Data das atrocidades
cometidas durante a Primeira Guerra Mundial a ideia de genocídio, da
possibilidade de serem cometidos crimes contra a humanidade e de se
preverem punições para tais factos. Entende-se, por consenso, que
houve genocídio, sempre que civis ou militares desarmados, presos ou
em situação inferior, frente a um poder militar ou policial, são
abatidos ou mutilados, havendo ou não um estado de guerra. O direito
internacional considera-o como um crime gravíssimo. Obviamente, estes
crimes só são reconhecidos e punidos pelos que detêm o poder. Se
quem tem o poder os comete, permanecem impunes e não são
considerados como tais.
Em nome das bandeiras da paz,
democracia, civilização, justiça, religião e, sobretudo, do
dinheiro, mercado e riquezas naturais foram e continuam a ser
cometidos infindáveis delitos dessa natureza. A maioria deles
permanece impune, sofrendo, quando muito, a condenação pública dos
intelectuais (escritores, professores, jornalistas, artistas, etc.)
que registam informações sobre esses factos. Estes, em diversos países
e situações de crise, são também alvos fáceis, porque normalmente
??m??E? as 'armas' que usam apenas produzem ideias. Logicamente, não faltaram
e não faltarão intelectuais prontos para racionalizar e justificar
genocídios, com argumentos débeis que desafiam o senso crítico
daqueles que os ouvem mas que agradam ao poder que servem.
Em matéria de horror, a Segunda Grande
Guerra, deixou para trás, em preto e branco, a memória das
carnificinas do período compreendido entre 1914 e 1918. Parecia que tínhamos
chegado ao limite nos campos de concentração, na política de terra
queimada, nos bombardeamentos convencionais e com armas atómicas
contra alvos civis. A história do século XX foi de uma violência
tremenda, documentada a cores e a preto e branco pelo cinema e por
outros registros macabros de triste memória. A matança continuou nos
chamados episódios quentes da Guerra Fria, que deixaram o saldo de
milhões de mortos e mutilados.
A defesa mais vigorosa da ideia da paz
e os documentos contemporâneos relativos aos direitos humanos
nasceram dos escombros da Segunda Guerra, assim como a Convenção de
Genebra nasceu da Primeira, na tentativa de limitar o horror ou,
talvez, de atender aos protestos populares. O movimento pacifista do pós-guerra
foi um dos responsáveis por impedir que se usassem de novo as armas
nucleares. Juntamente com o equilíbrio de poder bipolar, o pacifismo
concorreu para limitar a tragédia e para a localizar, impedindo a
generalização. Mas foi incapaz de evitar inúmeros casos de genocídio.
Uma lista, a mais violenta que a natureza já produziu, que deveria
envergonhar-nos como espécie biológica.
A descolonização da África e da Ásia
não impediu o aparecimento de inúmera??m??E?s guerras, com incontáveis
casos de genocídio passados e presentes. O fim do "socialismo
real", representado pela queda do Muro de Berlim, também não
trouxe a paz, nem impediu a sucessão de casos similares. De certa
forma, estimulou-a, como nos casos da antiga Jugoslávia e da velha
União Soviética. Aliás, já se tinham verificado antes, no leste
europeu e na Ásia vermelha, inúmeros casos. O pacifismo
norte-americano dos anos sessenta e setenta, como outro exemplo, foi
uma das razões da retirada do Vietname, uma guerra, como todas as
outras, começada e ganha no terreno da política. Mas nada disto
evitou a continuação dos crimes contra a humanidade.
Os Estados contemporâneos usaram e
usam da força para punir, aterrorizar e ganhar qualquer guerra ou
simples conflito social, quebrando a moral do 'inimigo' com a síndrome
do medo. Mesmo quando este 'inimigo' é nacional e civil. Este
'inimigo' na maioria dos casos era infinitamente mais fraco e
impotente e sua força residia sobretudo nas suas convicções ou inocência.
Se ele não existe, o poder inventa-o, desenvolvendo uma série de
justificativas para o massacre. Fazem parte delas, a necessidade nunca
revelada publicamente de usar o arsenal, de o testar e de fazer girar
o negócio altamente lucrativo das armas de guerra. Tem havido sempre
uma razão maior a considerar, tal como a luta contra o comunismo ou
sua defesa, a superioridade de raças e de crenças religiosas e a
justificativa ocidental de superioridade civilizacional. Do outro
lado, o ocidente é diabolizado e considerado a terra dos males sem
fim. O oriente veste o manto da pureza e da crença de que os seus
problemas são apenas aqueles que, desigualmente, vêm de fora para
d??m??E?entro da sua realidade.
Quando se trata de 'inimigos'
estrangeiros, tudo fica mais fácil, principalmente, quando se divide
a humanidade no binómio civilização-barbárie. O desenvolvimento
económico e tecnológico não conferiu a qualquer país a posição
de superioridade civilizacional, que incluiria, por exemplo, não
praticar o genocídio. Aliás a barbárie e a civilização existem,
em graus distintos, em todas a culturas.
Na América Latina, o sequestro, a
tortura e a execução extra-judicial, formas contundentes de genocídio,
foram usadas sistematicamente pelos governos, durante os períodos
ditatoriais, contra opositores armados e desarmados. Mesmo depois,
continuam, como antes das ditaduras, a serem usadas em alguns
conflitos sociais e, especialmente, na repressão violenta ao crime
comum, filho directo da miséria, da ignorância, da corrupção do
Estado e da celebração política e social da cultura da violência.
Os exemplos são muitos e variados. Não é fácil classificá-los,
tal a diversidade e a complexidade que os envolvem. Entretanto, não
é possível naturalizá-los, acreditando que não poderia ser de
outro modo.
A acção directa do século passado,
uma das bases do velho anarquismo, tinha quase sempre endereço certo.
Atentados contra o poder, os seus representantes e beneficiários. A
acção directa contemporânea, desenvolvida a partir dos anos
sessenta, foi perdendo direcção e legitimando progressivamente a
mesma lógica do inimigo. Tudo começou com a crença de que podiam
substituir à ação colectiva pela acção de pequenos grupos. Esta
crença, levada ao paroxismo nos anos sessenta, explica o
desdobra??m??E?mento de vários fenómenos posteriores. Nos anos setenta,
estava pronto o quadro da catástrofe. Nenhum destes movimentos chegou
ao poder. Os que estiveram ou estão perto, foi porque se aproximaram
da acção colectiva.
Alguns destes movimentos revolucionários
crepusculares legitimaram o uso da força bruta contra inocentes.
Entende-se o desespero destes grupos, frente ao facto de estarem em
estado de suprema opressão e, em muitos casos, de desvinculamento de
suas bases sociais. Mas, o seu destempero e falta de cuidado na
escolha dos alvos, facilitou a acção dos inimigos que se propunham
combater. O que a média e os governos ocidentais chamam de 'terror'
brota do sal da terra e fica mais difícil de funcionar quando as
causas de sua criação são atenuadas. Mas é bom lembrar que toda
guerra é política e apenas é possível ganhá-la neste terreno. As
acções tácticas destes movimentos acreditam certamente em conceitos
muito antigos, de fundamentação religiosa, tais como as ideias de
pecado e de castigo. Infelizmente, este moralismo antigo também é
apropriado por nações ricas e militarmente poderosas
O militarismo extremado, por mais que
se auto-considere legítimo e como resposta à opressão, pode levar
à perda do sentido das coisas e reabilitar a ideia do castigo ao que
lhe parece diferente. O perigo reside neste tipo de juízo, afinal o
mesmo do opressor. Como as guerras só podem ser ganhas ou perdidas no
terreno da política, a lógica do problema consiste em aproximar-se
ou diferenciar-se, ganhando aliados ou minando qualquer possibilidade
de apoio. O isolamento político equivale à morte em qualquer
conflito. Ganha, quem sabe negociar e propor soluções. Perde, qu??m??E?em
acredita piamente que o "poder está na ponta do fuzil".
Os atentados perpetrados no fatídico
dia 11 de Setembro, nos EUA, foram genocídios. Assim como, a política
externa do mesmo país contabiliza inúmeros casos de genocídio,
sempre justificados e jogados para debaixo do tapete. Mas, o que
confere o carácter de genocídio ao caso norte-americano é o facto
de, sem quaisquer justificativas plausíveis, terem sido vitimados
centenas de inocentes, desarmados e sem quaisquer possibilidades de
defesa. Nenhuma crença política ou religiosa pode justificar tal
barbaridade. Nem mesmo a humilhação, raiva e ressentimento causados
por se ver tanta injustiça no mundo, justificam matar civis sem
qualquer envolvimento directo e, na maioria dos casos, nem sequer
indirecto, com a política externa da maior potência do mundo. Assim
como, não temos quaisquer dúvidas de que, sob a benção de uma
retaliação, têm vindo a ser cometidos crimes similares no Afeganistão,
apesar da visão parcial e cerceada dos factos que envolvem esta
guerra. Como sempre, com o tempo, teremos maiores e assombrosas revelações.
Neste contexto mediático de propaganda
política de guerra, fica difícil saber com maior exactidão o que
realmente aconteceu no dia 11 de Setembro de 2001. Não há interesse
em esclarecer com mais detalhes os factos. Só podemos dizer que não
é possível acreditar integralmente nas versões que vêm sendo
apresentadas, que têm o claro intuito de mobilizar e justificar
qualquer acção no cenário de guerra e nos países que se consideram
directamente atingidos e ameaçados. Muitos justos estão pagando
pelos pecadores. Os tradicionais direitos de cidadania foram
re??m??E?lativizados em nome da segurança nacional, aliás um argumento típico
da época da Guerra Fria. A pós-modernidade não consegue produzir
nada muito diferente do passado moderno, os seus signos continuam os
mesmos. Quando necessário são recuperados, tais como a onda de
conservadorismo político, mediático e social que percorre o mundo no
momento presente.
Quaisquer formas de genocídio devem
ser abominadas por quem ainda acredita que é possível criar
contextos mais favoráveis à melhoria das condições de vida e de
liberdade dos povos. Mas, também, é preciso entender em que condições
tais práticas nascem, para poder combatê-las nas suas verdadeiras raízes.
Dez.01