Por uma Cultura da Paz
Vera Maria Candau
Não é fácil situar-nos diante da questão da paz na atual
situação do mundo e do nosso país. Corremos o risco ou de negar a
realidade ou de não reconhecer o sentido profundamente antropológico e
político-social do anseio de paz presente nos indivíduos e nos grupos
sociais.
Numa contraposição clássica, paz se opõe a guerra. Depois
da Segunda Guerra Mundial até praticamente o final da década de
oitenta, o mundo viveu sob a tensão da chamada Guerra Fria. Expressão
certamente curiosa que tentava distinguir situações onde a guerra
passava por operações bélicas, cada vez mais sofisticadas, daquelas
em que as “armas” em “frias”, se situavam no plano ideológico,
científico e cultural. Certamente neste período não faltaram também
as guerras “quentes” que ceifaram muitas vidas... No entanto, com a
queda do Muro de Berlim, com a derrota do socialismo real, a afirmação
da hegemonia absoluta do capitalismo como sistema econômico em sua fase
neoliberal, da democracia formal e
da perspectiva do “fim da história”, tudo parecia resolvido em sua
dinâmica fundamental e a verdadeira paz seria alcançada. Era somente
uma questão de tempo. O caminho estava traçado.
A
década dos 90 veio desmanchar este sonho. As guerras
“quentes” não desapareceram. Multiplicaram-se.
Com uma característica especial: a maioria se
desenvolve principalmente no interior dos países,
entre grupos sociais, culturais, religiosos, étnicos,
etc. As formas de violência se multiplicaram.
Além disso, hoje podemos falar também das “guerras
surdas” da fome, da exclusão, da pobreza, do narcotráfico,
da intolerância racial, da marginalização e do
preconceito. Estas guerras não matam menos nem
criam melhores condições para se construir a paz.
Os tratados negociados entre governos, por mais
frágeis que muitas vezes são, significam um passo
importante para buscar solução, construir a paz,
nas guerras convencionais. No entanto, a “guerra
surda”, é um fenômeno diluído na sociedade, que
penetra os diferentes espaços sociais. Afeta comportamentos
pessoais e coletivos, mentes, corpos e corações.
Necessita outros processos de negociação e outras
categorias para ser enfrentada. É neste contexto
que a educação tem de se perguntar qual é o seu
papel e como pode colaborar para a construção
de uma cultura da paz.
A PAZ NÃO EXCLUI O CONFLITO
É freqüente a afirmação de que paz é ausência
de conflito. Se nos colocamos nesta perspectiva, idealizamos a paz, pois
o conflito é inerente a vida humana. Não há crescimento pessoal sem
que passemos por momentos de crise e conflito. Também no plano social,
o conflito é parte da dinâmica de relações e confronto de
interesses. Numa sociedade pluralista, o reconhecimento da diferença,
em suas diversas configurações passa por processos de confronto
social, sem os quais é impossível que o reconhecimento e a conquista
de direitos se dê.
Para Federico Mayor (1999:2) , atual presidente da
UNESCO, não pode haver paz sustentável, sem desenvolvimento sustentável.
Não pode haver desenvolvimento sem educação ao longo da vida. Não
pode haver desenvolvimento sem democracia, sem uma distribuição mais
eqüitativa dos recursos, sem a eliminação das disparidades que
separam os países avançados daqueles menos desenvolvidos.
Nesta perspectiva a construção da paz exige uma
postura ativa. Não pode ser reduzida a uma cidadania passiva, se é
possível chamá-la de cidadania, que se limite aos aspectos formais dos
ritos democráticos. Construir a paz supõe ação, respeito pelos
direitos humanos, luta não violenta contra tudo que desconhece a
dignidade humana, afirmação do estado de direito, articulação entre
políticas de igualdade e de identidade, entre igualdade social e
diferença cultural.
EDUCAR PARA A
PAZ
É neste horizonte de
preocupações que nos queremos situar para procurar identificar algumas
notas características de uma educação para uma cultura da paz.
Não se pode falar de educar para a paz se, em primeiro lugar,
não se favorecer a análise
da realidade. Abrir os olhos, ser capaz de reconhecer as contradições
do mundo em que vivemos, é fundamental. Uma educação para a paz não
pode ser um processo que leva, de alguma forma, a velar a realidade, a
calar as diferentes vozes, particularmente as dos excluídos, a não
enfrentar a desigualdade e a exclusão crescentes na nossa sociedade. O primeiro passo para uma educação para a paz é andar com
os olhos abertos, não se negar a enfrentar a realidade por mais
dura e desconcertante que seja e não querer “ proteger” as crianças
e adolescentes da dimensão dura da vida. No entanto, não basta ser
capaz de ver, analisar, conhecer, é necessário também se situar
diante desta realidade, compreender os mecanismos que perpetuam a exclusão
e as desigualdades e produzem violência., assim como os esforços de
tantas pessoas, grupos, organizações para criar uma realidade
diferente.
A paz não pode ser construída como um elemento isolado. É
indissociável da justiça e da solidariedade. Paz, justiça e
solidariedade constituem um conjunto e não se pode separar qualquer
destes elementos dos demais. Querer a paz exige favorecer a justiça e
construir solidariedade. A paz é um produto que se constrói com estes
diferentes componentes. Não é somente uma meta a ser alcançada. É
também um processo, um caminho. Neste sentido, é importante radicalizar a capacidade de diálogo
e de negociação. Não construiremos a paz se não nos desarmarmos
das nossas armas materiais, mas também se não desamarmos nossos espíritos,
nossos sentimentos, tudo o que há em nós de negação do outro, de não
reconhecimento, de prepotência, de exclusão dos “diferentes”. Para
educar para a paz é fundamental desenvolver a capacidade de diálogo e
de negociação sem limites. Sempre é possível conversar, expressar a
sua palavra, resgatar o melhor de nossas experiências, ressituar as
questões, construir plataformas de negociação no plano interpessoal,
grupal e social. Trata-se de trabalhar muito a capacidade de escuta do
outro, de deixar-se afetar, de repensar as próprias convicções, idéias,
sentimentos, de desenvolver a capacidade de negociação, básica para
construir com outros, conjuntamente. Em sociedades e culturas autoritárias
como a nossa esta é uma dimensão fundamental.
A cultura da violência está cada vez mais presente nos
diferentes ambientes sociais, da família ao Estado. A escola não está
imune a esta dinâmica. A solução para esta problemática é, em
geral, buscada acentuando-se as políticas de segurança. As situações
passam a ser exclusivamente uma questão de segurança, de
responsabilidade da polícia. Mais polícia nas ruas e nas escolas, mais
repressão e punição, mais controle. É reforçada a lógica da
contraposição de forças, o que é antagônico a uma cultura de paz.
Uma educação para a paz procura desenvolver
uma cultura dos direitos humanos, que passa pelo reconhecimento da
dignidade de cada pessoa, pelo resgate da memória histórica, por
nomear os mecanismos que favorecem em cada um de nós e no corpo social
as reações violentas, pela expressão de sonhos partilhados, pela
construção de um horizonte comum de vida e de sociedade que assuma a
diferença positivamente.
No seminário promovido em novembro de 1999 pelo Instituto
Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) da Costa Rica, sobre a Educação
em Direitos Humanos na década de 90 no continente latino-americano, se
afirmou que hoje era importante reforçar três dimensões da educação
em Direitos Humanos. A primeira diz respeito à formação de sujeitos
de direito. A maior parte dos cidadãos latino-americanos temos pouca
consciência de que somos sujeitos de direito. Outro elemento
fundamental na educação de Direitos Humanos é favorecer o processo de
"empoderamento" (“empowermwnt”) principalmente orientado
aos atores sociais que historicamente tiveram menos poder na sociedade,
ou seja menos capacidade de influir nas decisões e nos processos
coletivos. O "empoderamento" começa por liberar a
possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa tem para que ela
possa ser sujeito de sua vida e ator social. O "empoderamento"
tem também uma dimensão coletiva, trabalha com grupos sociais minoritários,
discriminados, marginalizados, etc, favorecendo sua organização e
participação ativa na sociedade civil. O terceiro elemento diz
respeito aos processos de mudança, de transformação necessários para
a construção de sociedades verdadeiramente democráticas e humanas. Um
dos componentes fundamentais destes processos se relaciona a
"educar para o nunca mais", para resgatar a memória histórica,
romper com a cultura do silêncio e da impunidade que ainda está muito
presente em nossos países. Somente assim é possível construir a
identidade de um povo, na pluralidade de suas etnias, e culturas. Estes
componentes, formar sujeitos de direito, favorecer processos de
empoderamento e educar para o “nunca mais”, constituem hoje o horizonte de
sentido da educação em Direitos Humanos.
Uma quarta característica da educação para a paz é o reconhecimento
da pluralidade. Não querer uniformizar, não querer que todos
pensem da mesma maneira, nem atuem do mesmo modo. Supõe manejar a
pluralidade e a diferença. Romper com o etnocentrismo, não
hierarquizar os “outros”, pessoas, grupos sociais ou culturas, como
inferiores ou superiores a mim, ao meu grupo ou cultura. Procura
reconhecer a contribuição de cada um a partir da diferença. Uma educação
para a paz supõe uma educação para o reconhecimento da pluralidade e
da diferença, exige uma educação intercultural, que promova o diálogo
entre diferentes grupos e culturas.
A paz é uma aspiração humana profunda. Todos queremos a paz.
Conosco mesmo e com os demais. A paz social e a paz na dimensão planetária.
Aspiramos a um amadurecimento humano pleno que não esteja bloqueado
pelo medo, a insegurança, a falta de confiança nos demais, por
sentir-se excluído, pela falta de auto-estima e pelas diferentes formas
de violência. A educação para a paz supõe liberar o dinamismo profundo de
crescimento de cada pessoa e
de cada grupo humano, indispensável para se assumir a vida como uma
aventura positiva, para enfrentar riscos e empenhar-se em construir com
outros novas possibilidades de futuro. A sociedade nova que sonhamos
exige atores sociais comprometidos, processos coerentes com o que se
pretende alcançar, que enfatizem métodos pacíficos e não violentos
– a paz é processo e produto.
A paz é um modo de viver o humano, de enfrentar
os problemas e conflitos, de promover uma maneira não violenta
de lutar pelos direitos humanos, capaz de reconhecer o outro e
de realizar ações e processos coletivos. A paz é responsabilidade
de tod@s. Governo
e sociedade civil. Homens e mulheres. Crianças, adultos e idosos.
Afrodescendentes, indígenas, brancos, mestiços, etc. Todos temos que expressar nossa
voz. Somente na sinfonia de diferentes vozes podemos construir
a paz. |