Quais
os limites e possibilidades da cidadania planetária?
Virgínia Vargas*
Ao longo do processo que representou
a luta contra a ditadura de Fujimori e em prol da democracia,
há um fator que é muito importante: a globalização, que é uma
ameaça e uma promessa. Ela nos permite realizar uma série de
outras lutas, como estamos fazendo agora, e é um terreno de
disputa, como, por exemplo, a disputa entre Davos e nós. Estamos
disputando conteúdos e orientações relacionados à globalização.
Há mudanças na forma de questionar a tradição, as formas arcaicas,
há uma nova percepção política ampliada para o cotidiano, e
essas mudanças alteram as formas pelas quais se constroem as
identidades nacionais. Elas obrigam a encontrar novas formas
de interpretar e gerar respostas criativas e podem ser a base
da construção de cidadanias globais.
Uma das características fundamentais
da cidadania é o fato de ser uma categoria permanentemente em
construção, num processo dinâmico que às vezes anda para trás,
perde o controle. Por exemplo, na América Latina os políticos
estão adquirindo um novo valor depois das ditaduras; os direitos
humanos se perderam com o neoliberalismo, mas continuam sendo
uma fonte fundamental de reivindicações. O que perdemos a nível
nacional, começa a manifestar-se no plano global. Atualmente,
a cidadania contém um grande potencial de transformação porque
é justamente um terreno de disputa democrática entre a sociedade
civil e o Estado. Não só com o Estado, mas dentro da própria
sociedade civil, que obviamente tem traços conservadores e democráticos.
Se partirmos da cidadania como princípio mobilizador, poderemos
dar a devida importância à construção no plano global.
A expansão da cidadania sempre
correspondeu, nacionalmente, a um movimento de cima para baixo
e de baixo para cima – os direitos conquistados e os direitos
outorgados, com as devidas diferenças que em ambos existem.
Para a cidadania global, existem duas formas de construção:
as iniciativas que são geradas de cima para baixo, nos organismos
internacionais, as reuniões de populações etc. e as que vêm
de baixo para cima, geradas pela pressão dos movimentos sociais
que vão impondo a adoção de novos direitos à medida que os descobrem
e os exercem. Isto nos aproxima de uma característica que vai
ter uma importância fundamental na construção da cidadania global,
que é a dimensão objetiva e subjetiva.
A dimensão objetiva é a dos direitos
que de fato existem, que sempre são menos do que merecemos.
A dimensão subjetiva refere-se à auto-percepção dos cidadãos
enquanto merecedores ou não de direitos. Esses aspectos da dimensão
subjetiva de cidadania são a principal mola propulsora da formação
de cidadanias globais. Obviamente, existe a vertente política
oficial (das reuniões de cúpula dos governos) assim como as
vertentes dos movimentos sociais, e ambas correm paralelamente
numa disputa contestadora, não só porque seguem diferentes lógicas
e dinâmicas de atuação, mas porque se baseiam em diferentes
perspectivas. Por exemplo, as feministas encontraram na atual
dinâmica do Mercosul uma forma de recuperar sua participação,
o que já aconteceu na conferência de Viena, organizada pelas
Nações Unidas e representou um terreno de disputa e de comunicação
muito importante para as mulheres e para os grupos excluídos.
Pela primeira vez, os direitos das mulheres foram considerados
nessa conferência como direitos humanos. O mesmo se aplica aos
movimentos ecológicos: a presença dos ativistas do Greenpeace,
que agem a nível global e começaram a ganhar visibilidade e
a lançar luz sobre problemas ambientais.
É claro que tudo é muito incipiente,
mas os temas globais se caracterizam pela luta permanente de
setores importantes no mundo inteiro. A visibilidade do risco
da Amazônia não teria sido possível se pessoas como Chico Mendes
não tivessem lutado – apesar das dramáticas conseqüências da
sua luta – para chamar atenção para o problema. O que está acontecendo
com o comércio internacional não seria uma questão tão central
se, um ano atrás, não tivesse acontecido o que aconteceu. Todos
esses problemas foram gerando várias diretrizes, mas o importante
é a forma pela qual o local e o global vão se integrando e se
unindo, tentando revelar essas disputas. O caso Pinochet mostra
claramente como conseguimos que se fizesse justiça mundialmente,
o que trouxe repercussões nacionalmente, confrontando essa democracia
com o que havia no Chile.
Na perspectiva da cidadania global,
os direitos humanos têm uma importância fundamental, pois a
idéia que está por trás da cidadania global é a de que possamos
pensar num futuro que ofereça possibilidades para todas as pessoas,
em qualquer lugar do planeta. Este é um potencial imenso para
ação. Além disso, o espaço global oferece muitos méritos para
a cidadania. A experiência que nós, feministas, tivemos no caso
das mulheres indígenas foi totalmente transparente, mostrando
de que forma a cidadania que tinha sido totalmente rejeitada.
A situação começou a se ampliar e a se modificar pelas interações
que surgiram e as visibilidades legitimadoras que aconteceram
no espaço global, tanto por parte do Estado como da sociedade
civil. Obviamente as limitações são imensas e gostaria de me
concentrar nas limitações que nós, mulheres, enfrentamos, enquanto
parte da sociedade civil. As limitações de poder também ocorrem
entre as classes e entre os grupos étnicos, com as mulheres
e com todos os que estão envolvidos em uma relação de poder,
simbólico, político ou cultural. Não chegamos na forma pura
ao espaço global: sempre chegamos impregnados de todas as dificuldades
e reticências em relação à democracia que temos dentro nós e
de nossos países. A cidadania subjetiva também carrega essa
subjetividade tradicional. Uma pergunta democrática fundamental
é: como poderemos entrar nesse espaço global com pontos de partidas
democráticos consensuais? Isso é fundamental para a construção
de uma sociedade civil global, é um marco.
As relações de poder não estão
fora, mas dentro de nós, e se manifestam no plano global. Se
a diversidade parece se expressar de forma mais clara no espaço
global, não deixa de estar impregnada pela desigualdade. O espaço
global está minado pelo conservadorismo e deve ser concebido
como um habitat a ser constantemente construído. Nesse habitat,
os movimentos sociais globais expressam também suas pressões
internas e externas: negociam, revelam e reproduzem características
e práticas que tentam superar. Daí, a democratização do espaço
global ser fundamental.
A deterioração das identidades
foi inevitável por todos esses movimentos que citei anteriormente,
mas ao mesmo tempo abriu-se uma série de possibilidades para
as mulheres e homens. A globalização política permite a possibilidade
de articular a reflexão de princípios, um dos grandes temas
da sociedade, pois a fonte política de identidade mudou radicalmente.
Deixou de ser um ponto de referência nas horas de decisões cruciais.
Isso permitiu a possibilidade de assumir a democracia como eixo
de articulação com outras lutas. Essa foi uma das mudanças mais
importante do feminismo, que vai progredindo sem abandonar a
luta para a democratização da relação dos gêneros. Assim como
progride na luta contra o racismo e em todos os níveis pelo
reconhecimento e pela redistribuição do espaço global.
No começo do feminismo, quando
surgimos na luta contra as ditaduras, uma das nossas palavras
de ordem era: “O que é bom para as mulheres, é bom para a democracia”.
Já nos foi demonstrado que essa frase é justa, mas não é suficiente.
Modificamos essa frase, assim como a orientação das políticas
de aliança, para definir um novo parâmetro para as lutas feministas:
“O que não é bom para a democracia, não é bom para as mulheres”.
Assim, pensamos que os feminismos recuperaram a relação intrínseca
entre direitos e democracia. A partir daí surgiu uma constante
revisão da idéia de ampliar a cidadania das mulheres. Porque
essa cidadania não é totalmente assumida, apesar de estar em
permanente relação com a qualidade dos processos democráticos,
a nível nacional e global, e totalmente relacionada às forças
democráticas. Essa identidade descentralizada e enriquecida
deve ser a garantia das articulações entre o global e local.
Isso deixa claro que é importante avançar na formação do espaço
nacional, a partir de um corte democrático. Obviamente, não
podemos deixar de lado a disputa das mulheres com relação a
um terreno hegemônico – não só com relação aos Estados e grupos
anti-democráticos, mas também no próprio terreno democrático,
onde muitas vezes imperam discursos racistas, sexistas e anti-democráticos.
Como disse Frei Betto no primeiro dia, nenhuma política de mudança
pode acontecer se não forem modificadas as esferas privadas
e as relações de poder que ali foram concebidas.
Todos queremos um mundo novo, mas
temos que admitir que a mudança deve vir de baixo para cima
e é um desafio às formas e medidas autoritárias. A democracia
tem que ser exercida em diferentes níveis, no país e no global,
em casa e na cama, na esfera privada e pública. Só a partir
dessa visão ampliada de democracia será possível disputar uma
dinâmica cidadã estatal no global e no local. Essa é a contribuição
das mulheres e dos homens para a globalização de baixo para
cima e para a construção de uma cidadania democrática.
Virgínia Vargas* é peruana,
Centro da Mulher Peruana – Flora Tristan
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
|