Crime
organizado
Vicente
Cernicchiaro
O crime
surgiu com a sociedade. Substancialmente, é conduta
negativa. Formalmente, o que a lei definir. Não
significa, entretanto, o tipo penal esgotar todas as
considerações. O Direito Penal (dogmaticamente)
relaciona-se com outras considerações científicas que têm
também o crime como objeto. A Criminologia moderna busca
as causas da delinqüência, sugere modelos para impedir a
conduta delituosa e, por fim, evitar a reincidência. Em
terceiro plano, a política criminal se faz presente. Não
se concebe mais a norma ser analisada formalmente, sem
indagar a repercussão social da interpretação.
Está
superado o momento histórico do tecnicismo jurídico
(significativa a afirmação de a Filosofia ser dos filósofos
e o fato social interessar apenas aos sociólogos). O
crime é fenômeno social. O juiz, no momento da sentença,
precisa pensar o caso concreto, suas causas e conseqüências.
A não ser assim, promoverá raciocínio próprio da
Escola da Exegese que teve a pretensão (na verdade,
simples miragem) de a lei formal haver trazido todas as
soluções jurídicas.
O delito,
outrossim, revela várias espécies. Hoje o objeto jurídico
é o critério predominante.
Em se
observando o fenômeno na sociedade, ganha espaço a
classificação: criminalidade de massa e criminalidade
organizada. A primeira projeta a idéia de infrações
penais impulsionadas, na maioria dos casos, por circunstância
de oportunidade. A segunda, ao contrário, difusa, sem vítimas
individuais; o dano não é restrito a uma ou mais
pessoas. Alcança toda a sociedade.
O conceito
de crime organizado ainda não está assente. A doutrina,
no entanto, evidencia inclinação para as referidas
características, sem desprezar a tendência
transnacional. Ainda: hierarquia dos integrantes, como se
fosse organização de empresa, responsabilidades
definidas, procedimentos rígidos, divisão territorial.
Autores acrescentam preocupação permanente de fazer
cessar a eficácia dos controles formais de combate à
criminalidade. Em conseqüência, busca atrair agentes do
Estado para anular a atuação, obtendo, assim, verdadeira
impunidade. Ao lado da insinuação da corrupção, tantas
vezes, valem-se da violência a fim de, pelo silêncio, não
serem importunados.
O
desenvolvimento do crime organizado, tantas vezes, é
encoberto por atividade comercial lícita. Com a aparência,
busca esconder a realidade. Acentua-se, ainda, explorando
atividade proibida que, no entanto, não recebe censura da
sociedade. Nos Estados Unidos, a chamada Lei Seca é
sempre mostrada como exemplo. Quando proibida a venda de
bebida alcoólica, marginalmente, era oferecida; revogada,
tornando lícito o comércio, podendo o comerciante
legalmente estabelecido ofertá-la à população, o ilícito
deixou de existir.
Urge
incentivar a descriminação do uso de entorpecentes.
Hoje, são vendidos ilicitamente e a preço extorsivo.
Isso explica o incremento do tráfico (internacionalizado)
e os lucros dos intermediários. Não se esqueça ainda,
sem receita para o Estado!
O combate
ao crime organizado reclama especial atenção à tendência
ao caráter transnacional. Não encontra obstáculo no
limite dos Estados. O trânsito internacional, diga-se
assim, ganha espaço cada vez maior com a globalização
da economia, o aperfeiçoamento dos meios de comunicação
e métodos internacionais de negócios, ensejando a
transferência de capitais com facilidade, burlando a
fiscalização oficial.
Não se
pode olvidar ainda um ponto importantíssimo: o desequilíbrio
econômico das nações. O rompimento de fronteiras, a
aproximação das nações, mercados comuns, não obstante
a desigualdade econômica desses países, facilita o
intercâmbio criminoso. O tráfico de drogas, por exemplo,
faz a ponte de país produtor, de trânsito e de consumo.
Esses
grupos são dotados de poder econômico. Elegem
determinado produto, mantêm rede de agentes.
As legislações
de cada país são meticulosamente analisadas. Valem-se
dessas leis. Sabido, há países que, dado não disporem
de montadoras de veículos, facilitam a entrada de automóveis,
caminhões e tratores, fechando os olhos quando ali
ingressam. De outro lado, dificultam, ou não envidam
esforços para restituí-los ao local de origem.
A chamada
"lavagem de dinheiro", então, torna-se conseqüência.O
produto da delinqüência, o lucro, enfim, não pode
aparecer de um momento para outro. O depósito é efetuado
nos chamados paraísos fiscais. Esses, por sua vez, têm
de contar com a tolerância do respectivo país. Tantas
vezes interessados em incrementar os depósitos,
praticamente o grande "produto nacional".
O crime
organizado, portanto, não se confunde com o crime de
quadrilha ou bando (CP art. 288). Aqui, sem dúvida, há
concerto, plano de pessoas para cometer crimes. Todavia,
diverge fundalmentalmente quanto ao modo de agir e aos
efeitos que produz, repercutindo na estrutura do delito.
O crime
organizado transnacional preocupa a ONU; a sua Comissão
de Prevenção do Crime e Justiça Penal está
desenvolvendo estudos para impor sanções a países que,
deliberada ou negligentemente, colaboram com esses grupos
da deliqüência. Além de recomendações, estudam sanções
econômicas para os países negligentes.
A
criminalidade tradicional deixou de ser a grande preocupação.
Os grupos organizados, ao contrário, ganham as fronteiras
e difundem, por meios legais, as ações delituosas.
O Brasil
editou a Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995, que Dispõe
sobre a utilização de meios operacionais para prevenção
e repressão de ações praticadas por organizações
criminosas.
O art. 1º
menciona regular meios de provas e investigatórios que
versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou
bando.
Esse texto
não se volta, especificamente, para a repressão ao crime
organizado. Repita-se: não se identifica com a quadrilha
ou bando.
Mais
recentemente, foram publicadas duas leis, estas sim, mais
próximas da referida deliqüência. A Lei n. 9.437, de 20
de fevereiro de 1997, relativa ao porte e uso de arma de
fogo e a Lei n. 9.426/96, que reformulou parte dos crimes
contra o patrimônio, conferindo especial atenção quando
o objeto material for automóvel para ser remetido para o
exterior, ou destinar-se ao desmancho para ocultar a
origem, ou promover a venda dos componentes.
A ONU, na
reunião de maio, em Viena, buscou registrar conceito de
crime organizado transnacional. Não houve consenso.
Interferem vários interesses. O fato, e aqui não é
diferente, acabará por impor a norma. Aliás, é urgente
que o faça!
Vicente Cernicchiaro
é Ministro do Superior Tribunal de Justiça.
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