Ética e
Direitos Humanos: o legado das
grandes tradições
ESTE
CAPÍTULO TRATA DOS Direitos Humanos nas grandes tradições
religiosas e filosóficas da Humanidade.
A
eleição do tema é bem própria para um livro como este. A
Filosofia, que se ocupa das “tradições filosóficas”, e a
Teologia, que se volta para as “tradições religiosas”, devem
radicar-se na reverência devida à pessoa humana.
Percorro,
neste capítulo, as mais diversas religiões praticadas no mundo
mas não tenho a pretensão de esgotar todas as crenças seguidas
no universo humano.
1.
INTRODUÇÃO
Creio
oportuno começar este capítulo com uma advertência de João
Paulo II, feita em 8 de dezembro de 1981:
Fazem
obra de Paz aqueles que se aplicam em despertar a atenção para
os valores das diferentes culturas, para a especificidade das
sociedades e para as riquezas humanas de cada povo.
Esperamos
através das reflexões deste capítulo fazer justamente isto:
mostrar, sem preconceitos, que os Direitos Humanos estão
presentes nas mais diversas tradições religiosas e filosóficas
da Humanidade. Eles não são monopólio do Ocidente ou
propriedade cristã.
Para
facilitar o seguimento das idéias pelos leitores, não citaremos
as fontes no decorrer do texto. As fontes aparecem no final do
volume, nas “Referências Bibliográficas”.
2. AS
MAIORES RELIGIÕES E SISTEMAS FILOSÓFICOS DA HUMANIDADE
HARMONIZAM-SE COM OS PRINCÍPIOS QUE ALICERÇAM OS DIREITOS
HUMANOS
As
maiores religiões e sistemas filosóficos da Humanidade afinam,
nos seus grandes postulados, com as idéias centrais que
caracterizam este conjunto de princípios que denominamos Direitos
Humanos.” Assim acontece com o Cristianismo, o Judaísmo, o
Islamismo, o Budismo, o Taoísmo, o Confucionismo, o Marxismo, a
Religião e as tradições filosóficas dos povos indígenas da América
Latina e também com a Religião e o legado cultural e humano
afro-brasileiro.
Fernand
Comte, numa pesquisa cuidadosamente realizada, debruça-se sobre
os livros sagrados de algumas das religiões que maior influencia
tiveram na História. E assim que estuda os livros sagrados
budistas, confucionistas, hinduístas, muçulmanos, judaicos e
cristãos.
Uma
linha ética, conforme demonstra Fernand Comte, aproxima essas
fontes do sagrado, muito além do que idéias preconcebidas
poderiam supor.
René
Grousset visita as religiões e filosofias da Índia, da China e
do Japão, num livro que também merece a mais detida atenção.
Numa
atitude de devotado respeito às fontes da sabedoria oriental,
Groussel também revela a riqueza de conteúdo dessa árvore filosófica.
E.
E. Gautier Gaudefroy-Demombynes, L. Gardé, Henri Massé e D.
Sourdel, dentre outros, nos ajudam a compreender o Islamismo, com
toda sua pujança de tradições e seu elevado cabedal ético.
3.
A TOLERÂNCIA COMO LIAME DE COMUNICAÇÃO
Cornelius
Castoriadis observa que as religiões em geral têm uma pretensão
universalista. no sentido de que sua mensagem endereça-se à
Humanidade inteira. Fundam-se no pressuposto de que todas as
pessoas têm o direito e o dever de converter-se à respectiva
pregação.
Não
obstante esse caráter “universalista da religião”, a que se
refere Castoriadis, e que marca também certos sistemas filosóficos,
acreditamos que um elo de compreensão pode estabelecer-se através
da tolerância.
A
primeira coisa a ser feita é que haja comunicação entre as
diferentes crenças e sistemas filosóficos, entre as pessoas que
aderem a essas crenças e filosofias.
Não
se trata da falsa comunicação, totalitária e impositiva.
Trata-se da verdadeira comunicação, baseada no respeito e na
abertura para o ouvir.
E
a esta comunicação que se refere François Marty. E a comunicação
bipolar, que supõe um liame entre as pessoas que se falam.
Dentro
dessa visão de abertura e tolerância foi escrito o belo livro de
Wijayaratna sobre o Cristianismo visto pelo Budismo.
Com
o mesmo espírito de busca e aproximação, Michel Lafon nos
oferece um livro sobre preces e festas muçulmanas, especialmente
dirigido aos cristãos. A obra foi prefaciada pelo Arcebispo de
Rabat, capital de Marrocos.
Nos
arraiais cristãos, Jean-François Collange busca escutar outras
vozes, que não apenas as do Cristianismo, na sua magnífica obra
“Teologia dos Direitos Humanos”.
4.
DIÁLOGO E HUMILDADE VENCEM BARREIRAS
É
também necessário que haja humildade. Só a humildade permitirá
às Igrejas a aceitação da historicidade de suas formas
concretas de existência.
No
que se refere ao diálogo entre as Igrejas, parece ter razão
Christian Duquoc quando afirma que o Ecumenismo só será possível
a partir da aceitação do caráter inacabado, provisório da
manifestação humana do mistério eclesial.
5.
O CRISTIANISMO E OS DIREITOS HUMANOS
Jean-François
Collange mostra que, fundamentalmente, o traço de união
indissociável entre Cristianismo e Direitos Humanos resulta de
que o valor do homem diante de Deus não está nem na cor de sua
pele, nem no seu sexo, nem no seu estatuto social, nem muito menos
na sua riqueza, mas no fato de que em Cristo ele é aceito como
filho de um mesmo Deus.
Isto
de cada um, de sua parte, reconhecer-se como filho de um mesmo Pai
conduz a uma fraternidade autêntica, base dos Direitos Humanos.
O
autor que citamos é professor de Teologia Protestante da Universidade
de Strasbourg. Ele tece essa linha de considerações a partir
sobretudo da Epístola de Paulo aos Romanos. Nessa Epístola,
Collange vê expressa, de maneira particularmente incisiva, a
afirmação da igualdade e da dignidade de todos os homens.
Creio
que não podemos nos esquecer de uma outra passagem, igualmente
encontrada em Paulo. Trata-se da colocação do homem como templo
do Espírito Santo.
Esta
afirmação é rica de consequências no que se refere aos
Direitos Humanos.
Como
um ser que é templo do Espírito Santo, ou seja, que é morada do
próprio Deus, pode ser torturado, pode morrer de fome, pode ficar
ao desabrigo, pode ser discriminado? Nenhuma violação dos
direitos da pessoa humana será coerente com a proclamação do
homem como casa de Deus.
Gustavo
Gutiérrez, teólogo latino-americano, num dos seus livros mais
famosos, busca nas fontes mais profundas da ascese cristã as
trilhas que podem conduzir á libertação do povo. Argumenta que
é no poço da espiritualidade legada pela tradição
judaico-cristã que a Teologia da Libertação encontra suas
justificações doutrinárias.
Esse
poço fundamenta a libertação pela Fé, segundo coloca Gutiérrez.
A
nosso ver, esse poço dá transcendente consistência aos Direitos
Humanos.
6.
O JUDAÍSMO E OS DIREITOS HUMANOS
O
Judaísmo funda-se na Bíblia Hebraica que é o mesmo Velho
Testamento dos cristãos. Pela tradição hebraica, o Antigo
Testamento é dividido em três partes: Lei ou Torá, formada
pelos primeiros cinco livros (o Pentateuco), Profetas e Escritos.
Os
grandes valores que orientam os “Direitos Humanos” estão
presentes na Bíblia Hebraica: o grito de Justiça, sobretudo dos
fracos (Amós, Miquéias), a igualdade entre as pessoas, o
acolhimento ao estrangeiro, o direito de asilo, o repouso semanal,
o direito de todo homem ao alimento superpondo-se ao direito de
propriedade privada, a proteção dos instrumentos de trabalho em
face do penhor, a sacralidade do salário, a volta da propriedade
ao antigo dono (Deuteronômio), a solidariedade para com o órfão
e a viúva (Deuteronômio, Provérbios), a proibição da cobrança
de juros, a condenação da usura (Êxodo, Neemias), a identidade
de origem de todos os homens, o homem como imagem de Deus (Gênesis,
Salmos), a maldição contra os que açambarcam bens e se tornam
sozinhos proprietários de uma região inteira, o anúncio da
libertação para os prisioneiros (Isaías), a fraternidade (Levítico,
Provérbios), a paz (Miquéias), a solidariedade universal
(Salmos).
7.
O ISLAMISMO E OS DIREITOS HUMANOS
O
Islamismo também dá ampla sustentação à doutrina que fundamenta
os “Direitos Humanos”. Essa Religião ensina que o homem é
“vigário (representante) de Deus”, conforme se lê no Corão.
Observa
Jean-François Collange, na obra que já citamos, que a igualdade,
a dignidade e a liberdade inerentes a todos os seres não podem
ser contestadas por qualquer instância humana, segundo o
ensinamento islâmico.
O
Islamismo prescreve a fraternidade, adota a idéia da universalidade
do gênero humano e de sua a origem comum; ensina a solidariedade
para com os órfãos, os pobres, os viajantes, os mendigos, os
homens fracos, as mulheres e as crianças; define a supremacia da
Justiça acima de quaisquer considerações; prega a libertação
dos escravos; proclama a liberdade religiosa e o direito à educação;
condena a opressão e estatui o direito de rebelar-se contra ela;
estabelece a inviolabilidade da casa.
Há
uma semelhança estreita entre a visão islâmica do ser humano
(homem, vigário de Deus), a idéia cristã ensinada por Paulo
(homem, templo de Deus) e a idéia de homem como imagem de Deus (Gênesis,
livro sagrado de judeus e cristãos).
Vários
autores pretendem ver uma incompatibilidade entre o Islamismo e
os Direitos Humanos. Essa conclusão parte de uma premissa.
O
Islamismo pretende regular a totalidade da vida, sem deixar lugar
para o profano.
Lendo
trabalhos como os de B. Lewis, H. Boularês e B. B. Etienne, nós
podemos construir um silogismo que resume a opinião dos que
encontram uma oposição entre Islamismo e Democracia, Islamismo e
Direitos Humanos:
a)
a Democracia só é possível dentro da Laicidade;
b)
no Islamismo não existe espaço para a laicidade, o domínio
profano é absorvido pelo domínio religioso;
c)
não havendo esse espaço para a laicidade, o Islamismo consagra a
intolerância.
B.
Lewis acha que o Islamismo não comporta um preceito como o que se
lê no Evangelho de Jesus Cristo: “dar a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus”.
H.
Boularès acredita que o Islamismo se assenta numa concepção
totalitária, a partir da ligação entre Religião, Mundo e
Estado. No Islamismo, a laicidade seria impossível. B. Etienne
acha que é inteiramente estranha ao Islamismo a idéia de
separar Religião e Política.
Em
posição oposta à desses autores, Mohammed Chérif Ferjani
demonstra que o Islã não é hermético à idéia laica, à
separação entre o político e o religioso. Para desenvolver o
seu estudo, Mohamrned Ferjani baseia-se fundamentalmente num texto
de Maomé. Trata-se de uma passagem na qual o Profeta Maomé diz a
seus discípulos:
Eu
não sou senão um homem. Se eu vos ordeno qualquer coisa de vossa
Religião, segui-me. Se eu vos ordeno qualquer coisa que revela
minha opinião, eu sou apenas um homem, O que diz respeito à
Religião cabe a mim. No que diz respeito aos negócios do mundo,
nisto vocês sabem mais do que eu.
Observa
ainda Mohammed Ferjani que os primeiros discípulos de Maomé
distinguiam perfeitamente o que era a Revelação e o que era
opinião pessoal do Profeta. Era opinião pessoal do Profeta tudo
aquilo que dizia respeito ao domínio temporal.
Nega,
categoricamente, Mohammed Ferjani que o Islamismo seja uma Religião
obtusa, que impeça seus fiéis de ingressar na Modernidade.
Mostra como é preconceituosa a tese de que caiba ao Ocidente a
missão civilizadora.
Participei,
durante o período de meu pós-doutoramento na França, do 20 Colóquio
Internacional Islâmico-Cristão, ocorrido nos dias 10 e 11 de
janeiro de 1992. Nessa ocasião, pude partilhar com crentes muçulmanos
um projeto de inundo baseado na liberdade, na solidariedade e na
Justiça. Não se tratou apenas de um intercâmbio intelectual mas
de algo muito mais profundo, radicado no afeto, na compreensão
recíproca, na comunhão.
A
meu ver, esse mundo que, naqueles dois dias, centenas de homens e
mulheres de boa vontade, supuseram possível construir, a partir
do respeito mútuo e do diálogo, está bem próximo da utopia
humanista redentora do mundo.
Como
cristão, eu creio que o anúncio radical dessa utopia fez-se
Verbo em Jesus Cristo. Mas respeito que crentes de outras crenças
ou mesmo não-crentes tenham uma Fé 011 uma visão filosófica
diferente da minha. Sobretudo creio que podemos trabalhar juntos
por um mundo melhor, se a reverência à dignidade humana é o traço
de união de nosso projeto de História.
8.
O BUDISMO E OS DIREITOS HUMANOS
As
sementes dos “Direitos Humanos” estão também presentes no
Budismo quando, numa sociedade de castas, prega a igualdade
essencial de todos os homens e a prevalência dos atos de virtude.
Segundo
o Budismo, os atos de virtude deveriam ser o critério de valorização
das pessoas.
O
Budismo anuncia valores que antecipam os “Direitos Humanos
a)
na supremacia conferida ao Direito e à Justiça;
b)
no ensino da fraternidade e da generosidade;
e) no
estabelecimento da equivalência de deveres e direitos entre
marido e mulher;
d)
no reconhecimento de direitos do empregado;
e)
na tentativa de uma organização equânime do corpo social.
O
Kalyanamitta-Sutta destaca, na vida de Buda, a cuidadosa e inesgotável
prática da fraternidade. Observa também, na pedagogia do Mestre,
a importância por ele dada á escuta.
Como
nota René Grousset, o Budismo, historicamente, não foi senão
uma heresia brâmane.
O
Budismo, segundo o mesmo autor, não era nem uma religião, nem
uma filosofia, mas uma atitude moral. Pesquisando as fontes do
ensinamento budista, concluímos que o Budismo, realmente, prega a
igualdade essencial de todos os homens, pela identidade da maneira
como nascem e pelas condições inerentes à espécie, contra a idéia
de privilégio dos brâmanes, defendida por estes, como classe
dominante. Ensina o valor dos atos de virtude prevalecendo sobre a
condição social.
Estatui
a supremacia do Direito acima da consideração das castas e o
dever de Justiça para com o próximo e de respeito às pessoas,
qualquer que fosse sua condição social. Exalta, como virtudes, o
amor da verdade, a benevolência de espírito, o sentimento de
justiça, a generosidade, a cortesia, o cumprimento da palavra
empenhada. Condena como vícios a calúnia e a intriga. Proclama
como o maior de todos os bens a cultura.
Traça
um código ético para as pessoas, segundo o pape] que
desempenhassem na família e na sociedade: fossem os filhos fiéis
a seus pais e provessem suas necessidades; os pais, que exortassem
seus filhos à virtude e lhes dessem uma profissão; os discípulos
fossem atentos a seus mestres e esses, zelosos no ensino,
revelassem a seus alunos o segredo de todas as artes; o marido
tivesse respeito e cortesia para com sua esposa e lhe fosse fiei,
e a esposa retribuísse esses cuidados; o membro de um clã
servisse a seus amigos e familiares e fosse também servido por
eles., sempre que necessário: os patrões tratassem bem seus
empregados, assistindo-os na doença e velando por suas
necessidades; os empregados servissem a seus patrões; os
dirigentes exortassem o povo no caminho do bem.
9.
O TAOÍSMO E OS DIREITOS HUMANOS
O
Taoísmo foi fundado por Lao Tseu que morreu cerca de 5 séculos
antes de Jesus Cristo.
A
concepção básica do Taoísmo é a existência de um Ser que é
o princípio de todas as coisas, um Ser inominado, que Lao Tseu
designou por “‘Tao”. Este “Principio” é traduzido de várias
maneiras pelos estudiosos. René Grousset nota que Lao Tseu
declarou que empregava o termo “Tao” para designar o principio
das coisas, apenas a titulo de aproximação, á falta de um termo
mais satisfatório.
A
esse “Princípio”, Lao Tseu chama de mãe de todas as coisas,
diferentemente de outras religiões e filosofias que designam o
Princípio ou Deus no gênero masculino. É um pormenor curioso
que, a nosso ver, merece ser destacado.
O
Princípio está em tudo e tudo está no Princípio. Tudo vem do
Princípio e tudo volta ao Princípio. Cada ser que existe é um
prolongamento do Princípio. O mundo é instável e se encontra
em permanente evolução. Há dois princípios opostos “Yin” e
“Yang”, mas os dois acabam por fundir-se pois que os contrários
se identificam, O homem sábio abandona-se ao turbilhão do
“Yin” e do “Yang”, adere ao ritmo universal, busca
simplificar-se, diminuir-se, anular-se. Nisto alcança o “êxtase
místico”. Tudo é um no Tao. Os seres são prolongamento do
Princípio Único Imortal. A vida e a morte são aparentes pois os
seres saem do Princípio Imortal e retornam ao Princípio Imortal.
Segundo
René Grotisset, o pensamento de Lao-Tseu exerceu influência
sobre Hegel, Haeckel e Spencer.
Entendendo
que as coisas têm um curso a seguir, o Taoísmo prega a liberdade
das pessoas, reprova qualquer coação. Mesmo o governante deveria
governar pela persuasão, que se opera no íntimo dos corações,
e não pelo recurso à força. O respeito às pessoas integrava o
catálogo de valores desse sistema filosófico e religioso.
Este
conjunto de princípios religiosos e filosóficos que acabamos de
descortinar permite-nos concluir também por uma resposta
afirmativa à questão de existir uma relação entre o Taoísmo e
a idéia de “Direitos Humanos”.
O
Taoísmo tem centelhas de Direitos Humanos na sua própria tese
fundamental de Homem como prolongamento de um Princípio Imortal.
Também comunga com os “Direitos Humanos” a visão de que
todos os homens partilham da mesma origem, provêm de um Princípio
Imortal Único e retornam a esse Princípio Imortal. O sentido de
liberdade, de respeito à pessoa humana, de comunhão cósmica
culminam por provar a coerência entre Taoísmo e Direitos
Humanos.
10.
O CONFUCIONISMO E OS DIREITOS HUMANOS
O
Confucionismo também deixa um legado na construção dos
“Direitos Humanos” porque ensina a fraternidade, o respeito
entre as pessoas, o humanismo, a solidariedade, a busca da virtude
e da paz. Outrossim, na perspectiva do Confucionismo. a missão de
governar é vista como missão de serviço.
O
Confucionismo foi fundado por Confúcio, cinco séculos antes de
Jesus Cristo. Segundo René Grousset, teria sido fundado em oposição
ao Taoísmo.
Seu
mais célebre seguidor foi Meng Tseu ou Mencius. Numa linha
conservadora do Confucionismo destacou-se Han Yu e, numa linha
progressista, Wang Ngan Che.
O
Confucionismo prega o amor e o respeito ao próximo (não fazer a
outrem o que não queremos que os outros nos façam) e o
tratamento fidalgo entre as pessoas (proceder para com todos como
se procederia com um hóspede importante). Toda pessoa deve buscar
a “virtude da humanidade”
que
consiste em compreender-se e ajudar os outros a que também se
compreendam, a fortalecer-se e ajudar os outros a que também se
fortaleçam. Só é possível o caminho da perfeição quando o
ser humano se respeita a si mesmo e trava um firme combate contra
as próprias paixões. A moderação, a discrição e a prudência
são virtudes fundamentais. Todo excesso é condenável, até o
excesso de virtude. O caminho da perfeição passa por etapas: do
conhecimento das coisas ao conhecimento de si mesmo; do
conhecimento de si mesmo à reta intenção; da reta intenção à
imparcialidade do espírito; da imparcialidade do espírito ao
aperfeiçoamento próprio; do aperfeiçoamento próprio ao
entendimento na família; do entendimento na família ao
entendimento no Estado e daí ao reino da virtude no Universo. A
perfeição de cada um deve objetivar a paz, em benefício de
todos. Que os governantes busquem alcançar a confiança do povo,
como o mais preciosos dos bens para quem está investido da missão
de dirigir, e que nutram, como virtude primeira, a grandeza de
coração. Que os governantes coloquem o povo acima do Estado.
11.
O MARXISMO E OS DIREITOS HUMANOS
Também
acreditamos que o Marxismo realiza a idéia de Direitos Humanos.
Comecemos
pelo fundador dessa doutrina filosófica, social e econômica.
Nos
escritos de Karl Marx, encontramos a arquitetura de todo um
sistema social e econômico fundamentado na dignidade da pessoa humana
e na exigência da libertação do homem, como consequência dessa
mesma dignidade.
Disse
com muita precisão André Frossard, numa obra publicada em 1992,
que Marx quis sinceramente a libertação da humanidade, desejou
um homem novo. Por esta razão, esse escritor francês não
titubeia em incluir Karl Marx entre os grandes pastores da raça
humana, num livro que tem justamente esse título: “Os grandes
pastores – de Abraâo a Karl Marx”. Não é em outro filósofo
mas justamente em Marx, tão denegrido hoje pela propaganda endereçada
à massificação, em detrimento do raciocínio livre, que
encontramos a mais veemente denúncia ao desprezo pela pessoa
humana. É da pena de Marx a apóstrofe fulminante contra o déspota,
justamente porque este sempre vê o homem desprovido de sua
dignidade.
Marx
defende a liberdade como direito de todos e não como privilégio.
Criticou a concepção burguesa da liberdade, na qual via
instrumento de egoísmo e veículo de separação entre os homens.
Contrapropôs à liberdade burguesa uma visão de liberdade
baseada na união e na solidariedade entre as pessoas, o homem
visto dentro da comunidade.
Exaltou
Marx a liberdade de imprensa. Definiu a imprensa como espelho
espiritual no qual o povo enxerga a sua face. Condenou a censura.
Viu
Marx o Estado como aparelho de dominação de classe, como
instrumento de opressão do homem e como pesadelo que o sufoca.
Dentro dessa perspectiva, apontou para a conveniência de sua
supressão, por desnecessário. na sociedade cujo advento pregou.
Defendeu
a retomada pelo povo e para o povo de sua própria vida social.
Denunciou
a ilusória divisão de poderes entre executivo e legislativo
quando ambos servem à dominação.
Pronunciou-se
a favor do sufrágio universal a partir das comunas, como única
possibilidade de construção de uma verdadeira democracia.
Manifestou-se
pela educação pública gratuita para todos e pela liberdade para
a ciência.
Lenine
também se pronunciou. em vários textos, em defesa da dignidade
humana, contra a miséria e pela abolição de toda forma de
exploração do homem. Consequência da proposta de proscrição
de toda forma de exploração humana, defendeu a abolição das
classes.
A
partir de uma concepção sobre a força e a importância social
do proletariado, defendeu o direito que tinha essa classe de
conduzir a História. Advogou a propriedade coletiva da terra, a
obrigação do trabalho para todos e a real igualdade econômica
de todos os indivíduos.
Defendeu
uma democracia proletária com instituições representativas
proletárias.
Bateu-se
Lenine pelos direitos políticos da mulher e pelo sufrágio
universal, que alcançaria todos os cidadãos que tivessem
atingido 21 anos, sem distinção de religião e nacionalidade.
Ainda
integram o credo de Lenine: a liberdade de reunião, associação
e greve: a liberdade de culto; a igualdade de todas as
nacionalidades; a supressão do passaporte e o direito de livre
circulação; a liberdade de trabalho e a supressão das corporações;
a completa publicidade dos atos de governo; a eleição PARA todos
os cargos.
Em
escritos assinados a duas mãos ou em coincidência de posições,
encontramos ainda em Marx, Lenine e Engels:
·
a doutrina de dar a cada um, dentro do grupo social, segundo as próprias
necessidades, em vez de a cada um segundo sua capacidade, de modo
a evitar que a diferença de trabalho fosse fonte de desigualdade
(Marx e Engels);
·
a tese da separação entre Igreja e Estado (Lenine e Engels);
·
a idéia de responsabilidade de todo funcionário ou agente de
autoridade, pelos atos que praticasse, perante os tribunais e
perante os cidadãos (Engels e Lenine);
·
a denúncia da exploração capitalista, da opressão da classe
operária (Marx, Engels e Lenine).
12.
OS DIREITOS HUMANOS NAS TRADIÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS DA AMÉRICA
LATINA
Num
belíssimo ensaio escrito a propósito do 5º Centenário do
chamado “descobrimento da América”, o historiador, ensaísta
e sociólogo colombiano German Arciniegas, começa por negar que
tenha havido um “descobrimento”. O que houve, na verdade, foi
massacre, roubo, destruição deliberada de toda uma civilização.
É
difícil dizer, prossegue German Arciniegas, se os espanhóis
encontraram uma civilização igual, inferior ou superior à
civilização européia de então. Certo apenas é que era uma
civilização diferente da civilização do conquistador. E o
conquistador destruiu, sem respeito, essa civilização.
Propositadamente, tudo fez para sepultá-la. Primeiro diante de
seus próprios olhos. Depois diante dos olhos do resto do mundo.
Mas não a sepultou de todo. I)o fundo dos lagos emergem cidades
gigantescas, como no México. No cume dos Andes, ficou a marca da
mão do homem que tinha colocado uma estrela de pedra a desenhar
os 4 caminhos partindo de Cuzco até as mais longínquas províncias
incas. As religiões gravaram a imagem de seus deuses sobre estátuas
e pirâmides que existem ainda hoje e que começam a ser
descobertas nas regiões maias de Santo Agostinho, Tiahuanaco,
Machu Picchu e Ilha da Páscoa.
E
admirável o grau de adiantamento a que chegaram civilizações
corno as dos astecas, dos maias e dos incas.
Os
maias registraram, nos seus livros, os grandes acontecimentos de
sua História. Quase todos esses livros foram queimados pelos conquistadores.
A prova da existência deles está no relato da destruição,
feita por cronistas, religiosos e historiadores europeus, como
Frei Diego de Landa.
O
Padre José Chantre descreve, com admiração, a beleza e a
suavidade da arte das mulheres Omagua, na fabricação da
porcelana e de utensílios domésticos.
German
Arciniegas, no ensaio já referido, opõe duas culturas – a
asteca e a inca.
Os
astecas, no México, representam um tipo de organização romana.
A nobreza e o clero exerciam uma dominação feroz sobre os desprovidos.
Existia, entre eles, a escravidão. Conheciam a moeda como
instrumento de troca. inventaram um engenhoso calendário.
Por
outros caminhos e processos., os incas atingiram, no Peru, um
adiantamento material não inferior ao dos astecas e um grau de
civilização espiritual surpreendente, muito superior ao dos países
europeus de então.
Adotaram
um sistema comunista perfeito, muito mais elevado que o comunismo
primitivo encontrado em outras culturas indígenas.
As
terras, que pertenciam ao Estado, eram repartidas anualmente para
que nelas todos pudessem trabalhar. Mantinham um Estado que vinha
em socorro da viúva, da criança, do estudante, do inválido e
que prestigiava o sábio. Inventaram um sistema democrático de
trabalho e iam ao encontro daqueles que tivessem perdido sua
colheita. Não adotavam a moeda, não praticavam o comércio, não
conheciam a escravidão. A lã e os tecidos eram distribuídos a
todos, indistintamente, pelo Estado. Em grandes depósitos,
guardavam provisões para socorrer províncias que pudessem sofrer
penúria, em razão de colheitas mal sucedidas.
Barnabé
Cobo informa que, entre os incas, o dever de Justiça era exigido,
de maneira rigorosa. de quem exercesse qualquer função de
governo. A corrupção não era tolerada.
Evidentemente,
a Civilização Inca alcançou um altíssimo grau de compreensão
dos Direitos Humanos”. Luzes desse “Código Universal de
Humanismo” estão presentes na organização social que
estabeleceram: na visão da propriedade como direito de todos;
no comunismo que criaram; na visão socialista do trabalho; na
proteção dada ao hipossuficiente; no amor à cultura; no
sentido de previdência; na repulsa da escravidão; na idéia de
função pública como serviço à coletividade.
13. OS
DIREITOS HUMANOS NO RICO PATRIMÔNIO ÉTICO-CULTURAL BRASILEIRO
No
caso do Brasil, grande contribuição ao sentido de dignidade
humana foi dada pelas tradições filosóficas e religiosas dos
povos africanos que a nefanda Escravidão trouxe para este país.
Não
obstante esmagados pela maneira covarde como a Escravidão foi
praticada – filhos separados de pais, aldeias propositadamente
estraçalhadas para evitar a comunicação entre as pessoas –
os povos africanos conseguiram manter sua identidade.
Sobretudo
num Estado brasileiro, essa identidade resplandece: na gloriosa
Bahia, ainda mais gloriosa porque guardou ciosamente o patrimônio
espiritual e cultural da África brasileira
O
sentido de respeito ã pessoa humana, uma religiosidade de cunho
profundamente fraternal, a idéia de transmissão cultural geração
sobre geração, o apego aos filhos e o sentimento heróico de
maternidade, uma vida voltada ao transcendente, no sopro dos orixás
– tudo isso junto demonstra que há perfeita comunhão entre
religião e cultura afro-brasileira, de um lado, Direitos
Humanos, de outro.
14.
RELIGIÕES E FILOSOFIAS NÃO SE CONFUNDEM COM ESTADOS OU LÍDERES
POLÍTICOS QUE PRETENDEM ENCARNAR A HERANÇA ESPIRITUAL DE QUE SE
JULGAM TITULARES
Depois
que examinamos a relação estreita entre tão diversas Religiões
e Filosofias à face dos “Direitos Humanos”, fica uma dúvida
no espírito.
Se
essa relação existe, como explicar que Estados e líderes políticos,
que dizem encarnar a herança de pensamento de um povo, de uma
crença ou de uma filosofia determinada, pratiquem atou
absolutamente contrários aos mais elementares princípios de
respeito à pessoa humana?
A
resposta já está no próprio título que demos a este item.
Estados
e líderes políticos não silo detentores dos ideais religiosos o
fllos6ficos que supõem encarnar.
Com
uma cruz na mão esquerda e uma espada na mão direita, reis e
conquistadores, que se proclamavam defensores e guardiãs da Fé
Cristã, reduziram povos à escravidão, destruíram civilizações,
pisotearam a pessoa humana.
Não
se pode confundir o Cristianismo com colonizadores supostamente
cristãos. Não se pode confundir o Cristianismo com uma civilização
que ainda hoje se proclama “ocidental e cristã”, sendo apenas
acidental, não sendo em nada cristã.
Da
mesma forma, não se pode confundir o Islamismo com Estados e líderes
políticos que se declaram muçulmanos, nem o Judaísmo com um
Estado judeu e com os líderes do respectivo Estado, nem o
Marxismo com Estados que pretenderam ter instaurado a utopia
marxista.
A
suposta identificação do legado espiritual com Estados concretos
é sempre impossível porque a herança imaterial aponta para a
perfeição, inspira os grandes vôos da condição humana,
enquanto a historicidade de Fitados e regimes é marcada por
falhas e limitações.
Já
no principio deste século Georges Sorel denunciava aquilo que
julgava ser uma “decomposição do marxismo”. Esse teórico
francês, que exerceu grande influencia no sindicalismo revolucionário,
via, nos albores mesmo da trajetória marxista, uma separação
entre os ideais do Marxismo e a sua realização concreta.
Fundadores
de Religiões, profetas, pensadores e filósofos estio mima do
poder estabelecido. Nenhuma Religião ou Filosofia pode ser
acorrentada pelos grilhões do poder. É da essência da utopia
religiosa e da utopia filosófica pairar acima das contingências
históricas. É da essência das profecias e dos grandes projetos
históricos ser uma estrela a apontar caminhos. É missão dos
profetas guiar os povos nas tortuosas estradas da vida, alimentar
o homem na atormentada angústia de seu destino.
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