A prática do genocídio ocorreu ao redor do mundo, em todos os
períodos da história. No Oriente antigo era comum que as tribos
vencidas fossem totalmente dizimadas, no Ocidente a Bíblia narra
diversos casos de genocídios. Ainda na Idade Antiga, o extermínio dos
cristãos e de Cartago por Roma são também exemplos de genocídios.
Sem contar a vel??m??E?ha rivalidade entre a Europa, terra da liberdade
e da lei e a Ásia, terra do despotismo e da escravidão, o que durante
muito tempo deu base ao pensamento de Aristóteles quanto à escravidão4.
Na Idade Média tais práticas podem ser exemplificadas com as
Cruzadas contra os albigenses, as Vésperas Siciclianas em 1282, o
extermínio dos anabatistas em Westfália em 1525 (do qual a noite de São
Bartolomeu é seu episódio mais marcante) e a morte sistemática dos
nativos americanos, africanos e asiáticos pelos colonizadores europeus
durante os séculos XVI e XIX5. Estes últimos justificados
sempre pela idéia de civilizá-los, embora todos saibamos quais os
interesses por trás destas práticas.
No século XX as práticas genocidas continuaram a acontecer.
Apesar de todo o avanço da civilização humana, foi o século mais
assassino de que temos registro, tanto na escala e na extensão,
caracterizando o genocídio sistemático6. Como exemplo,
podemos citar o massacre dos armênios pelos ??m??E?turcos, os crimes
praticados por Hitler contra os judeus, os expurgos stalinistas na URSS,
os vitimados pela guerra de Biafra na Nigéria, etc. Mais recentemente
podemos citar os crimes cometidos pelos tutsis contra os hutus em Ruanda
e os conflitos étnicos deflagrados após a desintegração da antiga
Iugoslávia, onde se pratica a chamada depuração étnica, que
significa dar homogeneidade étnica a uma zona, utilizando a força para
expulsar pessoas ou determinados grupos nesta área. Para tanto, foram
utilizados estupros para impedir que os muçulmanos se reproduzissem.7
Embora os casos de genocídio no Brasil não se encontrem muito
bem relatados pela historiografia como tal, podemos citar como exemplo o
extermínio dos índios pela Igreja Católica sob o pretexto de catequizá-los,
a destruição do povoado de Canudos pelas tropas da recém instaurada
República e a guerra do Contestado, em Santa Catarina, ocorrida entre
1912 e 1916.
3.
O Tribunal de Nuremberg
Apesar de todos esses casos de genocídio, este crime está
ligado intrinsecamente aos crimes praticados pelos nazistas durante a
Segunda Guerra. Isso se explica porque esse tipo de violência foi
tolerado durante muito tempo pela sociedade internacional, pois não
havia nenhuma forma de proteção efetiva ao homem como gênero em nível
internacional, embora já houvesse uma mentalidade de proteção aos
direitos humanos e, por conseqüência, do respeito à coletividade,
como forma de organização humana. O uso da força em plano
internacional sempre foi justificado pelas razões do Estado e sua
necessidade de se expandir pela conquista de outros povos, em um
primeiro momento, e depois pela necessidade de ampliar seu domínio econômico,
após a acumulação de capitais. Somente com a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é que passou-se a admitir,
ainda que timidamente, a proteção do homem no plano internacional.
Esse ideal ??m??E?de proteção à pessoa, contida no pensamento liberal
propagou-se no século XIX por força da expansão do liberalismo, sob a
forma do imperialismo (apesar de não ter impedido práticas genocidas
na África e na Ásia, como a guerra do ópio). No século XX, o fenômeno
dos refugiados, após a Primeira Guerra, e a Revolução Russa
consolidaram a idéia de proteção à pessoa humana8 logo no
início do século. Essa mudança de mentalidade gerou alguns efeitos,
como a proibição ao tráfico de escravos já no século XIX e uma
declaração celebrada entre França, Inglaterra e Rússia em 1915,
repudiando o massacre dos armênios, onde se falava em “novos crimes
contra a humanidade e civilização”9 e ainda a tentativa
frustrada de se criar um Tribunal Penal Internacional sob os auspícios
da Liga das Nações para julgar estes crimes, fracassada ante a
dificuldade de se impor sanções em nível internacional. Justamente o
maior problema da aplicação de um Direito Internacional de conteúdo
humanitário.
Importa é que ao final da Segunda Guerra, a sociedade
internacional não tolerar que cerca de 5 milhões de pessoas fossem
mortas10 impunemente, que os reféns dos campos de concentração
fossem objeto de experiências médicas para estudo com gases letais e
na indústria (por exemplo, fabricava-se abajur com pele humana, botões
com ossos e sabão com o resto do corpo)11. Além do que foi
a primeira vez na história que foi
utilizada uma burocracia organizada, sendo as práticas executadas por
pessoas comuns, num sistema que visava a restringir todo tipo de
liberdade individual12.
Destarte, as potências vencedoras da guerra decidiram, por influência
dos EUA, criar um Tribunal para julgar os crimes cometidos pela Alemanha
durante a guerra, que chamou-se oficialmente Tribunal Militar
Internacional, instalou na cidade de Nuremberg e julgou indivíduos
pelos crimes de conspiracy
(figura do direito anglo-saxão, um acordo de vontades para um plano
criminoso13); crimes contra a paz, que é a agressão não
justificada; crimes de guerra, violação das leis que regulam a guerra
e os crimes contra a humanidade.
A definição dos crimes contra a humanidade, de acordo com o
Estatuto do Tribunal, pode ser considerada o embrião da moderna definição
de genocídio, pois as condutas descritas se assemelham ao que viria a
se definir como genocídio, de acordo com a Convenção de Londres de
1948 e Lei 2889/56. A diferença é que estes crimes contra a humanidade
dev??m??E?em ser praticados durante o tempo de guerra e não há o fim especial
de agir, que viria a caracterizar o genocídio.
Embora o Tribunal tenha sido a maior conquista no plano da
repressão aos crimes internacionais, foi criticado por diversos motivos14.
O primeiro é que não respeitou os princípios da legalidade e da
anterioridade da lei penal. Não havia tratado ou lei interna que
previsse tais crimes. Aliás, a expressão “genocídio” só foi
criada em 1944 por Lemkin, e o genocídio foi capitulado nos crimes
contra a humanidade sem nomen
juris próprio15. Durante o julgamento não foi citada
nenhuma vez a expressão genocídio. Segundo, era um tribunal de exceção,
constituído pelos vencedores, o Tribunal não teria legitimidade, nem
pelo direito interno ou internacional para julgar estes crimes. Era um
Tribunal criado pelos vencedores para dar aparência de legalidade a uma
forma de vingança. Terceiro, que a responsabilidade internacional é do
Estado, e não do indivíduo. Por último, que os aliados tinham
cometido práticas semelhantes, como no caso do almirante Nimitz16.
&n??m??E?bsp;
A seu tempo o Tribunal de Nuremberg foi criticado principalmente
por penalistas, que viam no Tribunal uma violação inadmissível dos
princípios básicos do direito penal, em especial do princípio
nullum crimen sine lege.
Estes autores defendiam que o princípio da legalidade também é uma
garantia fundamental de proteção da pessoa humana. Os estudiosos do
direito internacional, embora considerassem estas críticas procedentes,
defendiam a validade do Tribunal, afirmando que deveria se
admitir outras fontes formais da lei penal neste caso, como o costume,
para proteger uma norma de direito natural. Eles defendiam que a violação
deste princípio tinha sua razão de ser, pois tamanhas atrocidades não
poderiam permanecer impunes.
De acordo com CELSO MELLO, JESCHECK teria dito, em defesa do
Tribunal de Nuremberg, o seguinte "é de se concluir assinalando
que o próprio Direito Penal foi no início aplicado aos ´débeis e
vencidos´"17. Tal assertiva é inadmissível, pois
muito embora esta tenha sido realmente a gênese do Direito Penal18,
tal perspectiva é totalmente incompatível com a proteção dos
direitos humanos e a aplicação de um Direito Penal de garantias, de
fundo humanístico.
Cumpre ressaltar que este tribunal, embora não seja um exemplo
de justiça, teve seus aspectos positivos, pois consolidou a posição
do homem como sujeito de direito internacional, ou seja, ao mesmo tempo
em que é titular de direitos, também tem responsabilidade no plano
internacional.
4.
A Convenção para Prevenção e Repressão do Genocídio
Em resposta a essas
críticas, principalmente quanto à reserva legal, foi criada a Convenção
sobre a Prevenção e Repressão do Genocídio, em 1948. Ela definia que
o crime de genocídio é um crime internacional, podendo ser praticado
em tempo de guerra ou paz. També??m??E?m diferenciou os crimes contra a
humanidade do genocídio; este é espécie e os outros são gênero,
pois o primeiro exige um
especial fim de agir, qual seja, de exterminar o grupo no todo ou em
parte19.
Definiu também o genocídio como “qualquer dos seguintes atos,
cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do
grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de
membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de
existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou
parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do
grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para
outro grupo”.
O primeiro comentário que se faz é que a diferença entre raça
e etnia até hoje não foi definida de maneira segura, de acordo com a
moderna antropologia. Segundo é a exclusão dos grupos políticos e
culturais. Os grupos políticos foram excluídos pela dificuldade em
assentar seus limites e pela conjuntura da guer??m??E?ra fria (a dissolução
dos partidos comunistas, por exemplo). Isso dá o direito ao Estado de
eliminar grupos para atingir seus fins políticos20, como
fizeram muitas ditaduras latino-americanas, como no Brasil. A Comissão
que presidiu a Convenção, de acordo com Quintano Ripollés, excluiu os
grupos culturais e políticos para não desvirtuar o objetivo da conferência,
pois a ampliação seria desmedida e tornaria a conferência inútil21.
No entanto, o próprio Lemkin definiu o genocídio como “todo projeto
sistemático que tenha por objetivo eliminar um aspecto fundamental da
cultura de um povo”22, admitindo, portanto, o genocídio
cultural.
Considerou-se também que o genocídio cultural seria conseqüência
do genocídio físico. O Esboço de Anteprojeto do Código Penal - Parte
Especial, de 1994, previu as hipóteses de genocídio político e
cultural, afinal o objetivo é proteger todo e qualquer tipo de grupo de
perseguições. O Projeto de Nova Parte Especial de 1999, elaborado pelo
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária também incluiu
o genocídio cultural.
Não obstante a ??m??E?dificuldade dos conceitos, o que poderia implicar
em graves prejuízos para o princípio do nullum crimen sine lege
certa, e à segurança jurídica, é imperdoável que não se tenha
sido estabelecida, após 1948, qualquer tentativa de fixação destes
conceitos. Afinal, a necessidade de proteção à pessoa evolui, para áreas
onde não atuava, o que implica novas formas de atuação da sociedade
internacional.
Contudo, a maior crítica que se faz é quanto à questão da
competência. O art.6o diz que a competência é da justiça
interna e subsidiariamente da Corte Criminal Internacional. Isso é inútil,
pois dificilmente o auto-genocídio será julgado internamente, como no
caso do Camboja, durante a ditadura de Pol Pot, que dizimou um sexto da
população deste país.23 A exemplo da inutilidade dessa
regra, temos o exemplo de Ruanda, que solicitou a criação de um
tribunal ad hoc para julgar
tais crimes por reconhecer sua parcialidade24.
O mesmo dispositivo prevê a competência subsidiária da Corte
Criminal Internacional. Durante muito tempo a criação des??m??E?ta Corte não
passou de mera ideologia25, devido à conjuntura da Guerra
Fria, o que levou Heleno Fragoso a afirmar que a punição destes crimes
seria apenas quimérica. No entanto, os trabalhos em relação à sua
criação evoluíram e o Estatuto de Roma, de 1998, prevê a criação
da Corte assim que 60 Estados ratifiquem a Convenção. Talvez isso
demore, mas a criação da Corte é hoje uma realidade e não um sonho
utópico. Sua criação promete ser a resposta para os Tribunais ad
hoc como Nuremberg e aos problemas decorrentes da jurisdição
interna.
Cumpre
lembrar que, além de Nuremberg foram criados os Tribunais de Tóquio,
da Iugoslávia e de Ruanda para julgar crimes de genocídio e, bem como
Nuremberg, podem ser criticados quanto à competência de outros Estados
para o julgamento, pois seria impossível um julgamento "entre
iguais". Além do mais, estes Tribunais são criados pelas grandes
potências apenas por contingências políticas,
daí porque a maioria dos casos de genocídios neste século não
terem sido julgados, como os expurgos stalinistas. Ressalte-se ainda que
os Tribunais da Iugoslávia e de Ruanda jamais seriam possíveis antes
da derrocada do socialismo, em razão de interesses político-econômicos,
embora o problema étnico já fosse de longa data.
 ??m??E?;
Podemos
concluir que a Convenção não cumpre seu propósito de maneira
efetiva, pois não protege os grupos políticos e culturais e não
estabelece uma jurisdição imparcial para julgar estes crimes. Além
disso, vários Estados que ratificaram a Convenção o fizeram com
reservas, o que torna seus efeitos quase nulos26.
A
questão das reservas está ligada a questão da soberania estatal que,
hoje, é um conceito criticado e que tem sido cada vez mais esvaziado em
face do fenômeno da globalização. Portanto, as reservas não devem
ser obstáculo para a aplicação irrestrita
da Convenção. Apesar disso, a soberania ainda é um motivo muito forte
para que a competência da Corte Internacional seja subsidiária,
prevalece o princípio locus
regit actum O ideal seria que sua competência fosse originária e
exclusiva, o que afastaria totalmente os problemas da jurisdição
interna. Ainda vai levar algum tempo para que a soberania seja
relativizada e a Corte possa exercer jurisdição exclusiva.
Apesar das críticas, a Convenção deve ser elogiada porque
descaracteriza o genocídio como crime de guerra e por diferenciá-lo
dos crimes contra a humanidade pelo especial fim de agir. Além de ter
contribuído para que os Estados incluíssem o genocídio como crime em
suas legislações. O próprio Estatuto de Roma adota quase que
inteiramente a definição de genocídio formulada pela Convenção.
Isso não impede que ele não seja criticável por não incluir os
grupos políticos e culturais no âmbito de sua proteção, apesar de
terem cessado os motivos que levaram à exclusão desses grupos pela
Convenção de 1948.
5.
O Genocídio no Direito Brasileiro
A Convenção de Londres foi quase que inteiramente repetida pela
Lei 2889, de 1o de outubro de 1956. Esta lei apresenta
algumas discussões importantes e imperfeições que deverão ser
analisadas. Em primeiro lugar, a lei prevê cinco modalidades de genocídio,
embora só uma delas, a alínea “a” do art.1 pode ser considerada
??m??E?genocídio propriamente, pela etimologia da palavra (genos,
raça; occidare, matar). Os
outros casos são apenas casos assemelhados ao genocídio27.
Em todos os casos requer-se o especial fim de agir, de exterminar o
grupo no todo ou em parte.
Não há, em princípio, nenhuma razão para que o genocídio
seja tratado em lei especial, devendo ser tratado no Código Penal. Fez
bem a comissão do Anteprojeto de 1994 em incluir este crime no corpo do
Código, no Título dos Crimes Contra o Estado Democrático e a
Humanidade28. O genocídio está previsto nos Códigos Penais
europeus mais recentes, como o espanhol, o português, o francês e o
alemão.
As características do crime de genocídio foram primeiramente
apresentadas por Miaja de la Muela: “a) é um delito internacional da
maior gravidade ao violar normas internacionais que protegem a pessoa
humana; b) é um crime
comum, que significa estar o seu autor sujeito a extradição;
c) é um de??m??E?lito intencional, isto é, doloso;
d) é um delito continuado, sendo que ele não se consuma em uma
única ação; e) surge
como um delito individual, isto quer dizer que não se pode fugir a sua
responsabilidade alegando-se ser um “crime de estado”.29
Pode se classificar o genocídio em físico (assassinato e atos
que causem a morte); o genocídio biológico (esterilização, separação
de membros do grupo) e o genocídio cultural (atentados contra o direito
ao uso da própria língua; destruição de monumentos e instituições
de arte, história ou ciência)30. O genocídio cultural não
é protegido pela Lei 2889, mas previsto nos Anteprojetos de Código
Penal de 1994 e de 1999.
No que toca a objetividade jurídica, o crime de genocídio visa
a proteger a vida em comum dos grupos de homens em primeiro plano, muito
embora o genocídio e seus casos assemelhados possam atingir outros bens
jurídicos mais diretamente, como a vida ou a integridade física. Não
significa ??m??E?considerar a humanidade como bem jurídico, mas assegurar a
proteção a pessoas que integram certos grupos que outros por sua
nacionalidade, raça ou religião.31 Os mais recentes
Anteprojetos de Código Penal classificam o genocídio como crime contra
o Estado Democrático de Direito, pois é dever do Estado garantir a
diversidade humana, garantindo a pacífica convivência dentro de seu
território. Em sentido oposto, o Código alemão prevê o genocídio
como crime contra a pessoa, mais precisamente crime contra a humanidade,
não obstante a procedente crítica de Heleno Fragoso.
Sujeito ativo é sempre o homem, não se admite a
responsabilidade das pessoas jurídicas para este crime. Por força do
direito anglo-saxão cogitou-se da responsabilidade penal da pessoa jurídica
durante o Tribunal de Nuremberg mas essa sugestão não foi aprovada,
ainda que por estreita margem. Vale lembrar que diversas legislações,
como a francesa e a dos países anglo-saxões prevêem a punição da
pessoa jurídica. Esta providência pode trazer graves violações ao
princípio do non bis in idem, quando se punir a pessoa jurídica
(geralmente o Estado) e a pessoa natural, ou dificuldades quando houver
concurso entre a pessoa física e a pessoa jurídica.
No
Brasi??m??E?l ainda não se pode falar em responsabilidade penal da pessoa jurídica,
apesar da obscura previsão da Constituição e da Lei dos Crimes
Ambientais32. Em regra os sujeitos ativos serão chefes de
governo e militares, em virtude das especificidades deste crime, mas
nada impede que qualquer pessoa possa cometer genocídio. A pena será
apenas aumentada se o crime for praticado por governante. Em regra, também,
o genocídio será praticado por uma pluralidade de pessoas, na medida
em que geralmente exige um plano criminoso mais elaborado, mas nada
impede que só agente realize o crime.
A questão da obediência hierárquica suscita algumas controvérsias.
Já no Tribunal de Nuremberg ficou consagrado que a obediência hierárquica
não deve ser considerada nestes casos33, é apenas uma
atenuante de pena. A defesa em Nuremberg alegou, muitas vezes, que os
acusados estavam apenas cumprindo ordens. A Rússia chegou inclusive a
propor uma emenda à Convenção de 1948 afirmando que a obediência
hierárquica não isenta de responsabilidade, mas não foi aceita34,
pois presentes os requisitos legais da obediência hierárquica deve
haver exclusão da culpabilidade. Caso contrário, estaria sendo violado
o princípio da culpabilidade, criando-se um direito penal de autor,
baseado na periculosidade daquele que executou a ordem. O que é difícil
é imaginar na prática uma ordem genocida que não seja manifestamente
ilegal.
??m??E?font>
Pode-se argumentar, por outro lado, que os executores geralmente
não têm o especial fim de “exterminar o grupo no todo ou em
parte”. Nesse caso, desqualificar-se-ia a ação. Como nesse caso há
uma pluralidade de agentes, deve ser aplicada a teoria do domínio do
fato, predominante na doutrina, quanto ao concurso de pessoas. Em
primeiro lugar, devemos considerar que o especial fim de agir é uma
elementar subjetiva do tipo de genocídio, devendo se comunicar aos
executores desde que eles tenham consciência do dolo específico do
superior. Portanto, se um Estado patrocina um projeto genocida, o
subordinado que colabora com este projeto também comete genocídio.
Importante também é delimitar com precisão o autor do crime de
genocídio, visto que há geralmente um concurso de pessoas. De acordo
com a teoria do domínio do fato, não só
o executor da ordem (autor imediato) deve ser considerado autor,
mas também o superior, pois detém o domínio do fato. Par??m??E?a se
determinar o “homem de trás” neste crime deve ser utilizada a
teoria do domínio da organização proposta por Roxin, já que no genocídio
praticado por um Estado há uma organização rigidamente hierarquizada
, onde o executor aparece como elemento fungível, independentemente de
sua culpabilidade, sem afetar o domínio do fato do homem de trás. O próprio
Roxin entende que o domínio da organização pode ser fundamentado por
uma hipótese de organização política, militar ou policial que se
apodera do aparelho de Estado, como o regime nazista.35 Vale
ressaltar que esta teoria foi criada logo após a Segunda Guerra
Mundial, seguindo a tendência do direito alemão de evitar que um novo
regime totalitário. Contudo, esta teoria tem sua aplicabilidade
bastante duvidosa, em razão da abrangência que pode alcançar.
Sujeito
passivo do crime de genocídio pode ser qualquer pessoa pertencente a
grupo nacional, étnico, racial ou religioso. A doutrina admite que o
genocídio pode ser praticado contra uma só pessoa, devendo a
pluralidade de vítimas ser considerada apenas para aplicação de pena.
A morte de um membro do grupo seria uma forma de exterminar o próprio
grupo, predominaria o elemento subjetivo. Isto é inadmissível, pois
estar-se-ia criando um direito penal de intenção. A Lei fala em
membros do grupo, se admitíssemos essa hipótese, estaríamos alterando
as características e a gravidade da ação proibida, criando uma
interpretação analógica in
malam partem, inadmissível. A conduta deve ser interpretada nos
limites exatos de su??m??E?a definição legal36.
Em
sentido diametralmente oposto, Canêdo defende que a morte de uma pessoa
caracteriza tentativa de genocídio. Modestamente, acreditamos que estas
duas teses são insuficientes e precisam ser esclarecidas. O que
caracteriza o genocídio é o seu especial fim de agir. Portanto, se a ação
se dirigiu à produção deste resultado específico mas só produziu a
morte de um indivíduo do grupo, configura-se o genocídio tentado, em
razão das exigências do tipo objetivo. Por outro lado,
a morte de uma pessoa do grupo pode ser o meio utilizado para se
chegar ao extermínio do grupo, por exemplo, um líder religioso. Se o
grupo se dizimar, em razão desta morte, pode se considerar o homicídio
consumado.
O
crime impossível pode ocorrer quando, por absoluta ineficácia do meio,
não é possível o extermínio do grupo. Por exemplo, explodir uma
sinagoga, com o objetivo de exterminar os judeus. Nesta hipótese,
haveria tão somente um homicídio qualificado, por motivo torpe, em
concurso formal.
??m??E?
Quanto ao tipo objetivo, a violência deve ser praticada contra
membros de grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Existe um certo
consenso de que o grupo nacional é aquele que “consegue criar uma
consciência, uma alma coletiva, que se traduz pela vontade de viver
em comum”37.
Por
sua vez, a antropologia ainda não chegou a critérios definitivos
acerca do que sejam os grupos étnicos e raciais O conceito de etnia é
normalmente obtido através de critérios culturais, estendendo-se a
minorias que mantenham um modo de ser distinto, inclusive reivindicando
autonomia política38 .Já o conceito de raça é obtido por
critérios biológicos, embora não haja, hoje, de acordo com a moderna
antropologia, raças puras. Ainda há, no entanto, muita confusão entre
estes conceitos.
O
que importa é considerar a raça ou a etnia como base do
estabelecimento de categorias e discriminação, com a criação de
estereótipos que conduzem ao ódio e à desigualdade e, pois, à violência39.
Quanto ao grupo religioso, não importa a raça ou nacionalidade das
??m??E? pessoas.
Os
Anteprojetos de 1994 e 1999 estabeleceram a proteção ao genocídio
cultural, protegendo os grupos culturais e políticos. Embora esta proteção
seja necessária, não há qualquer parâmetro anterior, seja na Convenção
de 1948 ou na Lei 2889 para definir e, portanto, delimitar o alcance
destes grupos, de modo a assegurar a correta aplicação do dispositivo
e o respeito à legalidade. A aplicabilidade deste dispositivo fica,
portanto, bastante prejudicada.
O tipo subjetivo do genocídio é sempre o dolo, acompanhado de
um fim específico de agir. Não há genocídio culposo. Sem a intenção
de exterminar o grupo no todo ou em parte não haverá genocídio ou
qualquer outro caso assimilado, podendo ser um homicídio qualificado ou
lesões corporais.
Nada impede que o genocídio seja praticado por omissão, pois em
princípio todos os crimes comissivos podem ser praticados por omissão
imprópri??m??E?a. A exceção é o art.1, c, que prevê “submeter”, o que
indica que neste caso que o genocídio só pode ser praticado por uma ação
positiva, através de um agir.40
A sistemática das penas na Lei 2889 é caótica, primeiro porque
não comina penas, mas remete as penas a dispositivos do Código Penal,
que muitas vezes não se adequam aos tipos descritos como genocídio,
melhor seria que ela cominasse sanções em seu corpo. Quanto a hipótese
de “matar membros do grupo”, a solução adotada pelo legislador é
imperfeita, pois as penas são as mesmas cominadas ao homicídio
qualificado, o que é desproporcional, pois o genocídio requer uma
pluralidade de vítimas para que se consume. A punição para um
Entretanto não se pode fazer muita coisa a respeito, pois deve
ser levado em conta que o tempo máximo de execução da pena no Brasil
é de 30 anos, pena máxima cominada tanto para o homicídio qualificado
quanto para o genocídio. Não adianta cominar penas acima deste limite
somente para satisfazer a fins de prevenção geral. Esta medida cria
apenas uma função simbólica do Direito Penal, o que é inaceitável
frente às idéias de i??m??E?ntervenção mínima e proporcionalidade.
O Projeto do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
prevê penas de 20 a 30 anos para o genocídio e os casos assemelhados,
o que por um lado é positivo, pois diferencia o tratamento do genocídio
do homicídio mas é um absurdo punir as formas assemelhadas da mesma
maneira, penas de 3 a 12 anos de reclusão, pois há uma nítida diferença
de gravidade entre as condutas.41
A solução dada pelo anteprojeto de 1994 comina penas de 8 a 15
anos mais a pena correspondente à violência, que é um critério mais
proporcional42, sob pena de se incorrer em bis in idem.
Durante muito tempo discutiu-se a questão da prescrição do
crime de genocídio. A Convenção sobre a Imprescritibilidade dos
Crimes Contra a Humanidade, de 1968, não foi ratificada pelo Brasil e a
Lei 2889 não lhe faz qualquer menção Entre os internacionalistas, a
posição dominante é que esta norma é de ius
cogens43, devendo ser aplicada, mesmo que não faça
parte do ordenamento jurídico formalment??m??E?e. Entre os penalistas o
pensamento, aliás dominante, era que o genocídio deveria seguir as
mesmas regras do Código Penal.
A
questão hoje encontra-se pacificada, admitindo a prescritibilidade do
genocídio, como expressão do poder soberano do Estado, que determina a
política criminal a ser seguida44. No entanto, se o genocídio
for considerado crime contra o Estado Democrático, como propõe o
Anteprojeto atualmente em tramitação, ele será imprescritível, pois
este tipo de crime é imprescritível por previsão constitucional
(art.50, LIV).
A
ação de “matar membros do grupo” em nada difere do homicídio.
Quanto aos casos assemelhados, também se protege a integridade
do grupo nacional, étnico, racial e religioso ou racial com o objetivo
de preservar a diversidade do gênero humano.
??m??E?
O primeiro caso assimilado é “infligir lesões graves a
membros do grupo” e deve ser entendida como as hipóteses dos parágrafos
1o e 2o
do Código
Penal.
Existe uma divergência se a ação de submeter o grupo a condições
físicas ou morais, capazes de ocasionar a eliminação de todos os
membros ou parte deles” é hipótese de genocídio físico ou biológico45.
O que se quer é punir o fato de submeter pessoas a condições capazes
de eliminar o grupo no todo ou em parte. É um crime permanente. Não se
exige a superveniência do resultado morte, o que importa é a
possibilidade de causar a eliminação do grupo.
As outras modalidades são “impedir nascimentos” e
“transferir crianças” são formas de eliminar fisicamente o grupo,
impedindo que ele se desenvolva e se ren??m??E?ove. A transferência criminosa
é aquela que se efetua através de violência ou grave ameaça. A
definição de “criança” é deixada em aberto, entende-se que é o
indivíduo de até 12 anos. São também hipóteses de crime permanente.
É admissível a tentativa de genocídio e seus casos
assemelhados, exceto as alíneas “c” e “d” do art.1o
da Lei 2889. Adota-se o critério subjetivo, pois a punição para o
crime tentado é a mesma do crime consumado, o que é desproporcional,
assim como a punição para prática de genocídio, que é um crime de
perigo abstrato, violando o princípio da culpabilidade (exige apenas a
violação formal da norma para que se consume).
6.
Conclusão
&nbs??m??E?p;
Podemos afirmar que no plano internacional, a proteção da
pessoa humana contra o crime de genocídio ainda está longe de ser
perfeita. A exclusão dos grupos políticos e culturais é inadmissível.
Por exemplo, como não considerar genocídio a proibição dos
timorenses em falar sua própria
língua realizada pelo governo indonésio, da mesma maneira, como
admitir a existência dos “desaparecidos” durante as ditaduras
militares na América Latina? No entanto, esses casos não podem ser
considerados desta maneira. Além do mais, cremos que só será possível
uma real proteção contra esses atos quando for instaurarado um
Tribunal permanente, com competência exclusiva para julgar estes casos,
o que ainda não é possível pelo problema da soberania estatal.
Apesar de toda a evolução da proteção dos direitos humanos em
nível internacional, concordamos com Nilo Batista que não existe
realmente um respeito à pessoa humana no plano internacional.46
Prova disso é a demora da ação dos organismos internacionais para
punir condutas que constituem genocídios, como a guerra da Chechênia
&n??m??E?bsp;
No que tange o genocídio e seu tratamento pelo Direito Penal
brasileiro, podemos concluir que a Lei 2889 apresenta várias deficiências
no tocante às penas, principalmente por violar o princípio da
proporcionalidade e também no que toca a diferenciação entre o genocídio
propriamente dito e seus casos assemelhados. Esperamos que o Anteprojeto
de Código Penal venha a dar um tratamento mais adequado a este crime,
principalmente pela tutela dos grupos políticos e culturais e por um
sistema de penas que obedeça aos critérios da proporcionalidade. Também
é inadmissível tratar a tentativa de genocídio da mesma maneira
que o crime consumado, bem como o tratamento para a associação
para prática de genocídio.