Comentários
ao artigo 4º
Ao
comemorar o cinquentenário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, conquista histórica de importância
fundamental à construção de um mundo aberto à convivência
pacífica entre os seres humanos, cabe lembrar que a
Declaração nasceu do horror expresso pelas nações do
autoproclamado “mundo civilizado” à barbárie
perpetrada pelo nazifascismo na Europa. Naquele momento,
esses mesmas nações mantinham sob o jugo do colonialismo
os povos daquele “outro” mundo, considerado não
civilizado e compreendendo grande parte da população do
planeta. Reinava a cegueira dessas nações à barbárie
que elas mesmas praticavam, vinham praticando há séculos,
contra a população colonizada. Em 1948, quando foi
redigido o texto da Declaração, fazia três anos que o 5º
Congresso Pan-Africano, reunindo em Manchester líderes
como Kwame Nkrumah, George Padmore, C. L. R. James e Jomo
Kenyatta, denunciara os horrores praticados pelo
colonialismo europeu na África, horrores estes ignorados
pelo “mundo civilizado” desde 1900, quando denunciados
pelos africanos organizados na Conferência Pan-Africana
realizada em Londres. Ignorado também foi o apelo do 1º
Congresso Pan-Africano (1919), cuja petição à Liga das
Nações, apresentada à Conferência de Versalhes após a
Primeira Guerra Mundial, projetava a concepção do grande
líder afro-americano W. E. B Dubois de uma Carta de
Direitos Humanos para o Africano. Em seguida, ao convocar
os súditos a morrerem lutando na Segunda Guerra contra os
“poderes imperialistas” alemão e japonês, esqueciam
convenientemente as nações “civilizadas” que
administravam, elas mesmas, os seus impérios à base de
genocídio, de massacre, de tortura, da servidão, do
trabalho forçado, da pilhagem, do roubo e da repressão
armada a todo e qualquer direito do homem colonizado.
Mais que justa a reação de indignação do
“mundo civilizado” ao holocausto dos judeus na Segunda
Guerra. Porém, ela não alterava a indiferença secular
ao holocausto de centenas de milhões de homens e mulheres
que constituiu a epopéia da escravidão africana na
construção de um chamado novo mundo nas terras há milênios
ocupadas, de forma muito digna, pelos povos indígenas,
cujo massacre genocida também havia sido, de forma geral,
alvo da mais implacável indiferença do mesmo “mundo
civilizado”.
Quando os horrores da violação sistemática
dos direitos humanos atingiram diretamente os europeus,
por meio do regime nazifascista, foi possível mobilizar a
decisão política, a força moral e a energia coletiva
necessárias para instituir-se um instrumento jurídico de
alcance internacional com o objetivo de definir e defender
esses direitos. não poderia esse documento deixar de
refletir a visão do mundo daqueles que o conceberam: a
perspectiva da cultura ocidental, portadora e instrumento
da dominação de tantos povos não-europeus. Assim, ao
definir os direitos “universais” do homem, o texto
segue a tradição iluminista de focalizar o indivíduo: a
proposta é a de garantir a todas as pessoas,
individualmente, embora de forma universal, os direitos básicos
nele enumerados.
O 4º artigo da Declaração reza: “Ninguém
será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e
o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas
formas”. Esse dispositivo reflete o reconhecimento
tardio do crime constituído pelo tráfico europeu de
africanos, sistema escravagista sem precedentes que
condenou a coletividade de milhões de homens e mulheres
africanos não apenas à servidão, como ao status
de objetos, negando-lhes a própria condição humana. O
processo abolicionista vingou apenas no momento em que o
interesse econômico do regime industrial dispensava a mão-de-obra
escrava, e a sistemática discriminação racial contra os
ex-escravizados e seus descendentes encarregou-se de
manter sua situação de vida numa perversa continuidade
da situação anterior à Abolição da Escravatura. Ao
proibir a escravidão “em todas as suas formas”, o
artigo 4º proibiria, implicitamente, a manutenção das
desigualdades raciais análogas ao sistema escravista,
como aquelas amplamente documentadas no Brasil. Aliás, no
Brasil existe também, ainda hoje, a escravidão direta,
fartamente documentada em canaviais, carvoeiras e
fazendas. Tais práticas não são estranhas ao sistema
social de um país construído com base na tradição
escravocrata, genocida e autoritária herdada do poder
colonialista e reforçada por um Poder Judiciário omisso,
quando não cúmplice, fato que obriga à criação de
mecanismos extrajudiciais de repressão à prática da
escravidão, como exemplifica a recente legislação
permitindo ao Poder Executivo Federal a desapropriação
sumária da propriedade onde se constatar a exploração
de mão-de-obra escrava.
Marcaram cinquenta anos da vigência da
Declaração Universal dos Direitos Humanos o processo de
independência das ex-colônias, a luta pela autodeterminação
dos povos, a denúncia e a luta contra o racismo e o
eurocentrismo que fundamentaram o sistema colonial, e os
movimentos anti-racistas de minorias e maiorias
discriminadas em países multirracionais, notadamente os
descendentes de africanos nas Américas e na África do
Sul. Esses fatos realçaram a necessidade de ampliar-se o
conceito de direitos humanos, reconhecendo sua validade não
apenas para indivíduos, como para grupos discriminados.
Revelaram também a necessidade de respeito à cultura e
à identidade próprias dos povos e seu direito de expressá-las.
Surgiram, nesse contexto, novos instrumentos
de direito internacional, como a Convenção pela Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção
111 da Organização Internacional do Trabalho, sobre a
discriminação de raça e gênero no mercado de trabalho.
Embora sem poder coercitivo, esses instrumentos
revestem-se de inquestionável valor do ponto de vista ético,
constituindo balizas a demarcar o espaço transitável por
pessoas e povos moralmente comprometidos com a evolução
dos padrões de relacionamento entre os seres humanos.
]Signatário dessas convenções, o Estado
brasileiro jamais se preocupou em cumpri-las ou implementá-las,
mas tão-somente em produzir e apresentar relatórios
edulcorados, recebidos com crescente insatisfação por
uma comunidade internacional minuciada de informações e
pesquisas sobre a realidade dos fatos. Foi assim que o
Brasil se viu denunciado pela Organização Internacional
do Trabalho, por descumprir a Convenção 111,
encontrando-se agora na obrigação de tomar iniciativas sérias
para eliminar a clamorosa desigualdade de raça e gênero
em nosso mercado de trabalho.
Neste final de milênio, entre os grandes
fatos que marcam a experiência humana estão a afirmação
da heterogeneidade humana, a valorização da diversidade
decorrente da soberania dos povos antes subjugados e a
progressiva legitimação dos direitos humanos conquistada
neste meio século de vigência da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
Num mundo cada vez mais marcado por conflitos
entre etnias e agrupamentos humanos, impõe-se a
necessidade de criar instrumentos capazes de assegurar os
direitos coletivos e de evitar, encontrando soluções
para as suas causas, o acirramento dos problemas
decorrentes da diversidade inerente à natureza humana. No
Brasil, uma proposta que ganha relevância hoje nesse
sentido é a ação compensatória, que consiste na criação
de vários mecanismos (não apenas cotas) para garantir ao
descendente só africano escravizado no Brasil uma efetiva
igualdade de oportunidades. Ma tentativa de concretizar
esta proposta, articulada e promovida com crescente
nitidez pelo movimento organizado dos afro-descendentes no
Brasil, temos conduzido na Câmara dos Deputados e no
Senado Federal projetos de lei implementando programas de
ação compensatória, porque somente assim poderemos
assegurar uma verdadeira abolição da escravatura neste
país.
Abdias
do NascimentoSenador
da República, Professor Emeritus e Doutor Honoris
Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Elisa
Larkin do Nascimento B.A.,
M.A., Juris Doctor
pela Universidade do Estado de Nova York, em Buffalo;
Doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo e Diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos
Afro-Brasileiros (Ipeafro).
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