Comentário
ao artigo 5º
Henry I. Sobel
Cinquenta
anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos
ter sido promulgada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, somos obrigados a reconhecer que o inventário de
infrações dos direitos fundamentais no mundo inteiro
excede de longe qualquer progresso alcançado nessa área.
As forças que negam a dignidade humana continuam
poderosas e onipresentes. A violência, sob as mais
diversas formas, continua desprezando impunemente a
santidade da vida humana. Nesta nossa civilização que se
julga tão avançada, ainda é corriqueira a tortura de
presos, a pretexto de puni-los pelos crimes que cometeram
ou para extrair deles confissões de crimes que não
cometeram.
Nos
anos da ditadura militar no Brasil, centenas de opositores
foram mortos. A tortura era o meio preferencial utilizado
pela polícia para buscar informações sobre outros
militantes. Com a redemocratização do país, teve-se a
impressão de que a tortura acabou. Infelizmente, era uma
impressão falsa.
A
tortura, um crime inafiançável de acordo com a Constituição
brasileira, continua a ser praticada pelos agentes do
Estado, aviltando toda a polícia. O espancamento, o
choque elétrico e o pau-de-arara são técnicas usadas
rotineiramente para esclarecer crimes. O tratamento nas
prisões é cruel, desumano e degradante. As condições
nas penitenciárias e n9as cadeias públicas do país são
abomináveis. Há 150 mil presos confinado num espaço
total com capacidade para 60 mil. As condições sanitárias
são horríveis e muitos presos estão doentes, sem
tratamento; o Estado não garante a integridade física
dos detentos, sendo comuns estupros e assassinatos; não são
devidamente separados criminosos perigosos de autores de
pequenos delitos; muitos estão presos irregularmente em
celas de delegacias e aguardam julgamento por muito mais
tempo do que prevê a lei.
A
propalada igualdade perante a lei está longe de ser alcançada.
Em geral, os pobres são os mais desrespeitados pela polícia
e pelo Poder Judiciário. Antes de se provar sua culpa, são
humilhados e torturados; durante o cumprimento da pena,
por não poderem contratar advogado, são entregues à
lentidão da Justiça, passam privações e sofrem violências;
depois de cumprida a pena, por serem ex-presidiários, não
conseguem emprego, não recebem apoio da sociedade e do
governo. Por isso, caem facilmente na reincidência.
Essa
situação não é apenas perversa; e também
contraproducente, do ponto de vista social. Ao manter os
presos em condições subumanas, o Estado está
contribuindo para que eles nã9o só não se recuperem,
como se tornem mais violentos. Quando são devolvidos ao
convívio social, cobram um alto preço pelos maus-tratos.
“A
delegacia funciona como escola primária do crime; a casa
de detenção, como segundo grau; a penitenciária, como
universidade”, escreveu há pouco Frei Betto.
O
encarceramento é necessário para afastar o criminoso
temporariamente do convívio social e impedir que ele
cause danos a outras pessoas. Entretanto, esse afastamento
de nada adiantará se não for acompanhado de um processo
de reabilitação. O encarceramento deve ser visto como
uma forma de hospitalização, um período durante o qual
o indivíduo deve ser curado dos seus males, para que ele
possa posteriormente “receber alta” e sair apto a
reintegrar-se na sociedade. Espancamentos e torturas
certamente não curam ninguém.
Os
que apóiam a agressão física contra assassinos que
cometeram crimes hediondos afirmam que quem priva um ser
humano do que ele tem de mais precioso, a vida, merece um
castigo à altura. Dizem que a tortura é condizente com a
barbaridade do crime cometido.
Estamos,
sem dúvida, de acordo quanto à necessidade de frear a
violência, salvaguardar a justiça, garantir a segurança
da pessoa e da sociedade, e punir adequadamente os que
desrespeitam a vida. No entanto, a tortura não é a solução.
Por
que agredir fisicamente alguém que agrediu a outro, se
queremos ensinar que é errado agir assim? A tortura
oficializa a violência e ensina à sociedade que a
brutalidade física é uma prática aceitável. A tortura
exarceba o desejo de vingança e a vontade de fazer justiça
com as próprias mãos. A violência, como forma de
castigo, é incompatível com a santidade da vida.
Não
se pode partir da premissa de que todo prisioneiro é forçosamente
irrecuperável. Em qualquer pena, a função regeneradora
deve ter primazia sobre a função repressiva. Todo ser
humano tem capacidade de superar o mal. Negar isso é
rejeitar o conceito judaico de teshuvá,
arrependimento. Cabe à sociedade proporcionar àquele que
errou as condições para que retome o caminho do bem.
Essa orientação implica uma reformulação do sistema
penitenciário e um amplo retreinamento de seus agentes.
É preciso imbuí-los de uma nova visão, que os leve a
considerar o preso como um ser humano capaz de recuperação.
Para que seja definitivamente excluída toda pena cruel e
degradante, é primordial que a sensibilidade moral e o
equilíbrio emocional façam parte da psique dos policiais
e dos carcereiros encarregados de aplicar as penas.
A
lei judaica não aconselha a “virar a outra face”,
pois a passividade diante da violência equivale ao
consentimento. Por outro lado, é preciso ter cuidado para
que a reação à violência não seja igualmente
violenta. Os criminosos têm de ser rigorosamente punidos,
mas é necessário também procurar eliminar as raízes do
mal – a miséria, a desintegração familiar, o tráfico
de drogas – e reestruturar o sistema carcerário, p que
não seja exclusivamente um meio de reclusão, mas também
um meio de reabilitação.
A
tortura pode ser abolida. O que falta é a determinação
da sociedade de na admitir
que a tortura seja praticada no país. Não basta
alguns defensores dos direitos humanos tentarem pressionar
o governo para que proíba efetivamente a tortura. Tal
pressão tem de vir da sociedade como um todo. Em última
análise, os cidadãos da nação têm de responder pelos
atos – e pela falta de atos – do seu governo.
Foi
a pressão da sociedade que levou o governo militar a
refrear a tortura nos anos da ditadura. O protesto maciço
da população contra o assassinato do jornalista Vladimir
Herzog, em 1975, surtiu efeitos positivos incomensuráveis.
Infelizmente, a maioria das pessoas só se revolta com a
tortura quando ela é de caráter estritamente política.
Quando um criminoso comum é torturado, a sociedade
cala-se ou – pior ainda – aplaude. A triste verdade é
que a violência da polícia conta hoje com o respaldo de
uma parcela considerável da população.
Ainda
temos um longo caminho para percorrer até que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos seja efetivamente
implementada. Somente se conseguirmos transportá-la do
papel para a prática faremos justiça ao eloquente conteúdo
dos seus trinta parágrafos. E quais os meios para alcançar
esse fim? Não existe, obviamente, uma resposta fácil. Se
existisse, não estaríamos testemunhando no mundo de hoje
tão graves e frequentes violações dos direitos humanos.
Mas uma coisa é certa: temos de ser persistentes. Temos
de nos familiarizar cada vez mais com os princípios
expressos na Declaração. Temos de falar deles
incansavelmente, temos de fazer tudo ao nosso alcance para
conscientizar aqueles ao nosso redor, temos de cobrar dos
governos as medidas que garantam o direito dos cidadãos.
E temos de preservar dentro de nós o sentimento de
indignação e inconformismo, jamais nos acomodando à
violação dos direitos alheios. O silêncio é o mais
grave dos pecados. A indiferença em face do mal é um
incentivo ao recrudescimento do mal. Se fechamos os olhos,
se viramos a cabeça, se fingimos não saber, tornamo-nos
cúmplices.
Fala-se
muito hoje em dia sobre direitos humanos. Vários governos
têm feito da defesa desses direitos uma política
oficial. Por mais louvável que sejam suas intenções, é
preciso lembrar que, na verdade, não estão fazendo um
favor a ninguém. Os direitos humanos não podem ser
concedidos ou negados
por nenhuma autoridade terrena, pois foram
irrevogavelmente conferidos ao ser humano pelo seu
Criador. Os direitos humanos são direitos de todos, todos
mesmo, sem distinção de raça, cor, sexo, credo, opinião
política e condição social.
Assim
sendo, digamos “não” à tortura. Alto e bom som,
digamos “não” à violência institucionalizada.
Presidente
do Rabinato da Congregação Paulista; Coordenador da
Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico,
órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
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