A
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS
50 ANOS
Patricia Helena Massa Arzabe*
Potyguara Gildoassu Graciano**
A Declaração Universal
dos Direitos Humanos, que comemora em 1998 seu cinqüentenário, é um
documento novo, com conteúdo novo. Sua novidade reside no fato de
constituir o primeiro documento internacional a trazer por destinatários
não somente Estados, mas todas as pessoas de todos os Estados e territórios,
mesmo os não signatários da Declaração. Seu conteúdo é novo, pelo
conjunto de direitos que atribui, extravasando o campo dos direitos civis
e políticos para especificar também direitos econômicos, sociais e
culturais e pela universalidade, por postular a dignidade, a proteção e
a promoção dos direitos de todos os humanos do planeta. O fato é que o
discurso dos direitos humanos, que a Declaração proclama e
institucionaliza, é um fator deste século. Até então, a preocupação
com os direitos e a dignidade das pessoas independentemente de fronteiras
era presente somente na filosofia e na religião.
Exatamente ao proclamar os
direitos humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a
ser atingida por todos os povos e todas as nações, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos se manifesta como uma construção que vem
abrir o espaço para o tratamento universalizante das questões
relacionadas aos direitos humanos e às suas violações. É com a Declaração
que o discurso dos direitos humanos toma forma e conteúdo mais precisos,
passando a transitar cada vez com maior intensidade nos âmbitos político
e jurídico. Por discurso de direitos humanos quer-se designar aqui todo o
conjunto de instrumentos, técnicas, princípios e normas que, tanto na
esfera política como na esfera jurídica, possibilitam modificar pacífica
e racionalmente a realidade existente para a constituição de uma nova,
em que as relações entre as pessoas e entre estas e os Estados se dêm
com a observância dos elementos desse discurso.
Como um discurso novo,
assentado no 'reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis' e tendo esse
reconhecimento como 'fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo'(1), sua incorporação à praxis política e social apenas se
inicia.
A dificuldade dessa
incorporação explica-se pela natureza das relações de força que
caracterizam as relações políticas atuais, que não são exatamente
compatíveis com o respeito irrestrito aos primados da liberdade e da
igualdade. Porém, devido à incontestável relevância dos princípios
contidos na Declaração para as sociedades, é certo que sua incorporação
no âmbito jurídico está consolidada em todo o mundo, estando presentes
em quase todas as Constituições dos Estados.
Aproximação
histórica
Os antecedentes remotos da
Declaração da ONU de 1948 são encontrados, de um lado, no direito
internacional e no direto humanitário dos séculos XVIII e XIX e, de
outro em dois documentos relacionados, um ao processo histórico de mudança
de poder da França e o outro, à instituição de poder ligada à formação
do Estado norte-americano, a saber, a Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão, de 1789 e a Declaração de Independência dos Estados
Unidos, de 1776.
O tempo da Declaração
Francesa de 1789 coincide com o período da codificação das normas jurídicas,
sendo pouco anterior ao Código de Napoleão. Elías Díaz recorda que é
em fins do século XVIII que se opera a transformação do direito
natural, universal e absoluto em direito positivo, vindo a criar um vazio
valorativo, sob certo aspecto; visto que os ideais, uma vez positivados,
tornam-se realidade (ao menos parcialmente), para, então,
transformarem-se em ideologia(2). A Declaração Francesa veio afirmar
como dado aspectos culturais que ainda deveriam ser construídos,
qualificando como direitos naturais a liberdade, a propriedade e a
igualdade em direitos. Tais direitos não eram, de fato, naturais, e eram
acessíveis a uma minoria, posto que a estruturação da sociedade em
estamentos apenas acabara de ser abolida.
Diferentemente da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que se estende a todas as pessoas, sem
contudo, possuir originariamente caráter vinculante, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 efetivamente integra o direito
positivo francês - vigorando até a atualidade, ao lado da Constituição
francesa. Os traços comuns desta com a Declaração da ONU, como a afirmação
da liberdade, da propriedade, da segurança como direitos inerentes ao
homem, o princípio da legalidade, o princípio da reserva legal e o da
presunção de inocência, a liberdade de opinião e de crença, dentre
outros, são, sem dúvida, referências da linha comum que ligam os dois
documentos. Deve-se, todavia, lembrar, com o historiador Hobsbawm, que as
exigências do burguês é que foram delineadas na famosa Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Segundo afirma, "este
documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios
da nobreza, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e
igualitária. ‘Os homens nascem e vivem livres e iguais perante a
leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência
de distinções sociais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade
comum’. ... a declaração afirmava (posição contrária à hierarquia
da nobreza ou absolutismo) que ‘todos os cidadãos têm o direito de
colaborar na elaboração das leis pessoalmente ou por meio de seus
representantes’. E a assembléia representativa que ela vislumbrava como
órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembléia
democraticamente eleita. ... Uma monarquia constitucional baseada em uma
oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais
burgueses do que a república democrática que poderia parecer uma expressão
mais lógica de suas aspirações teóricas. De modo geral, o burguês
liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um
democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, de um Estado secular
com liberdades civis e garantias para a empresa privada e de um governo de
contribuintes e proprietários."(3) As palavras de Hobsbawm permitem
identificar que as intenções que nortearam a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão diferem em sentido e extensão da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, mas, uma vez que o texto escrito se
desprende de seu contexto, hoje lemos a Declaração Francesa de 1789 com
os olhos do nosso tempo.
Se, por um lado, a Declaração
Francesa, a Declaração de Direitos da Virgínia e a Declaração de
Independência Americana foram importantes para o desenvolvimento dessas
idéias especialmente dentro dos Estados, o mesmo não ocorre de maneira
direta para o direito internacional dos direitos humanos. A origem da
proliferação dos documentos internacionais de proteção de direitos
humanos está, principalmente, nos tratados internacionais bilaterais e
multilaterais para a abolição da escravatura e do comércio de escravos,
assim como nas normas de direito humanitário para o banimento de armas
cruéis e para a salvaguarda de prisioneiros de guerra, de feridos e de
civis(4).
As normas de Direito
Humanitário(5) começam a surgir no século XIX, para disciplinar o
tratamento das vítimas em conflitos armados, a proteção humanitária
aos militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos,
prisioneiros) e às populações civis(6), declarando limites ao uso da
violência em guerras.
A Liga das Nações,
materializada no Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, ao fim da
Primeira Guerra Mundial, veio abrir caminho para a proteção, de forma
mais ampla, aos direitos de pessoas, prevendo, também, o direito de petição
à Liga, reconhecido às populações dos Estados membros(7). Segundo
observa Louis Henkin, "com base nos precedentes do século XIX,
Estados dominantes pressionaram determinados Estados a aderir a
‘tratados de minorias’ garantidos pela Liga, nos quais os Estados
Partes assumiam obrigações de respeitar direitos de minorias étnicas,
nacionais ou religiosas determinadas"(8).
Este é o período a partir
do qual o direito internacional deixa de ter por objeto, com poucas exceções,
a relação somente entre Estados, passando a tratar, também, das pessoas
e de seus direitos relacionados à dignidade humana. Observa-se,
entretanto, que os tratados sobre minorias celebrados sob os auspícios da
Liga das Nações eram impostos seletivamente, em especial sobre nações
derrotadas em guerras e sobre Estados recém criados ou ampliados. Tais
documentos não previam, ao contrário do que se esperaria hoje, normas
gerais impondo o respeito às minorias também por parte dos Estados com
maior poder, assim como não exigiam que fossem respeitadas as pessoas que
não pertenciam às minorias especificadas ou às pertencentes à
maioria(9).
Muitas vezes esquecida no
seu papel de fixação e promoção de direitos humanos, a Organização
Internacional do Trabalho — OIT, constituída também por ocasião do
Tratado de Versalhes, tem desempenhado papel importante na defesa e promoção
de direitos relacionados ao trabalho, bem como de outros direitos econômicos,
sociais e culturais, por meio de programas específicos e de suas convenções,
estabelecendo definições e padrões mínimos sobre as condições de
exercício dos direitos de que trata. É no âmbito da OIT que se vê os
primeiros documentos internacionais de proteção à mulher, à criança,
aos indígenas e povos tribais, ao trabalhador, documentos contra a
discriminação racial, e de redução dos efeitos do desemprego, dentre
outros.
Vale notar que a introdução
de mecanismos internacionais de proteção de direitos humanos não se
deveu à ‘conscientização súbita’ da relevância e necessidade de
proteção desses direitos ou de um comprometimento ético dos Estados.
No caso da Liga das Nações,
como visto, a proteção de minorias estava voltada, via de regra, à
proteção daquelas que foram incorporadas a outros Estados ou que ficaram
sem vínculo a um Estado, como os curdos e palestinos, não significando
isto, por si, que outros grupos étnicos, lingüísticos ou nacionais
existentes, estariam igualmente protegidos, como de fato não estavam, a
exemplo dos ciganos.
No âmbito da OIT, pode-se
dizer que, ao tempo de sua criação, o socialismo estava em expansão na
Europa, justificando a implantação, nos Estados capitalistas, de medidas
de proteção às condições do trabalho(10). Melhores condições
sociais e de trabalho em todos os Estados significava, também, como ainda
significa, melhores condições para a competição no mercado
internacional, possibilitando minimizar os efeitos de países que, com
menos direitos sociais garantidos, entram no mercado com preços mais
baixos.
Porém, é com a criação
da Organização das Nações Unidas — ONU, na Carta de São Francisco,
em 1945, que a proteção e promoção internacionais dos direitos humanos
se converte em princípio jurídico de direito internacional. A Carta de São
Francisco ou Carta das Nações Unidas consiste em tratado internacional,
vinculando juridicamente, portanto, todos os Estados que fazem parte da
ONU. Desse modo, todos os Estados membros devem dar cumprimento ao princípio
do "respeito universal aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais para todos, sem distinção por motivos de raça, sexo,
idioma ou religião". De fato, o artigo 1º da Carta coloca como propósitos
das Nações Unidas, "conseguir uma cooperação internacional para
resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social,
cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos
direitos humanos e às liberdades fundamentais", sem qualquer distinção.
Tratam da questão da proteção e promoção dos direitos humanos o
artigo 1º, itens 2 e 3, artigos 13, 55 e 56. A importância dada pela
Carta à matéria é revelada com especial força no artigo 55, que vem
vincular o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e liberdades
fundamentais como necessário à criação de condições de estabilidade
e bem-estar, que, por sua vez, são necessárias às relações pacíficas
e amistosas entre as nações, estando tais relações fundadas no
respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação
dos povos.
A Declaração
Universal dos Direitos Humanos
Já quando da elaboração
da Carta das Nações Unidas, grupos defendiam que ela deveria trazer uma
declaração de direitos anexa. Isso não ocorreu. Entretanto, apesar de
mencionar os direitos humanos de modo conciso e genérico, a Carta trouxe
a valiosa contribuição de tornar a promoção dos direitos humanos uma
finalidade da ONU e, sobretudo, expande a relação entre os Estados e
seus habitantes para esfera internacional. Merece ser observado que,
"no seio da ONU, programou-se, a partir de 1947, uma International
Bill of Human Rights, que deveria ter sido constituída por uma Declaração
universal, contendo a enunciação dos direitos humanos, por um Covenant
contendo compromissos específicos jurídicos dos Estados no que toca ao
respeito dos mesmos direitos humanos e um sistema de controle Measures of
Implementation, voltado para a garantia desses direitos. A realização
desse programa encontrou enormes dificuldades"(11).
A própria Declaração
poderia ter tomado a forma de tratado, de modo a, após sua adoção pela
ONU, vincular os Estados que a ratificassem à obrigação de proteger e
promover os direitos humanos. Prevaleceu, entretanto, o entendimento de
que a carta de direitos deveria tomar a forma de declaração, ou seja, de
uma recomendação de maior solenidade, utilizada em raras ocasiões
relacionadas a matérias de grande importância, em que se espera o máximo
comprometimento moral e político dos partícipes.
A Declaração vem
constituir, então, a especificação dos direitos que a Carta de São
Francisco menciona apenas de maneira genérica, estabelecendo, como
afirmado em seu Preâmbulo, uma compreensão comum do que sejam esses
direitos para seu pleno cumprimento.
Este detalhamento de
direitos humanos, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz,
constitui a primeira iniciativa de enumeração de direitos humanos no âmbito
do direito internacional e institui, sobretudo, como aponta Flávia
Piovesan(12), "extraordinária inovação, ao conter uma linguagem de
direitos até então inédita .... Ao conjugar o valor da liberdade com o
valor da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de
direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como
uma unidade interdependente e indivisível". A Declaração expressa,
a um só tempo, o discurso liberal dos direitos civis e políticos, nos
artigos 3º a 21, com o discurso social dos direitos econômicos, sociais
e culturais, nos artigos 22 a 28.
Não é demasiado lembrar
que a invocação de direitos econômicos, sociais e culturais, como
decorrentes do princípio da igualdade, era politicamente relacionada ao
socialismo e, portanto, a movimentos políticos de grande apelo popular.
Recorde-se que já a Declaração Francesa de 1793 — incorporada como
introdução à Constituição de 1793 — da República Jacobina do Ano
I, conseqüência da segunda revolução em 1792, proclamava a igualdade
por natureza e perante a lei (art. 3º), prevendo o dever da sociedade de
colocar a educação ao alcance de todos (art. 22), proporcionar trabalho
e seguridade social aos menos favorecidos (art. 21)(13). Mas essa Declaração,
forjada no período do Terror de esquerda, vigorou somente por três
meses(14).
Os direitos econômicos e
sociais somente vêm tomar relevo jurídico neste século, com a Constituição
Mexicana, de janeiro de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado da URSS, de janeiro de 1918 e a Constituição de
Weimar, de agosto de 1919.
Sobre as condições que
impulsionam os direitos sociais, José Afonso da Silva alerta que "o
desenvolvimento industrial e a conseqüente formação de uma classe operária
logo demonstraram a insuficiência daquelas garantias formais,
caracterizadoras das chamadas liberdades formais, de sentido negativo,
como resistência e limitação ao poder. Pois a opressão não era, em
relação a ela, apenas de caráter político formal, mas basicamente econômico.
Não vinha apenas do poder político do Estado, mas do poder econômico
capitalista. De nada adiantava as constituições e leis reconhecerem
liberdades a todos, se a maioria não dispunha e ainda não dispõe, de
condições materiais para exercê-las. Sintetiza bem a questão Juan
Ferrando Badía, quando escreve: "A burguesia liberal aparenta
conceder a todos a liberdade de imprensa, a liberdade de associação, os
direitos políticos, as possibilidades de oposição política: mas, de
fato, tais direitos e liberdades não podem ser exercidos senão pelos
capitalistas, que são os que têm meios indispensáveis para que tais
liberdades sejam reais. E, assim, no caso do direito ao sufrágio, este
servia para camuflar diante dos olhos dos proprietários uma papeleta de
voto, mas a propaganda eleitoral se encontra nas mãos das forças do
dinheiro."(15) Desse modo, os direitos econômicos, sociais e
culturais revelam-se essencialmente necessários para que direitos civis e
políticos possam ser verdadeiramente efetivos, provando-se reciprocamente
necessários.
Como visto na Introdução,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos se constitui numa construção,
de matriz iluminista — a Declaração Francesa de 1789 se apresenta como
sua fonte mais evidente — e como construção reflete as disputas de
poder no âmbito internacional. Os direitos ali plasmados não se
confundem com direitos naturais e absolutos que, segundo os
jusnaturalistas, acompanhariam os seres humanos desde tempos imemoriais.
Ou, segundo Celso Lafer, não são um dado, externo à polis; são um
construído, uma invenção ligada à organização da comunidade política(16).
Consistem, sim, em resultado de disputas entre grupos sociais e entre
estes e o Estado, desenvolvidas no tempo. Os direitos humanos, nos dizeres
de José Afonso da Silva, "são históricos, como qualquer direito.
Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revolução
burguesa e evoluem, ampliam-se com o correr dos tempos. Sua historicidade
rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do
homem ou na natureza das coisas."(17)
A dimensão histórica dos
direitos humanos está ligada, como não poderia deixar de ser, à noção
de pessoa, em sua concreção social e histórica. Miguel Reale, ao tratar
sobre o ser pessoa, aponta que "o homem é a sua história, mas também
é a história por fazer-se. É própria do homem, da estrutura mesma de
seu ser, essa ambivalência e polaridade de ‘ser passado’ e ‘ser
futuro’, de ser mais do que sua própria história". Reale
arremata: "e note-se que o futuro não se atualiza como pensamento,
para inserir-se no homem como ato, — caso em que deixaria de ser futuro
— mas se revela em nosso ser como possibilidade, tensão, abertura para
o projetar-se intencional de nossa consciência, em uma gama constitutiva
de valores."(18) Suas palavras permitem perceber como as pessoas não
são meros pacientes da história, mas agentes possíveis de agir de forma
ativa (o ‘projetar-se intencional da consciência’) — participar
criativamente da vita activa, como dizia Hannah Arendt — constituindo
novos valores.
Retomando a dimensão política
da construção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, neste
aspecto, coincide com a Declaração Americana de Direitos Humanos,
verifica-se que liberdade e igualdade, no sentido que temos atualmente, não
se encontravam, em meados deste século, no mesmo nível. Pugnar pela
igualdade, muitas vezes, significava assumir-se comunista ou socialista,
ainda que não o fosse. Defender a liberdade, por outro lado, significava,
muitas vezes, defender a liberdade de ação e, por via de conseqüência,
a possibilidade de sucesso dos melhores, dos mais capazes, em consagração
ao liberalismo.
O tempo da Declaração é
também o tempo da consolidação da Guerra Fria. Segundo Lindgren Alves,
"durante esse período, a disputa ideológica entre os dois sistemas
antagônicos favorecia, pelo enfoque estritamente coletivista de um deles,
a idéia de que a obtenção de condições econômicas adequadas teria
prioridade sobre o usufruto dos direitos civis e políticos e das
liberdades fundamentais"(19). Boaventura de Souza Santos, de outra
parte, observa que "durante muitos anos após a Segunda Guerra
Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da Guerra
Fria, e como tal foram considerados pela esquerda."(20) A tensão
entre o discurso liberal e o discurso socialista está presente na Declaração,
quando se verifica que vinte um artigos tratam dos direitos civis e políticos,
dos quais vinte referem-se a direitos civis e um refere-se unicamente a
direitos políticos (a liberdade de opinião e de expressão, bem como a
liberdade de associação e reunião pacíficas são relacionadas
simultaneamente aos direitos políticos) e apenas seis estão relacionados
aos direitos sociais. O artigo XXVIII já trata, de forma especialmente
genérica da espécie de direitos que posteriormente veio a ser denominada
direitos de solidariedade, ao prever que toda pessoa tem direito a uma
ordem social e internacional em que os direitos e liberdades constantes da
Declaração possam ser plenamente realizados. Este artigo não
consubstancia, pois, quer direitos civis, políticos, econômicos, sociais
ou culturais, tratando, sim, de um dos direitos de solidariedade.
O conteúdo
da Declaração
A Declaração Universal
dos Direitos Humanos traz, em seu Preâmbulo, sete consideranda,
consolidando, em especial, (i) a dignidade humana inerente a todos como
fundamento da liberdade, da justiça e da paz; (ii) o desrespeito aos
direitos humanos como causa da barbárie; (iii) o direito de resistência
à opressão como alternativa última à ausência de proteção e
garantia dos direitos humanos sob o império da lei; (iv) a relação
direta entre a efetividade dos direitos humanos e a construção do
progresso social e de melhores condições de vida e (v) o estabelecimento
de uma compreensão comum dos direitos humanos para seu pleno cumprimento.
Ao proclamar a Declaração,
a Assembléia Geral a coloca como um ideal comum a ser atingido por todos
os povos e todas as nações. Ela dirige seu campo de validade, portanto,
a todas as pessoas, independente do Estado ou nação a que pertençam ou
de qualquer outra especificidade. Ainda, ao dispor que cada pessoa e cada
órgão da sociedade devam se esforçar para promover o respeito aos
direitos humanos e para a adoção de medidas progressivas para assegurar
seu reconhecimento e observância universais e efetivos, prevê,
efetivamente, que não somente aos Estados incumbe cuidar para a proteção,
não violação e promoção desses direitos, mas a todos os membros da
sociedade, quer sejam pessoas, quer sejam empresas com fins lucrativos,
quer sejam organizações não governamentais — já que todos são órgãos
da sociedade. Nicola Matteucci alerta, a esse respeito, que "as ameaças
podem vir do Estado, como no passado, mas podem vir, também da sociedade
de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua
desumanização. É significativo tudo isso, na medida em que a tendência
do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol
dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversão de tendências e
se retoma a batalha pelos direitos civis."(21)
É interessante notar que,
mesmo passados cinqüenta anos da Declaração Universal, o postulado nela
contido que atribui a todos os agentes sociais a incumbência de não
violar, de proteger e promover os direitos humanos pouco adentrou à
praxis da Organização das Nações Unidas. A participação das ONGs nos
procedimentos da ONU é demasiadamente restrito, a despeito da grande
capacidade de mobilização da sociedade civil que algumas delas congregam
e da sua proximidade com as situações de violação de direitos humanos,
não só civis e políticos. Ainda, pelo que prevê a Declaração, cada
pessoa poderia ou deveria cuidar para a proteção e promoção dos
direitos humanos independente das fronteiras dos Estados e não apenas no
âmbito de seu Estado nacional. Verifica-se a permanência da concepção
de que a ONU somente pode relacionar-se com Estados, seguindo a matriz do
direito internacional que vigorou até o início deste século.
Cumpre destacar que a
Declaração não faz distinção de processo de efetivação ou de
efetividade formal ou material entre direitos civis e políticos e
direitos econômicos, sociais e culturais, diversamente do que expressam
os dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966. Os direitos previstos
na Declaração devem, todos, ser implementados progressivamente pela
educação e ensino e por políticas públicas que assegurem seu
reconhecimento e observância. O sentido da expressão
‘progressivamente’ não deve significar ‘na medida da vontade política’,
mas sim ‘iniciar-se de imediato e seguir continuamente avançando até
sua integral implementação’. Ou seja, não será ‘na medida da existência
de recursos’, mas na destinação contínua e prioritária de recursos públicos
para a sua consecução, de modo a não se verificar, aí, qualquer margem
para a discricionariedade administrativa(22).
A linguagem
dos direitos humanos
A Declaração reconhece os
direitos humanos considerados essenciais para garantir a dignidade de cada
pessoa na sociedade em que vive, de forma a possibilitar a cada uma o
desenvolvimento integral de sua personalidade e de sua capacidade de
participação na sociedade. É de se observar, todavia, que a linguagem
normativa de enunciação de direitos contida na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, e especialmente por se tratar de direitos humanos,
vem permeada de palavras gerais e que, por sua generalidade e vagueza,
apresentam um grau de incerteza alto. Termos como ‘liberdade’,
‘igualdade’ e mesmo ‘pessoa’ são polissêmicos, ou seja,
comportam vários sentidos(23). A conseqüência disso redunda na seleção,
ou eleição, de um sentido determinado para, no âmbito dos Estados,
desenhar-se e implementar-se direitos e políticas públicas destinadas a
satisfazer a pauta dos direitos humanos.
Estes termos
‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘democracia’, ‘pessoa’, dentre
outros que estão presentes em toda a Declaração, bem como em todas as
normas jurídicas de direitos humanos, internas ou internacionais, são
correntes na linguagem política e na linguagem comum, e possuem carga
emotiva forte, sendo, por isso mesmo, imprecisas na linguagem jurídica.
Desse, modo, além de sua
função descritiva, tais palavras ou expressões comportam uma função
persuasiva. A conjugação dessas duas funções das palavras,
especialmente as retiradas da linguagem política, a linguagem dos
direitos humanos - e do direito, de forma geral - se converte, como
colocado por José Eduardo Faria, num instrumento não só de compreensão,
mas também de modificação e transformação das pautas valorativas em
função das mudanças sócio-econômicas, possibilitando a formação de
hábitos, a indução de comportamentos e a consolidação de crenças(24).
As expressões de arco
aberto desempenham papel decisivo na reprodução das formas de poder e
dominação, podendo conduzir à alienação da realidade, conforme o grau
de participação popular na esfera pública, ao firmar nos agentes
sociais, individuais ou coletivos, a crença em uma ordem harmônica e
equilibrada, mantidas intactas, todavia, as estruturas de poder
preexistentes(25).
Verifica-se a necessidade,
então, de incrementar-se as ações e mecanismos que permitam amplificar
a participação ativa dos agentes sociais, especialmente pela via
associativa, para que seja reivindicada a efetividade dos direitos
proclamados na Declaração Universal, com apropriação ex parte populi
da linguagem dos direitos humanos, com propostas concretas de políticas públicas
que permitam o acesso material ao gozo desses direitos em todas as suas
vertentes. Para um discurso eficiente dos direitos humanos, é necessário
que a participação por meio de associações e entidades em favor desses
direitos e de políticas públicas se dê também e cada vez mais, no âmbito
internacional ou transnacional. Boaventura de Souza Santos salienta que as
atividades cosmopolitas, que caracterizam as globalizações de
baixo-para-cima, incluem entre outras, "diálogos e organizações
Sul-Sul, organizações mundiais de trabalhadores (a Federação Mundial
de Sindicatos e a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres),
filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistência
jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos humanos,
redes mundiais de movimentos feministas, organizações não
governamentais (ONGs) transnacionais de militância anticapitalista, redes
de movimentos e associações ecológicas e de desenvolvimento
alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos na
periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não
imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou
subalternas, etc."(26).
A Indivisibilidade
dos Direitos Humanos na Declaração
Do que ficou dito acima,
infere-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao combinar o
discurso liberal e o discurso social da cidadania, associando o valor da
liberdade ao valor da igualdade, traz para si, de fato, a tensão entre
estes dois valores. Esta tensão é aparente e existe somente enquanto se
mantenha a leitura de seus sentidos sob a forma do absoluto. É da tradição
ocidental, acentuada com o cartesianismo, a oposição de valores, o
maniqueísmo, que impede a visualização da miríade de possibilidades
entre dois extremos, como existem entre o branco e o preto, o zero e o
infinito. O zero pressupõe o infinito, assim como a liberdade deve
pressupor a igualdade, uma conduzindo à outra, recíproca e
simultaneamente. O equilíbrio entre estes dois valores é essencialmente
necessário para que uma e outra existam no mundo real.
Segundo observa Domenico
Losurdo(27) a partir da crítica efetuada por Marx, "o que está em
discussão é a relação liberdade-igualdade. Além de certo limite, a
desigualdade nas condições econômico-sociais acaba anulando a
liberdade, por mais que esta esteja solenemente garantida e consagrada em
nível jurídico-formal". E, cita esse autor uma passagem de Hegel de
Fundamentos da Filosofia do Direito, p. 127: "quem sofre de fome
desesperada, chegando a correr o risco de morrer de inanição, está numa
condição de ‘total falta de direitos’, ou seja, numa condição que,
em última análise, não difere substancialmente da situação de
escravo". Por isso é que não é possível considerar-se direitos
humanos simplesmente os direitos civis e políticos, pois, sem os direitos
econômicos, sociais e os culturais, eles se desmancham no vazio, sem
qualquer possibilidade de realização sequer parcial. A garantia e o
acesso efetivos aos direitos econômicos, sociais e culturais, permite a
todos alcançar — e manter — as condições econômicas e sociais
necessárias para que possam se fazer concretos os direitos civis e políticos,
como a liberdade de opinião com conteúdo opinativo, a liberdade de
expressão possível de contribuir criativa e construtivamente para a
comunidade política, com pleno acesso aos meios e modos para tal expressão
— os meios de comunicação, etc.
As desigualdades não são
privadas, isto é, não estão situadas — e nem podem estar — fora da
dimensão da esfera pública. É indevido associar-se a liberdade ao público
e a igualdade ao privado, de forma a situar somente a liberdade no plano
da regulação estatal para a sua proteção, especialmente pelo direito
civil e pelo direito penal. Nada há no sistema jurídico que permita
comparar o nível de proteção da liberdade com o nível de proteção da
igualdade, em seu sentido material. A igualdade formal permanece somente
como o eixo legitimador do sistema liberal de atribuição de direitos.
Porém, exatamente porque o exercício da igualdade material está
geneticamente ligado ao exercício da liberdade, torna-se a primeira (a
igualdade) de fundamental relevância para a esfera pública, impondo a ação
do Estado para sua proteção, especialmente com a implementação de políticas.
Jamais se poderá falar, por conta do modo como opera o sistema
capitalista — que faz maximizar o lucro com a desvalorização da mão-de-obra
—, que a desigualdade existe por conta da preguiça ou da ausência de
vocação para o trabalho e para a riqueza, mantendo certo número de
pessoas na miséria. Este darwinismo social é argumento próprio dos que
vêm a desigualdade na distribuição da riqueza como natural ao primado
da liberdade — em sua acepção absoluta.
A percepção da liberdade
sob a perspectiva do confronto (a liberdade de um vai até onde se inicia
a liberdade do outro) não é adequada à efetivação dos preceitos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois, para tal é necessário
e inerente a colaboração — o labor com —, ou seja, a liberdade de um
termina quando termina a liberdade do outro. O discurso dos direitos
humanos não pode persistir associado ao parâmetro do direito subjetivo,
pilar fundamental do direito privado. A titularidade dos direitos humanos,
pelo que deflui da Declaração, não é ‘contra todos’ erga omnes,
mas ‘com todos’, exercendo-se coletivamente.
Partindo desta concepção,
o acesso aos direitos proclamados na Declaração não se dá de modo
passivo, a mera recepção ou o simples reconhecimento desses direitos,
mas de forma ativa, com a conjugação de todos os agentes sociais para a
efetivação de todo o rol ali previsto, bem como dos direitos humanos que
se somaram.
Desta forma, torna-se
evidente que a materialização dos direitos civis, dos direitos políticos,
dos direitos econômicos, dos direitos sociais, dos direitos culturais, e
também dos direitos de solidariedade — estes já desenhados no artigo
28 da Declaração —, estão indissoluvelmente ligados e
interrelacionados, sendo verdadeiramente indivisíveis e interdependentes.
A Declaração sobre o
Direito ao Desenvolvimento(28), que vem sendo considerada parte integrante
da Carta Internacional dos Direitos Humanos, ao lado da Carta de São
Francisco, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e dos dois
Pactos Internacionais de Direitos de 1966, prevê expressamente (como já
dispunha a Declaração de Teerã, de 1968) no artigo 6º, item 2 que
"todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis
e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser
dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais."
A Declaração e Programa
de Ação de Viena(29) igualmente afirma a indivisibilidade dos direitos
humanos no item I.5: "todos os direitos humanos são universais,
indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa,
em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades
nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como
diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos
Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e
culturais".
A Universalidade
dos Direitos Humanos na Declaração
O item reproduzido da
Declaração e Programa de Ação de Viena afirma, também, a
universalidade dos direitos humanos, que já estava prevista na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
De fato, a Declaração de
1948 é universal por seu título e por seu conteúdo. Vimos, no início
deste trabalho, que a intenção primeira era elaborar uma declaração
internacional. A mudança nos termos refletiu uma concepção intencional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos se pauta pela generalidade
na atribuição dos direitos e pela abstração de quaisquer diferenças
entre pessoas ou grupos. Em contraposição aos documentos celebrados
anteriormente a ela, em que se buscava a proteção de nacionais ou de
minorias, a Declaração visou à proteção de todos os seres humanos.
Conforme anota Rudolf Bystrický(30), a resolução da ONU A/C3/307 R ev.
I/add. 1 apontou, em relação à universalidade da Declaração, não
haver necessidade de proteção específica de minorias. De fato, elas
sequer foram mencionadas e o argumento usado não justifica a omissão.
Dentre as formas de
manifestação da universalidade na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, Bystrický aponta (i) o sentido pessoal: a Declaração utiliza
as expressões ‘toda pessoa’, ‘ninguém’, ‘todos’, ‘homens e
mulheres’, significando, assim, que os direitos humanos devem ser
gozados por todos os seres humanos, independente de cidadania ou de domicílio;
(ii) a validade sem fronteiras, conforme prevê o artigo 2º, item 2; (iii)
a formulação de apelo não só aos Estados, mas a cada indivíduo e a
cada órgão da sociedade para a cooperação integral. O autor tcheco
observa, porém, haver várias concepções de mundo e de pessoa e que as
noções de direito, justiça, democracia, liberdade, etc., são
categorias históricas, cujo conteúdo é determinado pelas condições de
vida de um povo e por suas circunstâncias sociais. À medida em que as
condições de vida mudam, também podem mudar o conteúdo dessas noções
e idéias. As idéias regentes de uma época são as idéias de sua classe
dominante. Entretanto, o mesmo autor adverte que essa abordagem não nega
a existência de ideais, princípios, noções que possuem, ao menos em
certa medida, um caráter universal e uma espécie de denominador comum em
certo período histórico(31).
O fato é que o próprio
termo ‘universalidade’ possui acepções diversas no tempo e no espaço,
confundindo-se, não raro, com ‘universalismo’.
Riccardo Scartezzini
adverte que o caráter contraditório do universalismo é genético,
salientando que o universalismo moderno se fundamenta em uma ideologia
individualista que defende a autonomia e a liberdade do indivíduo,
emancipado de crenças e de dependências coletivas. Em suas palavras,
"o universalismo moderno não se conota como promoção universal das
totalidades, mas sim de indivíduos concretos. Com efeito, diferentemente
dos universalismos clássicos e monoteístas, o universalismo moderno
fomenta o individual, o singular, a diferença."(32) Daí que
falar-se em universalismo não pode jamais permitir que se tente evocar um
modelo de homem universal. Modelos não existem no mundo real, assim como
não há um ‘homem padrão’, uma ‘mulher padrão’ ou a ‘criança
padrão’. Considerações dessa espécie só se prestam a afastar os
princípios e as regras de direitos humanos da realidade, neutralizam
alternativas, produzem a irrelevância das pessoas pelo nivelamento e
produzem a desresponsabilização dos agentes públicos e dos agentes
sociais.
É por isso que a
universalidade não pode significar uniformidade. A universalidade da
Declaração não deve levar ao equívoco, que ainda se vê, da
desconsideração das diferenças específicas entre pessoas por razão de
gênero, raça, procedência, credo, etnia, etc. Tratar como igual o que
é diferente, ou seja, tratar igualmente homens, mulheres, crianças, indígenas,
minorias, negros, brancos, produz, de fato, desigualdades muitas vezes
severas, que se constituem em violações de direitos humanos. A proteção
maior a tais grupos é necessária para a efetividade da Declaração.
Porém, nestes tempos de
globalização, a diferença específica em razão das marcas culturais
vem tomando relevo, sob o temor da pasteurização cultural. Não falamos
aqui de aspectos que, sob a falsa proteção da cultura em seu aspecto
positivo, significam, em verdade, mecanismos de opressão e desumanização
ideológica de grupos ou segmentos da população(33), mas de diferenças
entre culturas que, ao invés de atrapalhar, contribuem para esse chamado
universalismo dos direitos humanos.
Ressaltando a importância
da cultura para a construção dos direitos humanos, Boaventura de Souza
Santos propõe uma concepção multicultural de direitos humanos. O autor
observa que "concebidos como direitos humanos universais, os direitos
humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de
globalização de cima-para-baixo. Para poderem operar como forma de
cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica,
os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais.
... O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de
pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe
uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a
natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante
realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que
tem que ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo
exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como
soma de indivíduos livres."(34)
Tratando dessa questão,
Boaventura de Sousa Santos prossegue alertando que contra o universalismo
uniformizante deve se proceder a ‘diálogos interculturais’ sobre
‘preocupações isomórficas’, de forma a se buscar por "valores
ou exigências máximos e não por valores ou exigências mínimos (quais
seriam tais valores mínimos? Os direitos fundamentais? Os menores
denominadores comuns?). A advertência freqüentemente ouvida hoje com
novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos é
uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da
modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade, possibilitada
ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa
intensidade como o outro lado de democracia de baixa
intensidade."(35)
O estabelecimento de um verdadeiro diálogo
intercultural voltado à conjunção dos valores máximos de cada cultura
irá permitir a construção de um discurso dos direitos humanos hábil a
implementar a efetividade da dignidade humana, conferindo conteúdo
material aos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Um diálogo dessa espécie não pode se dar sem a compreensão da
cultura do outro como uma cultura de igual valor, nem melhor nem pior.
Deve ser, pois, um diálogo permeado pela solidariedade. Assim como são
solidários entre si os direitos humanos, também devem ser solidárias as
culturas entre si.
*Procuradora
do Estado Assistente - Área da Assistência Judiciária, membro do Grupo
de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São
Paulo, doutoranda em Direito pela USP e Mestra em Direito Econômico pela
USP.
** Procurador do Estado
na Procuradoria de Assistência Judiciária, membro do Grupo de Trabalho
de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,
Professor de Direitos Humanos na Academia do Barro Branco e mestrando em
Direito Constitucional pela PUC-SP.
_________
(1) Estas referências
iniciam o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
(2) Ver Sociología y
filosofía del derecho, Madrid, Taurus, 1984, p. 286.
(3) Eric Hobsbawn.
"A Revolução Francesa", exerto de A Era das Revoluções, São
Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 19-20.
(4) Ver Louis Henkin,
International Law: politics, values and functions - 216 Collected Courses
of Hague Academy of International Law 13, v. 4, 1989, p. 208, in Henry J.
Steiner e Philip Alston, International human rights in context: law,
politics, morals. Oxford, Clarendon Press, 1996, p. 115-116.
(5) Para uma indicação
dos tratados e convenções firmados nesse período, ver Enrique Ricardo
Lewandowski, Proteção dos direitos humanos na ordem interna e
internacional, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 78-79.
(6) Flávia Piovesan,
Direitos humanos e o direito constitucional internacional, São Paulo, Max
Limonad, 1996, p. 133.
(7) Antonio Truyol y
Serra, Los derechos humanos, Madrid, Tecnos, 1977, p. 24.
(8) Op. cit., p. 114.
(9) Vide, a esse
respeito, Louis Henkin, cit., p. 115.
(10) Idem, ibidem.
(11) Paolo Mengozzi,
Direitos Humanos II, Dicionário de política, org. Norberto Bobbio et
alli, 4. ed., Brasília, UnB, 1992, p. 356.
(12) Op. cit., p. 156.
(13) Alguns exemplos
de direitos econômicos e sociais previstos na Declaração dos Direitos
do Homem de do Cidadão de 24 de junho de 1793.
Artigo 5º - Todos os cidadãos
são igualmente admissíveis aos empregos públicos. Os povos livres não
conhecem outros motivos de preferência, em
Artigo 17 - Não se pode
impedir que os cidadãos se dediquem a qualquer tipo de trabalho,
atividade ou comércio.
Artigo 19 - Qualquer pessoa
pode contratar seus serviços e seu tempo, mas não pode se vender nem ser
vendido; sua pessoa não é propriedade alienável. A lei não admite a
escravidão; não pode haver mais do que um compromisso de serviços e
retribuição entre o homem que trabalha e o que lhe dá emprego.
Artigo 21 - A beneficência
pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve assegurar a subsistência
aos cidadãos menos favorecidos, seja proporcionando-lhes trabalho, seja
garantindo-lhes os meios de existência aos que estão incapacitados para
trabalhar.
Artigo 22 - A instrução
é uma necessidade para todos. A sociedade deve favorecer com todo seu
poder os progressos da razão pública e colocar a instrução ao alcance
de todos os cidadãos.
Nota: Para o inteiro teor
da Declaração, ver María José Añon Roig et alli, Derechos humanos -
textos y casos prácticos, Valencia, Tirant lo Blanch, 1996, p. 25-28.
(14) Em 1795,
instalado o Terror de direita, foi implantada outra Constituição, que
suprimiu os direitos econômicos e sociais de 1793.
(15) Ver Curso de
Direito constitucional positivo, 9. ed. revista, 4ª tiragem, São Paulo,
Malheiros, 1994, p. 146.
(16) Ver A reconstrução
dos direitos humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São
Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 134. Pode-se afirmar, como
esclarecimento que entendemos a comunidade política como não adstrita
simplesmente aos limites territoriais dos Estados. A justaposição
indevida entre Estado e comunidade política é atualmente destituída de
consistência material. Nestes tempos em que o capital é globalizado e
graça sem regras, considerar os direitos como locais ou nacionais
significa permitir a violação de todo o conjunto de direitos humanos.
(17) Op. cit., p.
166.
(18) Cf. "Pessoa,
sociedade e história", em Pluralismo e liberdade, São Paulo,
Saraiva, 1963, p. 71.
(19) Ver Os direitos
humanos como tema global, São Paulo, Perspectivas, 1994, p. 45, Série
Estudos.
(20) Ver "Uma
concepção multicultural de direitos humanos", em Lua Nova - Revista
de Cultura e Política, CEDEC, n. 39, p. 105, 1997.
(21) Cf. Verbete
Direitos Humanos, Dicionário de Política, cit., p. 355.
(22) Este entendimento
deflui não somente da Declaração Universal, mas especialmente da
Constituição Federal que, no seu artigo 3º, institui como objetivos
fundamentais da República (I) a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, (II) garantir o desenvolvimento nacional, (III) a
erradicação (e não simplesmente redução) da pobreza, da marginalização
e redução das desigualdades sociais e regionais e (IV) a promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. Constituindo objetivos da República,
todas as ações do Estado e da sociedade devem estar voltadas direta ou
indiretamente à consecução material destes fins e não de modo
meramente formal, para todos, e não somente para alguns grupos.
(23) Sobre os
conceitos e conceitos jurídicos indeterminados, ver Eros Roberto Grau,
Direito, conceito e normas jurídicas, São Paulo, Revista dos Tribunais,
1988, p. 55-84, especialmente p. 72 e ss. Genaro Carrió, em suas Notas
sobre derecho y lenguaje, 4. ed. corrigida e aumentada, Buenos Aires,
Abeledo-Perrot, 1965 (1990), alerta que "Es corriente presuponer que
los criterios que presiden el uso de las palabras que empleamos para
hablar acerca de la realidad están totalmente determinados. Pero eso no
és más que una ilusión. Si se nos pide que hagamos explícito el
criterio de aplicación de una palabra podemos indicar un cierto número
de características, o propiedades definitorias, y creer que todas las
otras propiedades posibles no incluidas entre aquellas están, por ello,
excluidas como no relevantes. Esta creencia es equivocada. Sólo pueden
ser excluidas como irrelevantes las propiedades o caracterísitcas
posibles que han sido consideradas, pero no las que no lo han sido. Estas
últimas no están excluidas; cuando se presenta un caso en el que aparece
una o más de ellas es perfectamente legítimo que sintamos dudas que no
puedem ser eliminadas por un proceso de pura deducción a partir del
significado corriente de la palabra. El uso puede estar, a esse respecto,
totalmente "abierto". Es decir, no decidido o, en otros términos,
dispuesto a admitir extensiones o reducciones." (grifo nosso).
Quer-se salientar com esta lição de Genaro Carrió que a textura aberta
da linguagem não permite que, de antemão ou por pura dedução, sejam
determinados sentidos excluídos quando de sua aplicação.
(24) José Eduardo
Faria ( O modelo liberal de direito e Estado. In: Direito e justiça,: função
social do judiciário, São Paulo, Ática, 1989, p. 20-21) observa a esse
respeito que "graças à alta carga emotiva dessas palavras, como
‘liberdade’ e ‘igualdade’, elas permitem a defesa de valores
abstratos por aqueles que as invocam - o que explica a razão pela qual o
liberalismo jurídico-político, partindo da noção de liberdade formal,
se converte num eficiente recurso retórico de que se vale uma dada classe
para, num dado momento da história, agir hegemonicamente numa dada formação
social. Ao mascarar a presença de significados emotivos pela aparência
de conteúdos informativos, esses expedientes retóricos abrem caminho
para a conquista de unanimidade de um conjunto de atitudes, hábitos e
procedimentos. Ou seja: produzem reações de aprovação/desaprovação e
amor/ódio, não propriamente por meio de indagações sobre a realidade,
mas por meio de predeterminações ideológicas disfarçadas como dados
inquestionáveis sobre o mundo. A força operativa desses expedientes retóricos
é que faz, do liberalismo jurídico-político e de sua ênfase à noção
de liberdade tutelada pela lei, um dos mais importantes estereótipos políticos
do mundo moderno e contemporâneo. Vinculado aos conflitos de interesse e
à luta pelo poder, o estereótipo político é um termo que as aparências
descritivas envolvem, manipulam e escondem emoções, permitindo aos
governantes conquistar a adesão dos governados aos valores prevalecentes
pela força mágica dos elementos significantes, em detrimento das
significações. As expressões estereotipadas na linguagem política
cumprem, assim, um papel decisivo na reprodução das formas de poder - e
é nesse sentido que o estereótipo ‘liberalismo’, produzindo o efeito
de distanciamento e o conseqüente espaço ideológico no qual o Estado
moderno monopoliza a produção do direito e manipula os instrumentos
normativos e políticos necessários à manutenção de um padrão específico
de dominação, provoca uma alienação cognoscitiva entre "cidadãos"
formalmente "iguais": afinal, ao serem levados a acreditar na
possibilidade de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os
conflitos socio-econômicos são mascarados e "resolvidos" pela
força retórica das normas que regulam e decidem os conflitos jurídicos,
tais "cidadãos" tornam-se incapazes de compreender e dominar as
estruturas sociais em que eles, enquanto indivíduos historicamente
situados, estão inseridos".
(25) Patricia Helena
Massa, Algumas observações sobre direito ambiental e mercado, Dissertação
de Mestrado, FD-USP, 1995.
(26) Op. cit., p. 110.
(27) Ver "Marx, a
tradição liberal e a construção histórica do conceito universal de
homem" em Educação e Sociedade, Revista Quadrimestral de Ciência
da Educação - CEDES, n. 57, Campinas, 1996, p. 687.
(28) Adotada pela
Resolução n. 41/128, da Assembléia Geral das nações Unidas, de 4 de
dezembro de 1986. Vide, para o texto integral, Instrumentos internacionais
de proteção dos direitos humanos, Centro de Estudos da Procuradoria
Geral do Estado - Série Documentos, n. 14, dez. 1996, p. 55-60.
(29) Adotada
consensualmente, em plenário, pela conferência Mundial dos Direitos
Humanos, em 25 de junho de 1993. Vide Instrumentos ..., cit., p. 61-99.
(30) Ver The
universality of human rights in a world of conflicting ideologies, p. 84.
(31) Op. cit., p.
84-88.
(32) Ver "Las
razones de la universalidad y las de la diferencia" em Universalidad
y diferencia, Salvador Giner e Ricardo Scartezzini (eds.), Madrid, Alianza
Universidad, 1996, p. 24.
(33) A mutilação
genital feminina praticada por muçulmanos e, em especial por cristãos
coptas em boa parte da África, é o exemplo limite, sempre citado. Mas,
também, o tratamento outorgado a delinqüentes e a presos em nosso país
e em muitos outros países se deve, igualmente, a razões culturais, não
sendo nem mais nem menos defensável do que o primeiro exemplo. Como bem
aponta J. A. Lindgren Alves, "a violação deliberada de direitos
humanos, do ponto de vista dos perpetradores, freqüentemente se dá, em
toda e qualquer cultura, a partir de uma postura coletiva, mais ou menos
assumida, que denega a humanidade da vítima." (cf. A fotografia de
um conceito, Boletim Juízes para a Democracia, v. 4, n. 13, p. 10,
jun./jul. 1998).
(34) Op. cit., p. 112.
(35) Cit., p. 114.
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