 e da Revolução
              Francesa de 1789, fontes primárias das modernas garantias da
              pessoa humana nos textos constitucionais do estado liberal. Esse
              direito natural exerceu o papel de fonte legitimadora das
              primeiras constituições escritas, que vieram assegurar do ponto
              de vista constitucional a passagem do absolutismo para o estado de
              direito 
              Entre os filósofos que
              investigaram a possibilidade de uma ordem jurídica fundada em
              valores universais, diferencia-se, entretanto, Immanuel Kant, que
              ao refletir sobre o tema abandona a tradição jusnaturalista
              moderna e procura estabelecer, em torno da idéia do direito
              cosmopolita, uma resposta diferenciada para a mesma investigação
              intelectual comum aos pensadores jusnaturalistas. Em dois textos
              clássicos, Kant trata do tema o que permite a constatação de
              que, preliminarmente, o direito cosmopolita kantiano diferencia-se
              da hipótese do direito natural dos jusnaturalistas, e, também, e
              principalmente, serve como pista teórica, na modernidade, para
              que se possa situar criticamente a questão da fundamentação ética
              do direito e do Estado. Escolhemos para examinar a possibilidade
              da fundamentação ética da ordem jurídica, as relações
              estabelecidas entre os valores morais e a pesquisa e tecnologia
              biológicas, que se formalizam juridicamente na nova área do
              direito, o biodireito. Procuramos determinar até que ponto os
              valores éticos podem constituir-se em categorias racionalizadoras
              e legitimadoras dessa nova ordem jurídica. Para isto,
              privilegiamos o exame dos princípios da bioética, que, como
              veremos a seguir, surgiram para estabelecer parâmetros éticos
              para as pesquisas e tecnologias, e que terminaram por receber sua
              formalização, mais universal, sob a forma de direitos humanos ( Declaração
              Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos, UNESCO, 1997). 
               O processo de transição das
              categorias éticas para a norma jurídica, corre o risco, no
              entanto, de transformar-se em dogmatismo moral, sendo necessário,
              para que isto não ocorra, o emprego de uma idéia que forneça as
              estruturas racionais necessárias para explicar e fundamentar o
              biodireito. Essa idéia é a do direito cosmopolita. 
               
               
              
              2. A face oculta do direito cosmopolita 
               
              O conceito de direito cosmopolita, proposto por Kant, refere-se,
              principalmente, ao entendimento de que a evolução histórica, e
              com ela as luzes da razão, iriam encontrar ou formular normas com
              fundamentação ética, que poderiam ser consideradas como uma
              forma de direito. De um direito moral, certamente, pois não se
              identificaria com normas positivadas, mas que se imporia pela força
              da sua própria racionalidade. A racionalidade como categoria
              universal, comum a todos os seres humanos, serviria na concepção
              kantiana, de instrumento para a determinação de valores
              livremente aceitos por todos os homens, independentemente de
              cultura, etnia ou religião. Essa característica do direito
              cosmopolita permite que se tenha uma leitura propriamente moral
              dos direitos humanos, podendo-se mesmo entender essa categoria de
              direitos como uma manifestação de valores éticos no sistema jurídico.
              Os direitos humanos tornam-se, assim, e principalmente, uma forma
              de moralidade, que tem a ver com uma determinada concepção ética
              da pessoa humana, da sociedade e do Estado. Parece-nos que a hipótese
              dos direitos humanos, como categoria ética, torna-se bastante
              plausível, quando analisamos os argumentos kantianos, sobre o
              direito cosmopolita e a melhor forma de governo, argumentos esses
              que poderão fornecer uma fundamentação racional aos direitos
              com pretensão de validade universal. 
              Na Idéia de uma história
              universal de um ponto de vista cosmopolita (1986), Kant
              identifica na história da humanidade "a realização de um
              plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política
              perfeita internamente - e para este propósito também
              externamente - como sendo o único estado no qual todas as
              capacidades naturais da humanidade podem ser plenamente
              desenvolvidas" ( Proposição 8). O cerne da questão
              encontra-se na referência a uma "constituição
              politicamente perfeita", onde torna-se claro que estamos
              tratando com critérios que se encontram fora do próprio texto
              constitucional. A idéia de uma ordem normativa é referida, ainda
              que implicitamente, a valores a serem aplicados também
              externamente, ultrapassando, assim, as limitações do direito
              nacional e situando as suas normas numa dimensão universal. Kant,
              entretanto, no texto citado, não desenvolve em toda a sua extensão
              a idéia do direito cosmopolita, restringindo-se a constatar que
              esse tipo de direito é condição para o pleno desenvolvimento da
              humanidade. Por outro lado, a idéia de que a evolução da
              humanidade tem como referencial o aperfeiçoamento moral,
              encontra-se subtendida na proposição de que existirá um estado
              social e político onde essas virtualidades humanas encontrarão
              campo propício para que se realizem e, por essa razão, a ordem
              social e política será "politicamente perfeita". No
              pensamento de Kant, essa ordem social e política identifica-se
              com o governo republicano, em oposição ao despotismo. 
              No Projeto para uma paz perpétua
              ( 1970), Kant afirma que "os povos da terra participam em
              graus diferentes de uma comunidade universal, que se desenvolveu a
              ponto de que a violação de um direito numa parte do
              mundo, repercute em todos os lugares" ( 2a. secção, 3º
              art. definitivo). O direito cosmopolita consiste, portanto, no
              tipo de norma que ultrapassa as comunidades nacionais e
              identifica-se como sendo a norma de uma comunidade planetária.
              Por essa razão, continua Kant, em todos os lugares da terra
              reage-se de forma idêntica à violação do direito cosmopolita,
              sendo este direito "um complemento necessário do código não
              escrito, tanto do direito civil, como do direito das gentes, em
              vista do direito público dos homens em geral" ( ib.). Para
              Kant, a paz perpétua sòmente poderá ser atingida na medida em
              que entre os povos esse direito cosmopolita seja respeitado. O
              conceito de direito cosmopolita, no pensamento kantiano, será
              a explicitação da "idéia racional de uma comunidade geral,
              pacífica, quase mesmo amigável, de todos os povos da
              terra" (Kant, 1971). O direito é entendido, portanto, como o
              instrumento de uma forma de organização entre os povos baseada
              na racionalidade e, em função dela, justificando-se e
              legitimando-se. Na medida em que se organiza como fruto dessa
              racionalidade, a ordem jurídica irá refletir valores nascidos
              dessa própria racionalidade, necessariamente universal, e
              reguladora da autonomia individual. 
              Temos, assim, as condições de plausibilidade racional que
              permitem justificar direitos universais e que, em conseqüência,
              podem assegurar direitos subjetivos consagrados no direito
              positivo nacional. Os fundamentos dos direitos humanos, como
              manifestação de universalidade jurídica, supõem que se
              encontrem justificativas, que sejam universais para a aceitação
              desses direitos. Essa universalidade não será dada pela simples
              afirmação discursiva de direitos considerados, por si mesmos,
              como identificados com a natureza humana, como pretendiam os teóricos
              do jusnaturalismo moderno. Isto porque essa natureza humana
              apresenta-se de forma múltipla e variada, organizando-se em função
              de diferentes valores morais e normas jurídicas positivas.
              Trata-se, portanto, de discutir a possibilidade racional de se
              encontrar uma fonte comum e universalizadora de direitos. Uma
              primeira, e mais simples resposta, poderia ser aquela dada por
              alguns filósofos e juristas contemporâneos, que sustentam serem
              os direitos humanos aqueles proclamados e reconhecidos nas declarações
              relativas aos direitos humanos das Nações Unidas e incorporados
              aos direitos nacionais pelas respectivas constituições. A Declaração
              Universal dos Direitos do Homem representaria , no dizer
              desses autores, " a manifestação única através da qual um
              sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e,
              portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca de
              sua validade" ( Bobbio, 1992: 26 ). O filósofo italiano
              restringe os direitos humanos aos que são reconhecidos pela
              vontade soberana dos estados nacionais e com isto supõe que a
              universalidade desses direitos será, necessariamente, mitigada e
              relativa, pois dependerá das circunstancias e da vontade política
              mutável de diferentes estados. No entanto, faz referência, também,
              a um "consenso universal" como condição para a sua
              validade, que nos remete para um conceito - o de "consenso
              universal"- que acaba não sendo definido. Torna-se, então,
              tema prioritário de uma investigação, que pretenda concluir
              pela plausibilidade universal, porque antes racional, dos direitos
              humanos, encontrar evidencias empíricas que forneçam dados que
              possam constituir objeto de uma teoria. Essa teoria, entretanto,
              estará preocupada em retirar dos fenômenos sociais, os elementos
              necessários para que se possa compreender em que medida as raízes
              dos direitos humanos encontram-se mais no campo da racionalidade e
              da moralidade do que no espaço da vontade do estado soberano. 
              Desde a Declaração Universal
              dos Direitos do Homem, em 1948, pelas Nações Unidas, houve
              uma tendência a definir-se, progressivamente, os direitos humanos
              em função das realidades sociais, econômicas e políticas. Os
              dois importantes documentos que complementam a declaração de
              1948 - o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
              Culturais (!966) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
              ( 1966) - consagraram o entendimento de que os direitos humanos
              referem-se não somente à liberdade dos indivíduos, mas a uma
              gama de fatores que são determinantes na realização do indivíduo
              como pessoa humana. Coincidindo com a democratização do estado
              liberal clássico, principalmente, no correr do século XX, o
              conceito de direitos humanos alargou-se, incorporando outros
              direitos, além do direito à liberdade e suas formas, que têm a
              ver com a necessária correção das desigualdades sociais, econômicas
              e culturais encontradas na sociedade. De qualquer forma, esses
              direitos passaram a constituir condição mesma para que os
              direitos humanos clássicos fossem respeitados em toda a sua
              plenitude. Em alguns estados, no entanto, esses direitos, chamados
              de segunda geração foram privilegiados em relação aos de
              primeira geração, havendo mesmo o sacrifício de algumas
              liberdades em nome do respeito aos direitos sociais. A interpretação
              não-universal da natureza desses direitos evidenciou dúvidas e
              questionamentos em diferentes estados ( como, por exemplo, a China
              e os países islâmicos)* sobre a universalidade dos direitos
              humanos e o processo comum a ser adotado para a sua garantia.
              Essas conceituações e interpretações conflitantes demonstraram
              como faltam argumentos universais, que estabeleçam os fundamentos
              éticos, universais e legitimadores dessa categoria de direitos e,
              como tal, garantam a sua eficácia. 
              A falta dessas justificativas
              racionais, entretanto, não significou que o tema da ética
              estivesse para sempre sepultado na cultura e no pensamento social.
              Permaneceu subjacente na cultura cívica ocidental, como um
              conjunto de valores que se encontravam esquecidos, face ao avanço
              do positivismo e do cientificismo, nos últimos duzentos anos, mas
              que serviram como referência obrigatória na luta contra
              despotismos e tiranias. A experiência totalitária, em suas duas
              versões, durante o século XX, as duas guerras mundiais, as
              atrocidades cometidas no campo de batalha e os bárbaros
              experimentos genéticos, levados a efeito pelos médicos nazistas
              em campos de concentração, fizeram com que se acordasse para uma
              empiria que situava a questão moral de maneira contundente e em
              estado puro. A história mostrava, assim, como o direito e suas
              pretensões normativas não atendera às necessidades mínimas de
              proteção da pessoa humana, o que obrigou a que se recorresse às
              fontes legitimadoras do direito. A recuperação do tema clássico
              das relações da moral com o direito, renasceu, então, como meio
              de explicar e superar o impasse moral em que se encontrava
              mergulhada a consciência do homem ocidental. Nesse contexto de
              crise ética e da necessária restauração de parâmetros
              metalegais, as indagações suscitadas pelo passado recente e pelo
              avanço das pesquisas biológicas e suas aplicações tecnológicas
              do presente fizeram com que se procurasse estabelecer no campo da
              biologia, princípios destinados a garantir a humanização do
              progresso científico. Num primeiro momento, fixaram-se princípios
              de caráter moral abstrato, para logo em seguida, mesmo quando a
              questão ética não estava amadurecida, serem formuladas normas
              jurídicas, relativas às pesquisas e tecnologias biológicas.
              Restou, entretanto, um espaço vazio entre a formulação ética e
              a normatização jurídica, o que obrigou à retomada do debate clássico
              sobre a possibilidade da construção de normas jurídicas, que
              pudessem refletir valores éticos. Essa linha de investigação
              permite que se utilize a idéia do direito cosmopolita como
              estrutura racional dentro da qual possam racionalmente
              justificar-se os valores, discutidos em função dos avanços das
              ciências biológicas, e em que medida poderão constituir-se nos
              fundamentos da ordem normativa do biodireito. Isto por que, é na
              idéia do direito cosmopolita que poderemos encontrar os
              fundamentos racionais, e, portanto, éticos, de normas que se
              pretendem universais, válidas e legítimas em todos os quadrantes
              do planeta. A Declaração Universal sobre o Genoma e os
              Direitos Humanos procura preencher esse vazio, sendo mais uma
              etapa no processo de inserção de valores morais na construção
              de uma ordem jurídica, pois estabelece princípios bioéticos e
              normas de biodireito, às quais aderiram os estados, e que servirão
              como patamar ético-jurídico da pesquisa e da tecnologia da
              biologia contemporânea. 
               
               
              
              3. Velhos temas , novas perplexidades 
               
              A bioética é um ramo da ética filosófica, fruto de um tempo,
              de uma cultura e de uma civilização. Quando falamos em bioética
              estamos tratando de uma área de conhecimento, nascida há sòmente
              cerca de meio século, ainda que alguns de seus temas centrais - a
              saúde, a vida e a morte - tenham a ver com as origens da reflexão
              filosófica e da medicina na cultura do Ocidente. O juramento
              hipocrático, na Grécia Antiga, foi a primeira formulação de um
              sistema normativo, no qual se reconhecia a relação necessária
              entre a prática da medicina, e a conseqüente busca da cura das
              doenças, com o respeito aos valores da pessoa humana. Desde o século
              V a. C., a prática médica teve um referencial ético, que se
              constituiu na base dos modernos códigos de ética profissional, o
              corpus da deontologia médica. A medicina, portanto, mesmo
              quando, ainda no tempo de Hipócrates, lutava para ver reconhecida
              o seu status científico, ao rejeitar as explicações
              "sobrenaturais" para as doenças, tinha presente a
              dimensão moral do ser humano. O termo "deontologia" ou
              "ciência do dever", entretanto, somente veio a ser
              cunhado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, em 1834, quando
              tornou sinônimas a ética, ou o conhecimento científico sobre a
              moralidade, e a ciência do que é necessário ser feito; Deontology
              or the Science of Morality, como intitula-se o livro do filósofo
              inglês, pretendia, precisamente, criar uma nova área da
              filosofia, que deveria tratar da ciência ou teoria (logos)
              do que é necessário ser feito (do grego deon). O termo
              deixou de ter suas características filosóficas ao ser aplicado,
              extensivamente, durante o século XIX, para significar os códigos
              de ética profissionais, que não são produtos de uma reflexão
              ético-filosófica. 
              O paradigma ético-profissional da medicina, estabelecido na Grécia
              Antiga, daria sinais de esgotamento normativo durante a segunda
              metade do século XX, no quadro do chamado "vazio ético",
              em que mergulhou a civilização tecnocientífica da modernidade.
              A diversidade dos problemas morais, que atingiu o seu paroxismo na
              própria negação da existência de qualquer valor ético
              universal entre os homens, surgiu em todos os aspectos da civilização
              tecnocientífica, mas encontrou nas indagações suscitadas pela
              bioética campo fértil, onde a empíria exigia de forma urgente,
              e mais do que em outras áreas do conhecimento, a reflexão ética.
              Para que se possam entender os problemas e as perspectivas da bioética
              contemporânea, torna-se necessário, preliminarmente,
              estabelecer-se as relações entre a crise cultural dessa forma
              civilizatória e a conscientização moral crescente da sociedade,
              que encontra na bioética uma de suas principais manifestações.
              Nesse sentido é que se pode afirmar ser a bioética o mais no
              novo ramo da filosofia moral, por ter surgido da necessidade de se
              estabelecer princípios racionais que explicassem e fundamentassem
              o comportamento do homem face a novos conhecimentos e tecnologias.
              E somente poderia ter ganho corpo científico no quadro de uma
              específica cultura e civilização, pois a bioética extravasou
              da análise medico-paciente e atingiu todo o contexto que envolve
              os problemas da vida, da saúde, da morte e das tecnologias a elas
              relativas. 
              O fenômeno cultural e de civilização, denominado de tecnociência,
              ocorreu de modo progressivo a partir do século XVII, quando se
              processou uma radical mudança no paradigma do conhecimento
              humano, provocada pelo advento da ciência galileiana da natureza.
              O novo tipo de conhecimento consagrou os modelos operativos, tanto
              teóricos, quanto técnicos, fazendo com que houvesse "uma
              perfeita homologia na ordem do conhecer e do fazer, entre o ser
              humano e o mundo por êle transformado" (Lima Vaz, 1998: 32).
              A tecno-civilização modificou, portanto, não sòmente a forma
              do conhecimento humano, mas também o próprio estatuto natural da
              situação do homem no mundo ou, como dizem os filósofos, do
              nosso ser-no-mundo. O homem deixa de ser um agente,
              exclusivamente, voltado para dominar e controlar o mundo que o
              cerca, passando a receber desse domínio uma influência reflexa,
              que irá alterar o próprio estatuto da sua humanidade. Por essa
              razão, alguns filósofos contemporâneos (Jonas, 1995 e 1998;
              Hottois, 1993: 11 e segs.) procuram demonstrar que a ética
              contemporânea exige uma fundamentação, que não se esvai na prática
              de tal ou qual virtude ou na observação de tal regra. No
              contexto dessa civilização tecnocientífica é que se afirma ser
              a bioética o campo próprio para repensar a ética, pois o
              material de reflexão do novo ramo da filosofia moral trata com o
              nascimento de uma nova humanidade e de uma nova natureza. A
              interferência do homem no mundo que o cerca modifica não somente
              o mundo, mas o próprio homem, que se vê diante de possibilidades
              até então desconhecidas, como são as advindas dos novos
              conhecimentos proporcionados pelas ciências biológicas; são
              conhecimentos que não se restringem à explicação do mundo
              natural, mas que apontam para mudanças no próprio ser humano. 
              O desenvolvimento das ciências e
              das técnicas, nos dois últimos séculos, trouxe consigo
              desafios, que têm a ver com o surgimento de novos tipos de relações
              sociais no quadro cultural da tecno-civilização. O renascimento
              do debate ético em todos os domínios da atividade humana talvez
              encontre a sua explicação final na necessidade da consciência
              do homem contemporâneo em situar-se face ao fato de que, o
              paradigma científico domina cada vez mais as forças da natureza
              e, ao mesmo tempo, interfere de forma crescente no mundo natural,
              suscitando problemas que não encontram respostas no quadro da própria
              cultura tecnocientífica, onde surgiram e desenvolveram-se. A
              principal dessas intervenções é a que ocorre no corpo das ciências
              biológicas, onde o homem, ao ampliar o seu domínio sobre a
              natureza, intervém na sua própria condição natural de pessoa e
              possibilita a implantação de tecnologias sem previsão quanto às
              suas conseqüências. Por lidar com esse novo tipo de
              conhecimento, o homem contemporâneo interroga-se de forma
              crescente sobre as dimensões, as repercussões e as perspectivas
              das novas descobertas científicas e de suas aplicações tecnológicas. 
              A bioética nasce, assim, como uma
              resposta a desafios encontrados no corpo de uma cultura, de um
              paradigma do conhecimento humano e de uma civilização. Antes de
              tudo, é a expressão teórica da consciência moral de um novo
              tipo de homem no seio de uma nova cultura e civilização.
              Distingue-se, portanto, de uma ética estritamente profissional,
              pois trata da análise teórica das condições de possibilidade
              dos valores, normas e princípios, que procuram ordenar o avanço
              científico e tecnológico. O progresso científico, por outro
              lado, em virtude de suas aplicações tecnológicas, não se
              processa de forma neutra, mas, no campo da engenharia genética,
              envolve uma rede imensa de interesses econômicos que acabam por
              questionar os próprios fundamentos da tradição ética
              ocidental. Médicos e pacientes, empresas de seguro de saúde,
              grandes indústrias farmacêuticas, disputas na comunidade
              cientifica por recursos cada vez mais vultosos para a pesquisa,
              investimentos públicos e privados na aplicação dos produtos
              resultantes das pesquisas, tudo contribui para que os princípios
              reguladores da medicina tradicional tornem-se insuficientes para
              regular as relações sociais, econômicas e políticas nascidas
              na civilização tecnocientífica. A chamada crise ética
              refere-se, precisamente, ao conflito entre aquela tradição e os
              valores da cultura da tecno-civilização, que servem como
              alicerces para a construção de novas, imprevisíveis e
              descontroladas relações sociais e econômicas. 
               
               
              
              4. Origens e evolução temática da bioética 
               
              No contexto da tecnociência, o conflito referido assumiu peculiar
              intensidade no âmbito da biologia contemporânea, principalmente
              nas suas mais avançadas realizações, que se encontram no campo
              da engenharia genética. O progresso científico e suas aplicações
              tecnológicas provocaram o surgimento de um complexo e intricado
              conjunto de relações sociais e jurídicas, que envolve valores
              religiosos, culturais e políticos diferenciados e, também, a
              construção de poderosos interesses econômicos que se refletem
              na formulação de políticas públicas. As questões éticas
              suscitadas pela ciência biológica contemporânea tratam, assim,
              das interrogações feitas pela consciência do indivíduo diante
              dos novos conhecimentos, e, também, como esses conhecimentos
              materializados em tecnologias estão repercutindo na sociedade.
              Vemos, então, como a complexidade das relações estabelecidas em
              virtude da nova ciência e tecnologias no campo da engenharia genética,
              fazem com que a bioética e o biodireito, não possam ficar
              prisioneiros da teorização abstrata ou do voluntarismo
              legislativo, pois ambos são chamados a responder à indagações
              práticas e imediatas, que nascem de relações sociais, econômicas,
              políticas e culturais características da civilização atual. 
              Esse conjunto de relações pode
              ser analisado, do ponto de vista ético, sob aspectos distintos:
              em primeiro lugar, considerando que o mais novo ramo da filosofia
              moral - a bioética - constituí uma fonte e parâmetro de referência,
              tanto para o cientista, como para o cidadão comum. Em segundo
              lugar, procurando-se estabelecer quais os princípios racionais,
              que fundamentam a bioética e como podem servir de parâmetros éticos
              na formulação de políticas públicas, que encontrarão nas
              normas jurídicas a sua formalização final. E, finalmente, como
              o biodireito, conjunto de normas jurídicas destinadas a
              disciplinar essas relações, deverá encontrar justificativas
              racionais que o legitimem. Encontramo-nos, assim, diante do
              problema nuclear do pensamento social, qual seja, o da convivência
              de duas ordens normativas - a moral e o direito - diferenciadas
              entre si, mas que mantêm um caráter de complementaridade, que
              impeça, parafraseando Kant, o vazio da bioética sem o biodireito
              e a cegueira do biodireito sem a bioética.* 
              O termo bioética foi proposto, pela primeira vez, no início da década
              dos setenta, pelo cancerologista Potter Van Rensselaer. O
              precursor do uso do termo empregou-o em sentido bastante
              diferenciado daquele que encontramos na atualidade. Potter
              considerava que o objetivo da disciplina deveria ser o de ajudar a
              humanidade a racionalizar o processo da evolução biológico-cultural;
              tinha, portanto, um objetivo moral-pedagógico . Andre Hellegers,
              fisiologista holandês e fundador do The Joseph and Rose
              Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and
              Bioethics, passou a empregar a palavra em sentido mais amplo,
              relacionando-a com a ética da medicina e das ciências biológicas.
              Ambos os precursores no emprego da palavra, procuraram soluções
              normativas para problemas que, desde o início da década dos cinqüenta,
              inquietava os meios científicos. Tratava-se de avaliar as conseqüências
              dos rápidos avanços nas ciências biológicas e controlar, ou
              humanizar, os seus efeitos. Tentavam os iniciadores da bioética
              fazer com que a própria comunidade científica definisse princípios
              éticos, inibidores da síndrome de Frankstein, que rondava a ciência
              biológica desde os experimentos dos médicos nazistas. 
              O nascimento da bioética ocorreu,
              assim, em contexto histórico e social específico (Parizeau,
              1996), correspondendo ao momento de crise da ética médica
              tradicional, restrita à normatização do exercício profissional
              da medicina, que não conseguia responder aos desafios morais
              encontrados no contexto da ciência biológica contemporânea. A
              primeira contestação aos padrões tradicionalmente utilizados
              pela corporação médica nas suas relações com os pacientes, e
              que revelou a insuficiência dos cânones da deontologia médica
              clássica, surgiu, entretanto, no bojo de um movimento social mais
              abrangente, onde a autoridade médica foi questionada, como as
              demais autoridades constituídas, como sendo representante do status
              quo do Estado liberal e da maquinária burocrática, montada
              para atender às políticas do bem-estar social dessa forma de
              organização estatal. Essas reivindicações, que caracterizaram
              o movimento social nos anos de 1960, foram expressas por algumas
              bandeiras: questionou-se a legitimidade das instituições, do
              Estado e da religião, o que provocou mutações profundas na vida
              privada dos indivíduos e na vida pública; no campo das ciências
              humanas e da vida ocorreram profundas mudanças em virtude de
              novos conhecimentos, novas tecnologias genéticas e da consagração
              de novos valores: fecundação in vitro, transplantes de
              orgãos, aperfeiçoamento das técnicas de enxertos, descriminalização
              do suicídio, do aborto, do homossexualismo, a legalização do
              divórcio, a questão do transexualismo, o emprego generalizado de
              métodos anticoncepcionais, a desinstitucionalização das
              instituições psiquiátricas, todos são temas que se
              incorporaram à cultura contemporânea através de acirrados
              debates científicos e morais, envolvendo universidades,
              pesquisadores, igrejas, partidos políticos, imprensa, organizações
              sociais e profissionais. 
              Nesse quadro de profundas modificações
              culturais, as relações médico-paciente foram denunciadas como
              sendo mais uma forma de paternalismo, entre as muitas encobertas
              pela sociedade liberal, a ser substituída por uma relação
              transparente e responsável. Os imensos progressos das ciências
              biológicas provocaram, entretanto, uma atitude ambivalente em
              relação ao modelo tecnocientífico vigente da medicina, responsável,
              aliás, pelos progressos alcançados no combate às doenças e
              endemias. A bioética surgiu como resposta ao conflito entre a ética
              médica deontológica, restrita à corporação médica, e as
              reivindicações de transparência e responsabilidade pública,
              levantadas pelo movimento social, que reconhecia, entretanto, as
              conquistas fundamentais realizadas pelas ciências biológicas.
              Vemos então, como nas suas origens, a bioética, e o biodireito,
              logo em seguida, iriam ter que conviver com essas duas dimensões:
              de um lado, a crítica às práticas éticas da medicina
              tradicional, consideradas inaptas para lidar com o novo mundo da
              biologia e tecnologias genéticas; de outro lado, a necessidade de
              apoio e incentivo às pesquisas que traziam avanços consideráveis
              na luta contra as doenças e epidemias. 
              A bioética trouxe do nascedouro
              algumas características, tornando-se evidente que as pesquisas da
              ciência biológica ampliavam os seus horizontes, deixando o campo
              restrito da busca da cura e desdobrando-se em temas, como as novas
              formas de procriação, a eutanásia, a clonagem e as políticas públicas
              relacionadas com esses temas. O campo de conhecimento da bioética
              exigiu, assim, a incorporação à temática original de outras áreas
              científicas. Por essa razão, a bioética contemporânea
              tornou-se, necessariamente, um conhecimento interdisciplinar, pois
              ela é parte, mas, na realidade, ultrapassa a ética médica,
              restrita às relações médico-paciente. Isto por que trata de
              investigações que envolvem a vida humana na perspectiva terapêutica
              e também de pesquisas puras, que podem ou não levar à aplicações
              práticas. Esse conhecimento, portanto, não se esgota na reflexão
              sobre as novas terapias, mas desdobra-se acompanhando as múltiplas
              aplicações tecnológicas, que irão envolver outras áreas de
              conhecimento sobre o homem e a sociedade. Por essas razões, a bioética
              tem uma dupla face, pois ela é um discurso e uma prática,
              materializando-se não na teoria acadêmica, mas na prática dos
              hospitais, nos comitês de bioética e na formulação de políticas
              públicas. Esse duplo aspecto da bioética é que a torna um ramo
              da filosofia moral, comprometida com um tipo de conhecimento
              voltado para a prática. 
              A análise filosófica da bioética,
              que irá possibilitar o estabelecimento dos parâmetros racionais,
              éticos e universais do biodireito, pode ser desenvolvida em duas
              dimensões: 
              a) trata-se, no primeiro nível, de
              desenvolver os argumentos racionais, que possam fundamentar e
              explicar os valores e princípios envolvidos. A bioética, sob
              esse aspecto, situa-se num nível meta-deontológico e analítico.
              Pretende-se, portanto, menos tomar posição, e em conseqüência
              expressar uma verdade canônica, e mais descobrir os argumentos
              contraditórios ou tautológicos encontrados no discurso bioético; 
              b) no segundo nível, a bioética
              procura explicitar recomendações objetivas, que contribuam para
              solucionar problemas específicos e circunscritos. Encontram-se
              nesse caso pareceres dos filósofos morais sobre problemas de política
              pública ou decisões judiciais, como, por exemplo, os pareceres
              do grupo de filósofos morais norte-americanos, que, como amicus
              curiae, ajudaram à Côrte Suprema dos Estados Unidos a
              decidir sobre a eutanásia. * 
              A bioética, portanto, não pretende constituir-se no corpo de uma
              moralidade canônica, estabelecida por uma autoridade religiosa ou
              política, que impõe a sua concepção moral própria, pois a
              sociedade pluralista em que vivemos não comporta uma mesma
              resposta para os problemas morais, mas múltiplas interpretações
              de diferentes códigos morais, pertencentes a diversas
              comunidades. A bioética é, assim, considerada como sendo
              necessariamente plural, e pode ser caracterizada "como uma lógica
              do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica
              das instituições morais" (Engelhardt, 1991:19 ). Para a
              realização da negociação pacífica, peculiar ao argumento ético,
              supõe-se que seja possível determinar um princípio de
              universalidade, como raiz da vida moral e jurídica. 
              O mais novo ramo da filosofia moral
              poderá definir, assim, não um código de normas substantivas,
              que sirva de guia para as políticas públicas de saúde e de
              pesquisa biológica, mas sim analisar as condições racionais
              para a existência de argumentos, fundadores de princípios, que
              serão materializados através da ordem jurídica, e visem
              resguardar a pessoa humana e os seus descendentes. Os problemas
              bioéticos referem-se em sua amplitude às condições de conservação
              e melhoria da própria condição humana, que se expressam no
              estado da saúde de cada pessoa, reflexo não sòmente de condições
              físicas ou psíquicas do indivíduo, mas, também, de políticas
              públicas e da prática da medicina (Gadamer, 1996). Nesse
              sentido, a bioética insere-se na tradição da ética prática,
              analisando do ponto de vista ético a prática da medicina e, também,
              os fundamentos e objetivos das políticas públicas de saúde. 
              Os propósitos da bioética são
              necessariamente limitados, tendo em vista a situação social
              contemporânea, na qual ocorre uma descontinuidade entre a
              racionalidade e a moralidade. A principal razão para essa ruptura
              intelectual, advém do fato de que presenciamos uma anemia
              crescente no debate público sobre a natureza e a função da
              moralidade. Construímos e convivemos com diferentes
              justificativas morais, que não mais fazem referência a um Deus
              unificador, gênese do que é certo e do que é errado, do bom e
              do mal, fonte durante séculos da moralidade. A necessidade da bioética
              na contemporaneidade - como, aliás, da filosofia moral de um modo
              geral - prende-se ao fato de que o modelo de sociedade
              individualista e socialmente atomizada dos tempos atuais,
              encontra-se questionada em seus fundamentos pelo próprio
              relativismo moral, que dela tomou conta. A fome pela ética no
              nosso tempo, principalmente levando-se em consideração as
              interrogações morais provocadas pelas ciências biológicas e
              tecnologias médicas, expressa o entendimento essencial do ser
              humano de que, para além das convicções individuais,
              encontra-se a necessidade de se estabelecer um balanceamento entre
              os custos e os benefícios do mais ambicioso projeto da pós-modernidade:
              adiar a morte ( Engelhardt: 1996: 14). 
              UERJ/UGF 
              http://www.fdir.uerj.br/publicacoes/publicacoes/vicente_barreto/vb_8.html 
                
              "Lo que hace un hombre es como si lo hicieran todos los
              hombres. Por eso no es injusto que una desobediencia en un jardin
              contamine al género humano..."Jorge Luis Borges, Ficciones. 
               
              Existe, portanto, uma tensão
              permanente entre os valores morais e os cânones éticos
              encontrados na sociedade pluralista da modernidade. A própria
              natureza humana é concebida de forma diversa pelas diferentes
              tradições culturais e religiosas. Dentro da tradição judáico-cristã,
              por exemplo, encontramos posições divergentes diante de uma
              mesma situação fatual, obrigando o médico a agir de uma ou de
              outra forma. Por outro lado, os regimes democráticos contemporâneos
              romperam as muralhas institucionais protetoras de segredos,
              tornando-se cada vez mais reduzido o número de fatos protegidos
              sob o manto dos arcana imperii, permitindo-se um contrôle
              mais efetivo pela sociedade civil dos rumos das pesquisas e experiências
              científicas. A mentalidade dos cientistas, é certo, encontra
              dificuldades em lidar com essa nova realidade político-institucional,
              caracterizada por uma consciência crescente da comunidade na
              defesa de valores e direitos considerados essenciais para a pessoa
              humana. O professor Robert Edwards, que, com Patrick Steptoe,
              iniciou a técnica da fertilização in vitro, em discurso
              pronunciado, em 1987, advertia para essa deficiência na formação
              dos cientistas: "os cientistas são notoriamente desprovidos
              de ética se comparados à população em geral. Muitos deles não
              se interessam em participar desses debates sequer em seu próprio
              campo de trabalho, a menos que as circunstâncias sociais os
              empurrem literalmente para a discussão ética. A maioria dos
              cientistas nunca teve uma formação ética e enfrenta consideráveis
              dificuldades, quando obrigada a expressar seus próprios princípios
              éticos em relação à sua disciplina" (Wilkie, 1994: 19). 
               
               
              
              5. Os princípios da bioética 
               
              Desde os seus primórdios, imaginou-se a bioética como uma fonte
              de normas, regras gerais e princípios, cujo objetivo principal
              seria o de disciplinar eticamente o trabalho de investigação
              científica e de aplicação dos seus resultados, protegendo a
              biologia da ameaça de deshumanização. A própria comunidade
              científica despertou para essa necessidade, fazendo com que os
              princípios da bioética constituíssem, nas suas primeiras
              formulações, uma espécie de código de ética profissional para
              cientistas e pesquisadores. A partir do início da década dos
              cinqüenta, a rapidez e sofisticação das novas descobertas biológicas,
              suscitaram indagações morais, que procuraram resposta na formulação
              de princípios éticos, que em sua origem, pretendiam regular a
              pesquisa e a engenharia genéticas, consideradas, em muitos
              aspectos, como uma ameaça à inviolabilidade da pessoa humana.
              Mas os princípios pretendiam, também, exercer o papel de fonte
              de obrigações e direitos morais, constituindo-se em principia
              (Engelhardt, 1996: 103), que expressavam raízes da vida
              moral, sendo suas determinações obrigatórias por si mesmas. 
              Os avanços do conhecimento científico,
              no contexto de desconhecimento objetivo sobre os resultados da
              aplicação das tecnologias e, também, de uma certa paranóia
              nascida, mais do culto da ficção científica do que propriamente
              da ciência, provocaram uma proliferação de regras bioéticas ou
              deontológicas de caráter geral, cuja fundamentação
              encontram-se nos princípios da bioética.. Os antecedentes
              normativos do biodireito, mais éticos do que jurídicos,
              representaram sòmente a primeira resposta para que pudesse ser
              preenchido o vazio normativo, ocasionado pela incapacidade da
              ordem jurídica vigente de lidar com as novas descobertas e suas
              aplicações, consideradas como ameaças, quando não reais,
              imaginadas, para a sobrevivência da humanidade. O vazio normativo
              tornou-se mais evidente com a insuficiência da deontologia médica
              clássica em lidar com as novas descobertas e as exigências
              sociais de transparência e publicidade na pesquisa e na prática
              médica, fazendo com que as questões morais suscitadas
              procurassem socorrer-se de princípios, que, teoricamente,
              deveriam pautar eticamente o desenvolvimento da investigação
              científica e suas aplicações práticas. Os princípios em sua
              generalidade, no entanto, não corresponderam às expectativas de
              regulação e, por essa razão, legislou-se sobre a pesquisa e as
              tecnologias de forma impulsiva, procurando-se resolver situações
              pontuais e não estabelecer normas jurídicas gerais. 
              Os fantasmas que rondaram as descobertas da biologia contemporânea
              tinham, entretanto, uma certa materialidade, pois o progresso biológico
              trouxe consigo a lembrança dos experimentos nazistas, o que
              justificou a proclamação das normas do Código de Nuremberg, em
              1947. Essa foi a primeira tentativa de distinguir entre pesquisas
              clínicas e não clínicas, quando se recomendou a formação de
              comitês destinados a regular o processo de obtenção do
              consentimento e do tipo de informação dada aos doentes, que
              fossem objeto das pesquisas. O movimento dos comitês de ética
              expandiu-se, principalmente, em hospitais universitários, sendo
              formado, originalmente, por médicos; em pouco tempo, surgiram os
              comitês nacionais de bioética, que a partir dos anos sessenta
              foram criados nos Estado Unidos, na Grã-Bretanha, na Suécia, na
              Austrália e em outros países, com a função de atuarem como
              instâncias nacionais para o contrôle do desenvolvimento da
              pesquisa e da tecnologia biológicas. Normas internacionais
              terminaram por consagrar a temática da bioética como tema planetário,
              procurando envolver em suas determinações inclusive aqueles países
              onde não se tinham ainda estabelecidos os comitês nacionais de
              bioética. 
              Os chamados princípios da bioética
              foram formulados, pela primeira vez, em 1978, quando a
              "Comissão norte-americana para a proteção da pessoa humana
              na pesquisa biomédica e comportamental", apresentou no final
              dos seus trabalhos o chamado Relatório Belmont; este texto
              respondia àquelas exigências, acima referidas, vindas da
              comunidade científica e da sociedade no sentido de que se
              fixassem princípios éticos a serem obedecidos no desenvolvimento
              das pesquisas e que deveriam ser considerados quando da aplicação
              de recursos públicos nessas atividades científicas. O Relatório
              Belmont estabeleceu os três princípios fundamentais da bioética,
              em torno dos quais toda a evolução posterior dessa nova área do
              conhecimento filosófico iria desenvolver-se: o princípio da
              beneficência, o princípio da autonomia e o princípio da justiça,
              chamado por alguns autores de princípio da equidade (Lepargneur,
              1996: 133). As normas biojurídicas, promulgadas, desde então, em
              países pioneiros na legislação do biodireito, como a Grã-Bretanha,
              Austrália e França, tiveram como referencial último esses princípios
              estabelecidos pelo Relatório Belmont. O exame desses princípios
              permite que se tenha uma idéia, no entanto, de suas limitações
              como princípios fundadores de uma ética e de um biodireito na
              sociedade pluralista e democrática. 
              O princípio da beneficência deita
              suas raízes no reconhecimento do valor moral do outro,
              considerando-se que maximizar o bem do outro, supõe diminuir o
              mal; o princípio da autonomia estabelece a ligação com o valor
              mais abrangente da dignidade da pessoa humana, representando a
              afirmação moral de que a liberdade de cada ser humano deve ser
              resguardada; o princípio da justiça ou da equidade estabelece,
              por fim, que a norma reguladora deve procurar corrigir, tendo em
              vista o corpo-objeto do agente moral, a determinação estrita do
              texto legal. Verificamos que os três princípios correspondem a
              momentos e perspectivas subsequentes na evolução da bioética, e
              em conseqüência do biodireito: o momento e a perspectiva do médico
              em relação ao paciente; o momento e a perspectiva do paciente
              que se autonomiza em relação à vontade do médico; e,
              finalmente, o momento e a perspectiva da saúde do indivíduo na
              sua dimensão política e social. 
              Alguns problemas de ordem racional
              surgem, entretanto, na análise da formulação e aplicação
              desses princípios. O estabelecimento de princípios, expressando
              raízes da vida moral, como quer Engelhardt (1996: 103), significa
              que irão formular uma determinação que, em última análise,
              torna-se canônica - pois quem irá definir em cada caso qual o
              "verdadeiro" significado de cada um deles -, e com isto
              terminam por negar o princípio racional básico de que as leis
              morais resultariam de uma ampla argumentação pública entre
              pessoas autônomas. A aplicação dos princípios, por sua vez,
              leva à situações conflitantes, entre si, a partir da constatação
              de que tomados, separadamente, cada um deles pode ser considerado
              como superior ao outro. Logo, logicamente, a sua aplicação não
              pode ser feita de maneira conjunta e não diferenciada, pois
              implicaria num processo de paralisação mútua do processo decisório. 
              A própria origem de cada um dos
              princípios da bioética mostra, em sua formulação restrita, que
              não atendem às demandas da ordem normativa, moral e jurídica de
              uma sociedade pluralista e democrática. As condições mínimas
              para a construção de qualquer sistema normativo - i.e., ordem e
              unidade - supõem a coexistência de princípios, que sejam
              complementares e não, como é o caso dos princípios da bioética,
              princípios que partem de pressupostos e cujos objetivos são
              mutuamente excludentes. O princípio da beneficência tem suas
              origens na mais antiga tradição da medicina ocidental, na qual o
              médico deve visar antes de tudo o bem do paciente - definido
              pelas luzes da ciência , sendo que o principal desses bens é a
              vida; logo, o compromisso maior do médico é o de envidar todos
              os esforços e empregar todos os meios técnicos tornados viáveis
              pela ciência e pela tecnologia para manter vivo o paciente, mesmo
              contra a vontade deste último. O princípio da autonomia, por sua
              vez, surge dentro da tradição liberal do pensamento político e
              jurídico, que por sua vez deita suas raízes no pensamento
              kantiano; o indivíduo, dentro da concepção liberal, é um
              sujeito de direitos, que garantem o exercício de sua autonomia,
              sendo que como paciente deve, também, ter aqueles direitos, que o
              situam como pessoa e membro de uma comunidade, advindo dessa
              constatação, o direito do paciente decidir, como sujeito de
              direito, na relação médico-paciente. O princípio da justiça
              recebe a sua primeira formulação no bojo da crise do estado
              liberal clássico, quando o processo de democratização dessa
              forma de organização política passa a considerar a sociedade e
              o Estado como tendo a obrigação de garantir a todos os cidadãos
              o direito à saúde; essa obrigação torna o Estado e a sociedade
              agentes e responsáveis na promoção da saúde do indivíduo,
              achando-se estabelecida na Constituição brasileira de 1998, nos
              seguintes termos: "a saúde é direito de todos e dever do
              Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
              visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
              acesso universal igualitário às ações e serviços para sua
              promoção, proteção e recuperação" ( art. 196).
              Torna-se, assim, evidente que a aplicação literal dos três
              princípios da bioética de modo mecânico, sem que sejam
              discutidos os seus fundamentos éticos, podem tornar-se
              conflitivos, contraditórios e auto-excludentes. 
              Em cada princípio, privilegia-se um elemento diferente, sendo que
              a prática deformada de cada um desses princípios provoca situações
              sociais injustas. Assim, o princípio da beneficência pode
              facilmente transmutar-se em paternalismo médico, tendo sido
              contra esta característica da prática médica dos últimos cem
              anos, que se manifestou o movimento social dos anos sessenta. O
              princípio da autonomia, por sua vez, pode instaurar o reino da
              anarquia nas relações entre médico e paciente, isto
              acontecendo, quando a liberdade individual passa a representar o
              escudo atrás do qual o paciente impede que o médico exerça a
              sua função. O princípio da justiça, por fim, corre o risco de
              transformar-se na sua própria caricatura nas mãos da burocracia
              estatal, sob a forma de paternalismo e clientelismo político. O
              que se encontra por detrás da aplicação mecânica desses princípios,
              como se fosse possível a sua aplicação conjunta, é a tentativa
              de justificar-se a hegemonia de uma das três dimensões da saúde
              na sociedade contemporânea, o paciente, o médico e a sociedade.
              Os três princípios sòmente adquirem sentido lógico se forem
              considerados como referentes a cada um dos agentes envolvidos: a
              autonomia, referida ao indivíduo, a beneficência ao médico e a
              justiça à sociedade e ao Estado. A aplicação isolada de cada
              um desses princípios, no entanto, terminará por consagrar as
              situações sociais injustas a que fizemos referência. Torna-se,
              então, necessário procurar um modelo que não permita a
              hegemonia de um princípio sobre os dois outros, mas que assegure
              a justificação, a integração e a interpretação dos três
              princípios. Em outras palavras, como fazer com que a autonomia
              seja preservada, a solidariedade garantida e a justiça promovida. 
               
               
              
              6. A agenda temática da bioética 
               
              A aplicação desses princípios tem sido realizada em contextos
              específicos, o que possibilita a elaboração de uma agenda temática
              da bioética da qual poderemos remontar e procurar solucionar o
              problema da contradição, considerando-se que quando nos
              referimos a princípios, estamos fazendo referência a parâmetros,
              que mesmo sendo auto-excludentes, referem-se a determinados temas.
              Na bioética, esses princípios têm por objeto material o
              processo de avaliação ética da pesquisa e das tecnologias da
              biologia e da medicina contemporânea. Os parâmetros, no entanto,
              exigem para a sua materialização, uma contextualização temática,
              que delimite o universo próprio onde deverão ser aplicados.
              Parizeau (1996) sistematizou a temática do discurso da bioética
              nos seguintes itens: 
              a) a relação médico-paciente, em
              grande parte contemplada nos códigos de ética médica; 
              b) o problema da regulamentação das experiências e pesquisas
              com os seres humanos; 
              c) a análise do ponto de vista ético das técnicas concernentes
              à procriação e à morte tranqüila ou eutanásia; 
              d) a análise ética das intervenções sobre o corpo humano
              (transplantes de órgãos e tecidos, medicina esportiva e
              transexualismo); 
              e) a análise ética das intervenções sobre o patrimônio genético
              da pessoa humana; 
              f) a análise ética das repercussões do emprego das técnicas de
              manipulação da personalidade e intervenção sobre o cérebro (
              psicocirurgia e contrôle comportamental da psiquiatria); 
              g) a avaliação ética das técnicas genéticas e suas repercussões
              no mundo animal. 
              Vemos como a temática cobre uma
              ampla gama de questões que se iniciam no âmbito exclusivo do
              indivíduo e sua saúde e termina nos debates sobre as repercussões
              sociais de decisões, também de caráter individual ( como
              aquelas que envolvem os transexuais). Ressente-se, entretanto,
              essa agenda temática daqueles problemas, a que faz referência
              Hans-Georg Gadamer, que são os problemas relativos à saúde como
              bem do indivíduo e bem da coletividade. Somente nos últimos
              anos, a bioética começou a considerar, além da análise das
              decisões que envolvem a escolha do tipo de pesquisas a serem
              financiadas com recursos públicos, o problema relativo às políticas
              públicas de saúde e previdência, que testam o princípio de
              justiça e o princípio da autonomia. A análise dos escolhas
              morais, que se encontram subentendidas na definição de políticas
              públicas é um tema, que por si mesmo, exige um tratamento teórico
              à parte, pois encontram-se, também, nesse terreno, dados empíricos
              necessários para a avaliação das possibilidades dos princípios
              da bioética. 
               
              
              7. Duas respostas aos temas da bioética 
               
              As questões políticas referentes à bioética foram respondidas
              de forma diversas pelas duas grandes linhas do pensamento
              contemporâneo: liberais e conservadores. Para que se possa, de
              uma forma geral, verificar onde se encontram as diferenças entre
              os dois grandes grupos doutrinários do cenário político da
              modernidade, torna-se necessário situar as políticas advogadas,
              por ambas as correntes do pensamento social, no quadro de três
              perguntas básicas, cujas respostas servem para diferenciar os
              pensadores liberais dos pensadores conservadores ( Fagot-Largeault,
              1996: 33 e segs.). Essas perguntas representam o cerne da indagação
              bioética contemporânea e em função delas encontramos, grosso
              modo, respostas que têm a ver com a concepção do homem e da
              sociedade, como foram formuladas pelo pensamento social. 
              As perguntas que constituem o cerne
              da temática política da bioética são as seguintes: 
              a) o que é necessário evitar? 
              b) o que é necessário promover e apoiar? 
              c) qual o estatuto do corpo humano? 
              As respostas às três questões acima referidas traçaram o
              quadro teórico dentro do qual desenvolveu-se o debate sobre a bioética
              nos tempos atuais, quadro este que deverá informar ou
              complementar o trabalho do legislador e do julgador. À primeira
              pergunta, os conservadores responderam com a afirmação de que não
              se encontra em discussão a liberdade dos indivíduos, mas sim os
              problemas individuais e sociais, provocados pelas novas
              tecnologias, ainda não devidamente controladas e conhecidas em
              suas conseqüências pelo homem. Sustentam os conservadores que,
              no caso de dúvida, deve-se paralisar as experiências e
              transferir para especialistas bem intencionados a decisão e o
              contrôle final do processo científico e tecnológico. 
              Os liberais, por sua vez, respondem
              colocando em situação privilegiada o indivíduo, acima de
              considerações de caráter público ou social. Considerado como
              agente moral, cuja a liberdade constitui a sua dimensão
              principal, o indivíduo é o senhor absoluto dos seus destinos, não
              devendo sujeitar-se às imposições dos detentores do
              conhecimento ou do poder público; trata-se, portanto, para os
              liberais, de evitar qualquer restrição ao exercício pleno da
              liberdade individual. Em torno da idéia de pessoa e de liberdade,
              a boa doutrina liberal ( Engelhardt, ob.cit.) sustenta que, por
              tratar-se da pessoa humana, e em função dela, é que se deverão
              aplicar os princípios da bioética; e da pessoa humana que vive
              numa sociedade democrática e pluralista, significando, assim, que
              os princípios da bioética supõem a existência de uma sociedade
              liberal. Essa objetivação dos princípios da bioética, para
              Engelhardt, sòmente pode ocorrer na sociedade plural, estruturada
              através de uma ordem política liberal, sendo essa a razão pela
              qual, em seu pensamento, o princípio da autonomia torna-se hegemônico
              em relação aos dois outros princípios da bioética. A solução
              política liberal deixa, então, para o indivíduo, através de
              seus representantes políticos, a tarefa de avaliar o progresso da
              ciência e da tecnologia, cujo ritmo e objetivos deverão estar
              sujeitos ao contrôle da sociedade civil. 
              A segunda questão de caráter geral que se coloca para a bioética
              - o que se deve fazer -, também, é respondida de forma diversa
              pelas duas correntes de pensamento. O pensamento liberal sustenta
              que se deve promover a tolerância e assegurar a resolução pacífica
              dos conflitos. Os conservadores consideram, por outro lado, que se
              torna necessário aprofundar os debates sobre as descobertas e
              tecnologias da genética, antes que a ciência humana aventure-se
              por campos do conhecimento ainda pouco conhecidos; esses debates
              devem obedecer a uma estratégia política de dissuasão, através
              do medo, a chamada "heurística do medo" ( Hottois,
              1993:23). Assim, na concepção conservadora seria exorcizada a
              compulsão tecnicista da contemporaneidade, que, ao ver de
              importantes críticos da modernidade, transformou o homem de
              sujeito em objeto da técnica. 
              Tanto liberais, como conservadores, entendem o estatuto do corpo
              do indivíduo de forma diferente, sendo que esse entendimento
              resulta de uma concepção, também diversa, da natureza ontológica
              do ser humano. Para os conservadores, o homem estrutura-se em função
              de uma unidade orgânica, na qual a liberdade constitui a espinha
              dorsal, essencial para o equilíbrio e aperfeiçoamento da pessoa
              humana. Por essa razão, a natureza biológica do ser humano é
              facilmente atingida pelas temidas agressões tecnológicas, cujas
              conseqüências acabam atentando contra a própria natureza
              humana. Sustentam os conservadores ser necessário suspender essas
              experiências, que resultam em violações desse espaço primitivo
              de liberdade natural, para que se possa recuperar a unidade
              natural do indivíduo. Os liberais respondem à questão sobre o
              estatuto do ser humano relacionando-o com uma das formas naturais
              que garantem o exercício da liberdade; na verdade, os liberais,
              pelas próprias caraterísticas do seu pensamento, não têm uma
              concepção unificada do ser humano, a não ser a remissão à
              liberdade. 
              As diferentes respostas, dadas por liberais e conservadores,
              permitem determinar qual o entendimento do homem e da sociedade,
              que se encontra subjacente em cada uma das posições e quais as
              conseqüências para o mundo da nova biologia. A posição
              conservadora parte da suposição de que as aplicações dos novos
              conhecimentos, principalmente genéticos, devem ser encarados com
              cautela. Não se encontrando no contexto das biotecnologias parâmetros
              seguros, que possam servir de referência para pesquisas, ainda
              embrionárias, deve-se procurar preservar a todo o custo a esfera
              da pessoa, considerada como um todo orgânico. Propõem os
              conservadores, o estabelecimento de uma moratória nessas
              pesquisas, impedindo-se, assim, que a natureza humana seja
              desnaturada (Jonas, 1980:141 e segs.). Essa moratória serviria,
              portanto, para resguardar a pessoa humana de tecnologias que poderão
              ou não modificar a própria natureza humana, pois, sustentam os
              conservadores, ninguém conhece com precisão os resultados e as
              repercussões, principalmente, da engenharia genética. O temor de
              um progresso científico e tecnológico, que se desenvolvia em
              ritmo acelerado, a partir de 1950, fez mesmo com que o argumento
              contrário ao prosseguimento das pesquisas fosse aceito pela
              comunidade científica, durante a reunião de Asilomar, em 1974,
              quando cientistas concordaram em estabelecer uma moratória nas
              pesquisas sobre a recombinação artificial com vistas à transferência
              de material genético para uma célula receptora. Em 1975, ainda
              em Asilomar, a moratória foi suspensa, retomando-se as pesquisas.
              Constatamos, assim, como para o pensamento conservador o
              importante, tendo em vista a imprevisibilidade do novo mundo que
              se vai abrindo para o conhecimento humano, é evitar o risco
              tecnológico, ainda que custe novos avanços na ciência. 
              A posição liberal sustenta não ser possível determinar uma
              definição do bom e do mal de forma abstrata e com expressão
              universal. Em conseqüência, o importante nas questões da bioética,
              como em todos os demais problemas sociais, consistirá na preservação
              da liberdade de escolha e do debate público, permitindo-se que
              cada indivíduo e comunidade estabeleçam seus próprios padrões
              de contrôle (Charlesworth, 1993: 10 e segs.). Os liberais
              consideram mesmo que esta não é uma questão essencial, pois
              cada sociedade, em princípio, deve determinar os seus próprios
              parâmetros normativos, seja do ponto de vista moral, seja sob o
              aspecto jurídico. 
               
               
              
              8. Da bioética aos direitos humanos 
               
              A bioética, portanto, não se identifica com a "ética"
              médica, como esta foi entendida durante séculos, nem se
              constitui em um corpus de princípios, interpretados de
              forma uniforme, por diferentes correntes do pensamento social;
              trata-se de uma área de conhecimento, cujas raízes encontram-se
              nos dados fornecidos pelas ciências biológicas, que fornecem o
              material empírico necessário para a reflexão propriamente filosófica.
              Desde a definição de Potter, que pretendia construir um projeto
              para garantir a humanização das ciências biológicas com vistas
              à melhoria da qualidade de vida, o conceito sofreu profundas
              modificações. A evolução da bioética processou-se em função
              da necessidade de pensar-se o avanço científico, levando-se em
              conta como a intervenção do homem na natureza exige a construção
              de uma ética filosófica, que possa ter a pretensão de
              universalidade, mas que responda às ameaças reais ou imaginadas
              à humanidade, conseqüência de novas descobertas e tecnologias;
              essa evolução caminhou, também, no sentido da construção de
              um discurso ético, dentro do qual possam encaminhar-se, e achar
              solução, os conflitos que ocorrem em virtude das novas relações
              sociais e econômicas, nascidas dessas descobertas e até então
              desconhecidas pelo ser humano. 
              Na atualidade, o campo da bioética extrapola do âmbito restrito
              das ciências da saúde e apresenta uma dupla face. De um lado,
              incorpora as novas formas da responsabilidade, principalmente a
              responsabilidade com as gerações futuras, como foram vistas por
              Hans Jonas; mas também aceita a idéia kantiana do respeito à
              pessoa e do respeito ao conhecimento. A bioética surge, assim,
              como o mais novo e complexo ramo da ética filosófica, pois trata
              da responsabilidade em relação à humanidade do futuro e, ao
              mesmo tempo, considera a pessoa humana como detentora de direitos
              inalienáveis. Contribuem, assim, para estabelecer os seus
              fundamentos duas linhas do pensamento contemporâneo: a primeira,
              peculiar à tradição liberal, onde se proclamam e afirmam os
              direitos da pessoa humana, como limites à ação do Estado e dos
              demais indivíduos; a segunda, socorre-se de uma nova linha do
              pensamento filosófico, originária da primeira, mas que passa a
              pensar a ação do indivíduo, não somente no quadro de suas
              conseqüências imediatas, mas principalmente em função de suas
              repercussões futuras. Trata-se, portanto, de construir uma ética
              que irá materializar-se em novas responsabilidades. 
              
              Dentre os diferentes objetos da regulação jurídica, o problema
              nodal do direito - a questão da responsabilidade -, por exemplo,
              deverá sofrer uma profunda reavaliação, quando lida sob essa
              perspectiva ética, pois irá ultrapassar a concepção restrita e
              ineficiente da responsabilidade civil e penal do direito liberal.
              Nesse sentido, torna-se necessário abandonar o conceito de uma
              responsabilidade jurídica, comprometida em determinar uma
              compensação ex post facto, e procurar construir uma nova
              responsabilidade, a ser formalizada juridicamente, fundada no
              conceito mais abrangente de responsabilidade moral. Nas palavras
              de Hans Jonas, a civilização tecnocientífica, que tem na
              engenharia genética uma de suas mais importantes realizações,
              encontra-se eticamente à deriva, sendo que a sobrevivência do
              ser humano depende da construção de uma nova ética. Essa "ética
              do futuro", escreve Jonas, "não designa a ética no
              futuro - uma ética futura concebida na atualidade para os nossos
              descendentes futuros -, mas sim uma ética da atualidade que se
              preocupa com o futuro e pretende protege-lo, para os
              nossos descendentes, das conseqüências de nossa ação
              presente" ( Jonas, 1998: 69). Essa responsabilidade moral, núcleo
              da ética do futuro, não é, portanto, a responsabilidade civil
              clássica, determinada pelo cálculo do que foi feito, mas pela
              "determinação daquilo que se irá fazer; um conceito em
              virtude do qual eu me sinto responsável, portanto, não em
              primeiro lugar por meu comportamento e suas conseqüências, mas
              da coisa que reivindica o meu agir" ( Jonas, 1995:
              132). Essa é a idéia fundante das novas responsabilidades, que
              se torna característica quando referidas às coisas a que se
              destinam o agir humano, seja o corpo humano, os animais ou o equilíbrio
              ecológico. 
              
              Por ambas as razões, o tema da bioética extrapolou da área
              restrita dos hospitais e da própria profissão médica e
              tornou-se tema a ser analisado na espaço público democrático.
              Tratando de tema essencial para a sobrevivência da humanidade, e
              que envolve liberdades, direitos e deveres da pessoa, da sociedade
              e do Estado, a bioética transformou-se na mais recente fonte de
              direitos humanos. Esse trânsito da bioética para o
              biodireito, a nível internacional, materializou-se através da Declaração
              Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, elaborada
              pelo Comitê de Especialistas Governamentais da UNESCO, tornada pública
              em 11 de novembro de 1997. O texto, assinado por 186 países-membros
              da UNESCO - portanto, fonte legitimadora do documento - estabelece
              os limites éticos a serem obedecidos nas pesquisas genéticas,
              especificamente as pesquisas relativas à intervenção sobre o
              patrimônio genético do ser humano. A natureza ética e jurídica
              do citado documento, como veremos adiante, remete-nos à constatação
              de que é necessário, para que ocorra a passagem da ordem ética
              para a ordem jurídica, a explicitação de uma norma, mas que
              tenha características de universalidade, próprias do discurso ético.
              Não se trata, portanto, de uma simples formalização jurídica
              de princípios, estabelecidos por um grupo de sábios ou mesmo
              proclamados por um legislador religiosos ou moral. O biodireito
              pressupõe a elaboração de uma categoria intermediária , que se
              materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos
              racionais e legitimadores. 
              
              A formulação de uma nova categoria de direitos humanos - a dos
              direitos do ser humano no campo da biologia e da genética -
              responde à indagação central do pensamento social contemporâneo:
              a possibilidade da universalização de direitos morais, fundados
              numa concepção ética do Direito e do Estado, vale dizer, na
              construção de uma ordem normativa construída através do diálogo
              racional entre pessoas livres. Neste contexto, a possibilidade da
              bioética depende, como sustentam os pensadores liberais, da existência
              de uma sociedade democrática, pois se assim não for os valores e
              princípios bioéticos irão expressar a vontade dos cientistas,
              ou do Estado, e não de indivíduos livres e autônomos. Essa
              sociedade, entretanto, necessita de mecanismos institucionais que
              assegurem a manifestação de diferentes concepções religiosas,
              políticas e sociais, sem as quais torna-se inviável o discurso
              ético. 
              
              Como verificamos acima, os princípios provocam na sua aplicação
              antinomias, que sòmente podem ser racionalmente resolvidas na
              medida em que se puder integrar os três princípios e não
              privilegiar-se um deles. A formulação canônica, pela própria
              comunidade científica, desses princípios, e a sua aplicação
              sem que haja uma intermediação entre o patamar ético e a prática
              social, termina por consagrar uma interpretação subjetiva e,
              portanto, relativista do sentido e alcance dos principia. Esses
              princípios, entretanto, serviram como inspiração na implementação
              de uma nova categoria de direito humanos, que procura,
              precisamente, suprir essa lacuna ou vazio existente entre a esfera
              ética e as normas jurídicas constitutivas do biodireito. Em
              outras palavras, o biodireito deixado à mercê do subjetivismo
              procura amparar-se em princípios bioéticos, que como tal
              necessitam de uma objetivação com características de
              universalidade. Estamos tratando de uma forma de direito que se
              legitima racionalmente e pela expressão livre de autonomias numa
              sociedade democrática, o que pode ser identificado como um
              direito construído em função do exercício livre da razão,
              portanto, o que Kant chamou de "direito cosmopolita". Os
              princípios da bioética deixam, então, de representar determinações
              canônicas e passam a constituir uma forma de direito cosmopolita,
              que serão objetivados, através dos direitos humanos. A formulação
              encontrada na Declaração de 1997 permite comprovar a
              viabilidade desse trânsito entre a ética e o direito. O
              documento da UNESCO permite que se superem as dificuldades para a
              implementação de princípios éticos e de direitos, que têm uma
              natureza específica, pois pretendem estabelecer limites
              universais às legislações nacionais e políticas públicas de
              estados soberanos. Mantendo a necessária vocação universalista,
              a Declaração de 1997 estabelece, também, uma série de
              medidas, visando à promoção dos princípios expressos e às
              exigências a que se submetem os estados signatários, para a sua
              implementação. 
              
              A Declaração da UNESCO divide-se em grandes eixos temáticos.
              O tema da dignidade humana constitui o fundamento ético de todas
              as normas estabelecidas e do exercício dos direitos delas
              decorrentes ( arts. 1º - 4º). A Declaração situa os
              direitos das pessoas envolvidas como referencial obrigatório para
              as pesquisas e suas aplicações tecnológicas ( arts. 5º - 8º).
              O ser humano em função dessa dignidade natural, compartilhada
              por todos os seres humanos, independentemente de suas características
              genéticas, tem o direito de ser respeitado em sua singularidade e
              diversidade (art.2º, "a"). Outra conseqüência da
              identificação e materialização da dignidade humana, no
              respeito ao genoma, encontra-se na proibição de utilizá-lo para
              ganhos financeiros ( art. 4º ). 
              
              A regulação da pesquisa científica é tratada sob dois aspectos
              correlatos: o documento estabelece, como decorrência dos princípios
              e direitos anteriormente definidos, que a pesquisa e aplicações
              tecnológicas não poderão desrespeitar os direitos humanos, as
              liberdades fundamentais, a dignidade humana dos indivíduos e de
              grupos de pessoas. O documento não se restringe a determinar os
              parâmetros legais que visam proteger diretamente a pessoa humana
              nas pesquisas relacionadas com o genoma humano, mas avança
              procurando estabelecer as condições para o exercício da
              atividade científica ao prever responsabilidades, tanto dos
              cientistas e pesquisadores envolvidos nessas pesquisas, como dos
              Estados ( arts.10º - 16º). 
              Os deveres de solidariedade e cooperação internacional, no
              contexto da internacionalização crescente do conhecimento científico,
              torna-se tema necessário na medida em que os princípios éticos
              e direitos afirmados pela Declaração, tornar-se-ão
              vazios de conteúdo prático caso não exista um compromisso dos
              Estados em promover a solidariedade entre indivíduos e grupos
              populacionais. A cooperação internacional é prevista na Declaração
              sob quatro formas: através da avaliação dos riscos e benefícios
              das pesquisas com o genoma humano, da promoção de pesquisas
              sobre biologia e genética humana, levando-se em conta os
              problemas específicos dos diferentes países, da utilização
              dessas pesquisas em favor do progresso econômico e social e
              assegurando-se o livre intercâmbio de conhecimentos e informações
              nas áreas de biologia, genética e medicina ( art. 19º). 
              Os eixos temáticos são desenvolvidos na Declaração
              através, em primeiro lugar, da explicitação de princípios éticos,
              e em segundo, prevendo instrumentos capazes da assegurar a observância
              desses princípios e dos direitos deles decorrentes pela
              comunidade internacional, pelos estados e pela comunidade científica.
              A originalidade do ponto de vista da teoria do direito encontrada
              na Declaração do Genoma Humano reside, assim, na reunião, em um
              só texto, de princípios bioéticos e normas de regulação, que
              obrigam o sistema jurídico internacional e nacional. 
              
              O objetivo principal da Declaração consiste em estabelecer princípios
              e prever mecanismos que resguardem o genoma humano, considerado
              como fundamento da "unidade fundamental de todos os membros
              da família humana" ( art. 1º). O genoma é elevado,
              portanto, a uma categoria universal, definidora da própria
              humanidade. Essa definição, entretanto, responde à necessidade
              de se estabelecer um padrão que possa garantir a natureza comum
              para homens de diferentes credos, etnias e convicções,
              tornando-os iguais e, portanto, sujeitos de um mesmo conjunto de
              direitos. Encontra-se, assim, um referencial seguro para que se
              possa elaborar uma normatização com características universais
              e capaz, portanto, de ser definida como um direito de toda a
              humanidade. 
              
              Os direitos da pessoa são encarados pela Declaração como
              repercutindo no biodireito a idéia mais geral dos direitos
              humanos. O texto da UNESCO propõe uma série de medidas que têm
              por objetivo preservar a autonomia e a saúde do indivíduo.
              Encontram-se nesses casos o princípio da dignidade do indivíduo,
              que se encontra no princípio bioético da autonomia, independente
              de suas características genéticas; e o princípio da
              irredutibilidade do ser humano ao determinismo genético, o que
              desmente as falácias dos diferentes argumentos racistas. O
              segundo princípio é exemplificado no documento da UNESCO, como
              instrumento de garantia da necessidade de permissão prévia para
              pesquisas, tratamento ou diagnóstico, e, também, da proteção
              contra a discriminação fundada em características genéticas. A
              preservação do caráter confidencial dos dados genéticos de uma
              pessoa representa uma outra face da aplicação do princípio bioético
              da autonomia, pois atribui à esfera dos direitos personalíssimos,
              informações e dados que possam ser usados para a prática da
              discriminação social e política. O ponto nevrálgico do
              documento da UNESCO reside, assim, na defesa do patrimônio genético
              dos indivíduos como constitutivo de uma base empírica na qual se
              pode construir uma ética e um direito cosmopolita, como previra
              Kant. 
              
              A Declaração Universal da UNESCO, de 1997, estabeleceu,
              assim, uma nova categoria de direitos humanos, o direito ao patrimônio
              genético e a todos os aspectos de sua manifestação. A concordância
              dos países signatários, através dos mecanismos próprios da
              sociedade democrática, legitima limites aos cidadãos, grupos
              sociais e ao próprio Estado, que se obriga em função de normas
              da comunidade internacional. Esse documento internacional
              representa, também, uma tentativa de criar uma ordem ético-jurídica
              intermediária entre os princípios da bioética e a ordem jurídica
              positiva, o que irá obrigar os países signatários, como no caso
              o Brasil a incorporar as suas disposições no corpo do direito
              nacional ( Constituição brasileira de 1988, art. 5 º, § 2º). 
              A questão, portanto, da necessária complementaridade entre os
              princípios éticos e as normas jurídicas torna-se explícita, no
              caso da legislação sobre a genética, em virtude da incorporação
              ao direito nacional, por força da norma constitucional, de normas
              internacionais, que refletem valores éticos e que se destinam a
              todos os povos. A caracterização dos direitos relativos ao
              genoma humano como direitos humanos torna, ainda mais evidente,
              como o documento da UNESCO vem preencher um vácuo normativo no
              contexto do direito nacional. Isto significa que a legislação
              brasileira sobre engenharia genética - Lei nº 8 501, de 30 de
              novembro de 1992; Lei nº 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei nº
              9 434, de 04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos,
              regulamentos e resoluções do Conselho Nacional de Saúde e do
              Conselho Federal de Medicina, inclusive o Código de Ética Médica
              - dependerá para o seu aperfeiçoamento de uma análise e um
              amplo debate sobre os princípios e os direitos estabelecidos na Declaração
              Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos. Fará parte
              integrante desse processo de aperfeiçoamento legislativo, o
              entendimento, tanto pelo legislador, como pelo magistrado, de que
              existe uma complementaridade entre a ética e o direito. A prática
              social acha-se, progressivamente, modificada pelas novas
              tecnologias, ocupando lugar de destaque nesse processo o papel da
              ética, que obriga a revisão de conceitos da doutrina jurídica
              clássica e a conseqüente revolução paradigmática na teoria do
              direito. 
              As questões suscitadas pela ciência
              biológica tornaram evidentes às relações necessárias, que
              acontecem no seio de uma sociedade democrática e pluralista,
              entre os valores morais e o biodireito. O campo de conhecimento
              aberto abrange uma vasta gama de possibilidades. Os problemas
              suscitados não se referem sòmente à questão da vida e suas
              condições, mas também aqueles relativos ao fim da vida, que
              encontra nas diversas legislações relativas à morte assistida e
              à eutanásia motivo de sérias e inquietantes indagações
              morais. Essas interrogações tornam-se matéria a ser julgada
              pelos tribunais e debatida pela sociedade civil, sendo necessário
              a utilização de critérios éticos comuns, vale dizer racionais,
              para a busca de soluções. Nesse quadro, a identificação dos
              direitos do genoma humano, como sendo uma forma de direitos
              humanos, constituiu um progresso, pois forneceu conteúdos jurídicos
              a princípios éticos, e, por outro lado, assegurou, também, uma
              fundamentação moral para a ordem jurídica do biodireito. Essa
              relação de complementaridade, entretanto, somente poderá
              efetivar-se na medida em que se utilize uma idéia como a do
              direito cosmopolita, considerado, não como uma forma sofisticada
              de direito das gentes, mas sim como um modelo jurídico, que
              apresenta um conteúdo ético original, característica que se
              encontrava implícita na concepção do seu primeiro formulador.
              Os direitos humanos, assim entendidos, constituem a formalização
              desse direito cosmopolita, primeira manifestação de uma leitura
              ética do direito e do Estado. Verifica-se, então, como a aplicação
              da idéia do direito cosmopolita, permite que se recupere o
              sentido ético original da ordem jurídica no pensamento kantiano.
              A idéia do direito cosmopolita serve, portanto, de categoria
              racional, para que se possa realizar um enxerto propriamente ético
              nos direitos humanos. O desafio da ética no campo das ciências e
              tecnologias biológicas representou, em última análise, um
              momento privilegiado, onde a hipótese da complementaridade entre
              a ética e o direito pôde ser testada e provada, através da
              explicitação dos princípios bioéticos sob a forma de direitos
              humanos. 
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