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 Anotações
              sobre a História Social dos Direitos Humanos   Por onde começar uma história dos
              Direitos Humanos? Isto depende do ponto de vista que se adote. Se
              for uma história filosófica, teremos que recuar a algumas de
              suas remotas fontes na antigüidade clássica, no mínimo até ao
              estoicismo grego, lá pelos séculos II ou III antes de Cristo, e
              a Cícero e Diógenes, na antiga Roma. Se for uma história
              religiosa, é possível encetar a caminhada, pelo menos no
              ocidente, a partir de certas passagens do Sermão da Montanha. Se
              for uma história política, já podemos iniciar com algumas das
              noções embutidas na Magna Charta Libertatum, que o rei inglês
              João Sem Terra foi obrigado a acatar em 1.215. Ou podemos optar
              por uma história social - melhor dizendo, por um método de
              estudo que procure compreender como, e por quais motivos reais ou
              velados, as diversas forças sociais interferiram, em cada
              momento, no sentido de impulsionar, retardar ou, de algum modo,
              modificar o desenvolvimento e a efetividade prática dos Direitos
              Humanos na sociedade. Este último modo de abordagem pode
              tornar-se muito rico e interessante, pois, ao conduzir às
              conexões entre as leis e as condições histórico-sociais
              concretas que induziram ao seu surgimento, termina também por
              integrar, ao menos, aquelas referências mais indispensáveis -
              econômicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. - que
              estiveram na gênese dessas condições. Ademais, proporciona a
              vantagem adicional de já situar o ponto de partida de nossa
              investigação no século XVIII ou, no máximo, em certos
              antecedentes históricos da baixa Idade Média - o que convém à
              concisão e permite transitar de modo menos árduo da noção
              moderna para a noção contemporânea dos Direitos Humanos. Essa
              escolha metodológica nos remete, desde logo, a uma questão à
              primeira vista intrigante. Trata-se do seguinte: se boa parte do
              espírito geral e das aspirações que compõem o conjunto de
              noções do que hoje chamamos de Direitos Humanos é muito antiga,
              por quê durante alguns milênios produziu efeitos sociais tão
              escassos, só exercendo influência fragmentária ou transitória
              na vida real e quotidiana da maioria dos humanos? Por quê essas
              noções só começaram a vingar precisamente no final do século
              dezoito, precisamente em alguns países do hemisfério ocidental,
              na forma e conteúdo específicos que assumiram? O senso comum tem
              uma explicação à mão: antes daquela época, a Humanidade
              "não estava preparada" para aquelas belas idéias. Como
              assim? Parece claro que os oprimidos, os explorados e humilhados
              de todos os tempos sempre estiveram "preparados" para
              obter liberdade, igualdade, respeito - quase nunca deixaram de
              aspirar ou de lutar por isso. Uma outra parte da Humanidade - os
              que foram, são, ou pensam que poderão vir a ser beneficiários
              da exploração, opressão ou intolerância que exercem - é que
              parece estar sempre "despreparada" para aceitar que
              aquela maioria alcance tudo isso. Outra resposta, do mesmo senso
              comum, poderia ser: faltavam aqueles "grandes homens",
              com "grandes idéias", que só no século dezoito
              surgiram para "inspirar" ou "conduzir" as
              pessoas. Este argumento também não resiste à verificação. Em
              quase todas as épocas, em quase todos os países, quando
              reuniram-se as condições históricas adequadas, surgiram os
              filósofos, os líderes, os antecipadores, os profetas e os
              dirigentes necessários a seu tempo, além de umas outras tantas
              "grandes mentes" que sonharam, planejaram ou tentaram
              colocar em prática utopias impossíveis ou historicamente
              prematuras. Não resta dúvida de que as idéias inovadoras,
              usualmente sintetizadas de modo mais apurado pelos intelectuais a
              partir do patrimônio cultural da Humanidade e da vivência social
              concreta desses pensadores, são muito importantes, ainda mais se
              oferecerem saídas mais ou menos adequadas a inquietações
              sociais que a sua época já suscitou ou está em vias de
              suscitar. Mas não basta a simples existência de idéias
              transformadoras para que o mundo se transforme. É necessário,
              como se sabe, que as idéias conquistem um grande número de
              seguidores dispostos a colocá-las em prática, mesmo correndo
              riscos, o que só acontecerá se eles se convencerem, mesmo de
              modo algo intuitivo, de que essas idéias vão na mesma direção,
              tornam mais clara ou organizam a luta que já travam por seus
              interesses, necessidades ou aspirações coletivas. Depois, será
              preciso ainda que estejamos diante de condições sociais e
              históricas que favoreçam ou não impossibilitem a mudança
              pretendida e que, além disso, os interessados consigam
              desenvolver os meios apropriados para vencer a resistência, não
              raro feroz, dos que se opõem à transformação. É muito
              difícil combinarem-se todas essas condições. E, no entanto,
              elas estavam reunidas, de modo mais ou menos acentuado, em alguns
              países europeus no final do século XVIII, particularmente na
              França de Luís XVI. O quê pretendiam e por quais causas lutavam
              aqueles franceses que, em nome dos Direitos Humanos, fizeram uma
              revolução tão sangrenta? Contra o quê lutavam ? A resposta
              pode começar pela última das perguntas: lutavam contra o
              feudalismo, ou o que restava dele. Não é propósito investigar
              aqui o feudalismo mas, para a compreensão dos primórdios da
              história social dos Direitos Humanos, será útil trazer à
              memória seus traços mais gerais. Barões, bispos, servos da gleba
              Como se sabe, o feudalismo foi um certo modo de organização da
              sociedade e da produção social que dominou, durante um período
              imenso da história, toda a Europa(1). Sua primeira
              característica a que convém chamar a atenção é que baseava-se
              numa rígida estratificação social fundada no princípio do
              privilégio de nascimento. Daí derivavam amarras sobre todas as
              atividades e sobre toda a vida das pessoas. Na da fase áurea(2)
              do feudalismo essas amarras eram muito fortes, e decorriam do
              próprio modo como a economia da sociedade estava organizada. Como
              a terra era praticamente a única fonte de sobrevivência e
              riqueza - e conservada como bem "fora do comércio" -
              seu controle por nobres e membros da alta hierarquia da Igreja
              garantia-lhes um imenso domínio político, jurídico e
              ideológico sobre a população. O "feudo", domínio
              territorial de um "senhor" (geralmente barão ou bispo),
              consistia quase sempre de uma pequena aldeia de camponeses e suas
              áreas circundantes, às vezes muito vastas(3). Seus pastos e
              florestas eram de uso comum, mas as terras aráveis estavam
              divididas entre aquelas cujos produtos e rendimentos pertenciam ao
              senhor (geralmente um terço do total) e as restantes, que os
              senhores permitiam aos camponeses usarem para sua sobrevivência.
              Em "contrapartida", os camponeses e seus familiares eram
              forçados à "corvéia"(4) durante dois ou três dias da
              semana nas terras do senhor, deviam pagar impostos ao rei,
              dízimos à Igreja, uma infinidade de taxas em moeda ou em
              produtos de suas colheitas particulares, prestar serviços
              domésticos na casa ou castelo do senhor e nas igrejas, lutar nas
              guerras quando convocados pelo senhor, além de curvar-se a uma
              série de obrigações, proibições e atitudes de vassalagem - em
              algumas regiões até infames, como submeter-se ao direito de
              "pernada"(5). Se a terra mudasse de senhor, o camponês
              era transferido junto (era "servo da gleba"), como as
              áreas de cultivo, bois, carroções e outros bens móveis,
              imóveis ou semoventes. Sua condição social diferia dos antigos
              escravos em dois aspectos principais: não podia ser vendido
              separado da terra (exceto na Rússia e em partes da Polônia) e
              tinha direito a uma espécie de usufruto oneroso à fração de
              solo arável que o senhor lhe concedia (direito nem sempre
              respeitado, quando convinha ao titular do feudo...). Uma economia
              assim organizada conseguia produzir muito poucos excedentes para a
              troca externa ao feudo, limitando-se praticamente à
              subsistência. Dos mercadores das cidades compravam sal, artefatos
              de ferro e pouca coisa mais. A mobilidade social estava perto de
              ser nula. Nas más colheitas, fomes horrorosas se alastravam -
              menos, é claro, entre a nobreza e o alto clero, que estocavam
              grãos e, em tese, deveriam prestar assistência cristã aos
              famintos, inválidos, viúvas e órfãos. As cidades, à época
              muito poucas e quase sempre pequenas, viviam à sombra dos
              senhores feudais. Os mestres artesãos urbanos, em suas oficinas
              domésticas, com um ou dois aprendizes, ou dois ou três
              empregados (geralmente ex-aprendizes que não conseguiram se
              estabelecer), estavam rigidamente organizados em
              "corporações de ofícios" que regulamentavam tudo, em
              minúcias, desde o modo de produzir cada artigo, seu preço, até
              interditar o exercício da profissão aos não autorizados. A
              onipresente ideologia religiosa, condenava a usura como
              pecaminosa, o lucro como imoral, a ambição de enriquecer como
              certeza de danação infernal(6). Vejam o exemplo de um julgamento
              ocorrido em Boston, em 1.639: "Está havendo um julgamento;
              um tal de Robert Keayne (...) é acusado de crime hediondo: teve
              mais de seis pence de lucro sobre um xelim, ganho esse considerado
              ultrajante. A corte debate se deve excomungá-lo pelo pecado
              cometido, mas, em vista de seu passado sem manchas, finalmente se
              abranda e lhe dá a liberdade com uma multa de duzentas
              libras"(7). Mas esse é um retrato estático e esquemático
              da economia feudal clássica, útil para efeito de contraste. Pois
              no ventre do feudalismo, e apesar dele, as forças econômicas e
              sociais de sua futura destruição germinavam e se debatiam. Para
              começar, a classe dos camponeses servos, larga maioria da
              população, malgrado gerações de resignada imobilidade (todos
              os domingos era-lhe recordado nos sermões que o poder tinha
              origem divina), volta e meia se revoltava, às vezes aos milhares
              e de modo muito violento. Em algumas ocasiões, os servos
              arrancavam concessões importantes aos senhores, outras vezes eram
              massacrados. Mas na primeira onda de fome, esqueciam o medo e
              recomeçavam tudo. Até acontecimentos inesperados podiam
              contribuir para reacender essas irrupções. A "Peste Negra" Em 1347,
              navios mercantes italianos vindos do Mar Negro, onde costumavam
              comprar tecidos e peles transportadas da Mongólia e da China pela
              Rota da Seda, trouxeram ao porto de Gênova passageiros
              indesejáveis nos seus porões: ratos, com pulgas contaminadas por
              uma moléstia terrível, que logo contaminaram todos os ratos da
              cidade, e os ratos das cidades vizinhas e dos países vizinhos. À
              medida em que a população de roedores ia morrendo, as pulgas
              passaram a se alimentar do sangue das pessoas, que começaram a
              morrer aos milhares e, em seguida, aos milhões. Durante os quatro
              anos mais agudos desse primeiro surto, a Peste Negra (em suas
              variantes bubônica, pneumônica e septicêmica) ceifou a vida de
              mais de vinte milhões de pessoas em toda a Europa - cerca de um
              terço da população do continente - não poupando nenhum país e
              quase nenhuma comunidade, do Mediterrâneo à Escandinávia, de
              Londres a Moscou. Matou, em números absolutos, mais seres humanos
              do que toda a primeira guerra mundial. A epidemia só se deteve
              nas fímbrias do oceano ártico, onde os ratos não sobrevivem ao
              frio extremo, mas outros surtos tornaram a peste um flagelo
              periódico da Europa até o século XVIII. As
              "explicações" para seu desenvolvimento iam desde os
              movimentos dos astros, até a punição divina pelos pecados da
              humanidade. Contudo, contraditoriamente, como são às vezes os
              grandes acontecimentos que se abatem sobre as sociedades, a Peste
              Negra terminou também por entrar para a História como um
              importante fator de impulsionamento da ...liberdade. O acentuado
              despovoamento(8) da Europa ocidental provocado pelas gadanhadas da
              peste tornou subitamente escassa a oferta de trabalhadores - e os
              camponeses sobreviventes descobriram que, de repente, sua força
              havia crescido na luta secular que travavam contra os senhores.
              "O senhor também sabia. Os que se haviam recusado a comutar
              a prestação de trabalho a que os servos estavam obrigados
              mostraram-se mais dispostos ainda a conservar o mesmo estado de
              coisas. Os que haviam trocado o trabalho do servo por um pagamento
              em dinheiro verificaram que os salários dos trabalhadores no
              campo se elevavam e que os embolsos que recebiam compravam um
              volume de trabalho cada vez menor. O preço do trabalho alugado
              aumentou em 50%, em relação ao que fora antes da Peste Negra.
              Foi em vão que se emitiram proclamações ameaçando com
              penalidades os senhores que pagassem mais ou os trabalhadores,
              pastores e lavradores que exigissem mais do que os salários
              predominantes antes da peste. A marcha das forças econômicas
              não podia ser sustada pelas leis governamentais do período. Era
              forçoso o choque entre os senhores da terra e os trabalhadores da
              terra. Estes haviam experimentado as vantagens da liberdade e isso
              lhes despertara o apetite para mais. No passado, o ódio provocado
              pela opressão esmagadora dera violentas revoltas de servos. Mas
              eram apenas explosões locais, facilmente dominadas, apesar de sua
              fúria. As revoltas dos camponeses do século XIV foram
              diferentes. A escassez de mão de obra dera aos trabalhadores
              agrícolas uma posição forte, despertando neles um sentimento de
              poder. Numa série de levantes em toda a Europa ocidental, os
              camponeses utilizaram esse poder numa tentativa de conquistar pela
              força as concessões que não podiam obter - ou conservar - de
              outro modo"(9). Além disso, a peste, ao atingir
              indistintamente nobres, padres e plebeus, enfraqueceu no povo
              comum a crença, ou temor, de infalibilidade dos sacerdotes, ou de
              que eles e os nobres estivessem sob proteção divina. A Revolta
              dos Camponeses na Inglaterra, em 1381, pelo que teve de furor e
              caráter massivo, exemplifica como se processavam as
              insurreições daquele período. Rebelados contra um novo imposto
              opressivo, e exigindo o fim do instituto jurídico de servidão à
              terra, 10.000 camponeses armados de foices, machados e espadas,
              marcharam até os muros de Londres. Levavam à frente, como
              espantalhos macabros, estacas onde haviam espetado algumas
              cabeças decepadas de proprietários odiados por sua
              opressão(10). Terminaram violentamente reprimidos. Mas essa
              seqüência de convulsões iniciadas na segunda metade do século
              XIV, renovada periodicamente em conseqüência de guerras
              intermináveis entre as cabeças coroadas da Europa, que
              desgraçavam a vida da classe camponesa, e ondas de fome que
              tornavam manifesta e intolerável a situação de privilégios da
              nobreza e do alto clero, abriu a época dos grandes abalos sociais
              que, ao longo dos próximos quatrocentos anos, terminariam por
              deitar por terra o edifício do feudalismo europeu. A sociedade
              européia não conseguia ser mais a mesma de antes, os reis,
              nobres e padres não conseguiam mais dominar como antes.
              Entenda-se bem: a grande Peste Negra, é claro, não determinou o
              declínio do feudalismo, sequer o iniciou. Mas suas drásticas
              consequências demográficas imediatas acabaram,
              surpreendentemente, propiciando condições sociais que
              favoreceram o recrudescimento das lutas dos servos contra os
              senhores feudais - estas sim, a longo prazo, decisivas. Novos atores entram em cena Além
              dos camponeses periodicamente rebelados, uma outra força social
              há tempos vinha, lentamente, ganhando fôlego. Essa força, como
              a história iria demonstrar, não estava para brincadeiras: a
              burguesia. "Burgueses", inicialmente, era a
              denominação genérica dos habitantes dos "burgos",
              pequenas cidades que surgiam nos cruzamentos de rotas comerciais,
              ou ao longo dessas rotas, às vezes fortificadas para proteger as
              caravanas contra os inúmeros bandos de salteadores que
              proliferavam nas estradas naquele tempo. De modo esperável, à
              medida em que iam crescendo passaram a aglomerar toda sorte de
              pessoas "livres", isto é, que não estavam mais
              submetidas às glebas dos barões e bispos, porque haviam comprado
              essa liberdade, ou porque haviam fugido de seus senhores rurais,
              ou ainda porque vinham de famílias que sempre haviam se dedicado
              exclusivamente a atividades artesanais ou mercantis; ou eram
              funcionários administrativos, advogados ou outros profissionais
              que não residiam há muito tempo nos feudos; ou ainda uma massa
              disforme de adultos sem ocupação definida ou constante e
              crianças à busca de sobrevivência como aprendizes nas
              corporações de ofícios, serviçais diversos ou, simplesmente,
              mendigos. Com o tempo, aos poucos, uma parte desses citadinos
              conseguiu acumular algum capital nas práticas do comércio, da
              usura (apesar da condenação da Igreja aos empréstimos com
              juros) e da exploração de força de trabalho alheia (ainda em
              pequena escala), empreitando a produção de artefatos de uso
              corrente, artigos de luxo para consumo da nobreza ou equipamentos
              para as guerras intermitentes, vindo a constituir uma pequena
              elite economicamente independente que, por não se ocupar de
              trabalhos braçais e ostentar um padrão de vida superior,
              discernia-se da massa dos habitantes dos burgos e das cidades
              maiores(11). Nos séculos XV e XVI, esta classe burguesa stricto
              sensu já era muito ativa e influente na maioria das cidades da
              Europa ocidental. Emprestava dinheiro a reis, a mercadores, a
              senhores feudais em dificuldades, fornecia assessores competentes
              para a administração do Estado monárquico, e estava envolvida
              em todos os negócios florescentes da época, como bancos,
              construção naval, abertura de manufaturas e exploração dos
              "novos mundos" incorporados pelas grandes descobertas
              marítimas. Nos séculos XVII a XVIII, a burguesia já estava
              bastante diversificada em vários extratos, desde os mestres
              artesãos que expandiram suas oficinas contratando muitos
              empregados e montando manufaturas, até grandes (para a época)
              industriais e banqueiros, e constituía o que podia ser chamado de
              uma "classe média" - no sentido de setores
              intermediários entre a aristocracia e a grande massa do povo.
              Decididamente, a sociedade feudal não combinava com as
              possibilidades que os burgueses viam diante de si. Os laços
              senhoriais e a ideologia que os legitimavam eram camisas de força
              para a expansão do mercado, crescimento do trabalho assalariado,
              florescimento da produção de mercadorias - enfim, para o maior
              enriquecimento desses empreendedores plebeus das cidades. Essa
              nova classe social tinha, pois, boas razões para ver com olhos de
              interesse as reivindicações dos camponeses, porque também
              sentia, a seu modo, as amarras do feudalismo - embora, por
              conveniência de seus negócios, adotasse sempre a cautelosa
              posição de manter-se à distância dessas agitações sociais
              (mais tarde, a mesma conveniência dos negócios a induziria a
              mudar de atitude). Esse conjunto de contradições internas ao
              modo de produção feudal foi seu elemento dinâmico de
              transformação. Os camponeses continuaram se rebelando, o
              comércio seguiu se desenvolvendo, as cidades crescendo,
              conquistando autonomia e se diversificando socialmente, a
              burguesia se fortalecendo, a nobreza e o clero perdendo terreno
              (ao menos no plano econômico). "A velha organização feudal
              rompeu-se sob a pressão de forças econômicas que não podiam
              ser controladas. Em meados do século XV, na maior parte da Europa
              ocidental, os arrendamentos pagos em dinheiro haviam substituído
              o trabalho servil e, além disso, muitos camponeses haviam
              conquistado a emancipação completa.(...) O trabalhador agrícola
              passou a ser algo mais do que um burro de carga. Podia levantar a
              cabeça com um ar de dignidade. (...) Transações que haviam sido
              raras na sociedade feudal tornaram-se habituais. Em lugares onde a
              terra, até então, só era cedida ou adquirida à base de
              serviços mútuos, surgiu uma nova concepção de propriedade
              agrária. Grande número de camponeses teve liberdade de se
              movimentar e vender ou legar a terra, embora tivessem que pagar
              certa importância para isso. (...) O fato de que a terra fosse
              assim comprada, vendida e trocada livremente, como qualquer outra
              mercadoria, determinou o fim do antigo mundo feudal. Forças
              atuando no sentido de modificar a situação varriam toda a Europa
              ocidental, dando-lhes uma face nova"(12). As navegações
              intercontinentais, a descoberta do Novo Mundo, os avanços da
              mecânica, do conhecimento científico e da tecnologia, o
              crescimento da população e da demanda, a Reforma, o
              Renascimento, o triunfo do absolutismo etc. (tudo isto é uma
              história muito conhecida dos leitores) - todo o "clima"
              medieval seguiu se transformando incessantemente, em compasso com
              as transformações econômicas que se processavam e que minavam
              as bases de existência do modo de produção feudal e do
              correspondente modo de se organizar a sociedade. "Dos 22
              milhões de camponeses existentes na França em 1.700, havia
              apenas um milhão de servos, no sentido antigo"(13). Um novo
              e revolucionário modo de produção, de organização social e de
              domínio do mundo, das coisas e das pessoas forcejava seu próprio
              parto. Ficou conhecido com o nome de: capitalismo. Tempestade no horizonte visível
              Entre tornar-se dominante na esfera das relações econômicas e
              assumir efetivamente o domínio político da sociedade pode haver,
              às vezes, uma distância muito grande. Contudo, a autonomia da
              política em relação à economia real de um país pode existir -
              mas até certo ponto, e certamente não ao ponto de constituir-se
              por muito tempo em obstáculo ao livre desenvolvimento daquelas
              relações econômicas já triunfantes. Isto parece hoje muito
              evidente a todos. Mas era essa a situação em que ainda se
              encontrava a maioria dos países da Europa no final do século
              XVIII, com exceção da Inglaterra e, talvez, da Holanda. As
              relações capitalistas fervilhavam por quase toda parte do
              continente, a burguesia tresandava otimismo quanto a seu futuro, a
              ideologia do progresso contínuo era sua música. Contudo, por
              mais obsoletos que parecessem face à economia existente, muitos
              (não mais todos) dos laços políticos, jurídicos, culturais e
              ideológicos do velho feudalismo persistiam como fator de atraso.
              Reis, nobres e padres teimavam em ver-se ainda como há quinhentos
              anos, como há mil anos. Resistiam tenazmente ao desaparecimento
              da velha estrutura política feudal - marcada, repitamos, pela
              estratificação social baseada no privilégio de nascimento.
              Embora pudessem ser encontradas na Europa continental setecentista
              diferenças decorrentes de desenvolvimentos e tradições
              próprias de cada país, podemos tomar o exemplo, razoavelmente
              representativo, da França às vésperas da Revolução de 1789.
              Persistia ainda um divisor de águas histórico em sua
              população, separando os servos (como vimos, em redução
              contínua) das pessoas livres. Estas últimas, por sua vez,
              continuavam divididas, de modo geral, em três estamentos sociais
              (chamados, à época, de "estados"): primeiro estado
              (clero), segundo estado (nobreza) e terceiro estado (plebeus
              livres em geral). "Pode-se simbolizar esta estrutura
              política por uma pirâmide. Cada uma das ordens (clero, nobreza,
              terceiro estado) é a expressão de uma função no seio da
              sociedade. O clero é encarregado do culto e das atividades que
              lhe estão ligadas no espírito da época (ensino, saúde,
              assistência etc.); à nobreza incumbe a obrigação de
              administração e de defesa do grupo social; o terceiro estado
              ocupar-se-á da vida econômica da sociedade. O que é preciso
              notar é que cada uma destas categorias políticas é regida por
              regras de direito específicas. O clero tem suas próprias
              jurisdições, tal como a nobreza; o imposto não é devido nem
              pelo clero, nem pela nobreza, enquanto é pesadamente cobrado
              sobre os rendimentos do terceiro estado"(14). Atenção para
              o "detalhe": "...o terceiro estado ocupar-se-á da
              vida econômica da sociedade..." Mas quem era exatamente o
              terceiro estado? Resposta: era quase toda a população livre,
              excetuados nobres e padres: os camponeses, o pequeno e incipiente
              proletariado urbano(15), os artesãos, os lojistas, os
              professores, os advogados, os funcionários públicos, todos os
              profissionais e produtores de todos os ramos, os mercadores,
              enfim, todos que trabalhavam, produziam ou dirigiam a economia,
              aí incluída a burguesia propriamente dita. O primeiro e o
              segundo estados eram parasitários, mas detinham todo o poder
              político e aferravam-se aos resquícios de seus privilégios
              econômicos. "Certamente a servidão havia desaparecido dos
              domínios reais desde o edito de 1779, e só aparecendo como uma
              sobrevivência anacrônica. Preocupados, porém, diante da erosão
              monetária gerada pela inflação, em obter um rendimento melhor
              de seus recursos fundiários, para continuar a manter seu
              'status', numerosos proprietários nobres mandaram efetuar, entre
              1780 e 1789, a revisão de seus registros no tombo, pois este
              contém a enumeração das declarações dos particulares
              referentes a cada senhoria e indica as terras que haviam sido
              concedidas pelo senhor e os direitos a ela vinculados. As cartas
              patentes de 20 de agosto de 1.786 põem a revisão na conta...dos
              devedores. Os especialistas em direito feudal, contratados para
              essas revisões, se empenhavam ainda mais porque o proprietário
              lhes concedia, às vezes, até a metade do ganho adicional
              propiciado por seu trabalho. (...) Toda contestação ia aos
              tribunais, cuja jurisprudência era favorável aos senhores. Os
              direitos feudais (seria melhor dizer 'senhoriais') eram diversos -
              o censo, taxa em dinheiro, leve por ter sido fixado há muito
              tempo; a jugada, paga em espécie, representava muitas vezes um
              terço da safra de cereais; os serviços pessoais ou reais; os
              lods em produtos..."(16) Pode-se até compreender porque os
              senhores dispunham-se a pagar honorários tão pesados a esses
              advogados especialistas em direito feudal, com a esperança de
              reviver privilégios: "As 400 mil pessoas aproximadamente
              que, entre os 23 milhões de franceses, formavam a nobreza (...)
              estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis
              privilégios, inclusive de isenção de vários impostos (não de
              tantos quanto o clero, mais bem organizado) e do direito de
              receber tributos feudais.(...) Economicamente, as preocupações
              dos nobres não eram absolutamente desprezíveis. Guerreiros, e
              não profissionais ou empresários por nascimento e tradição -
              os nobres eram até mesmo formalmente impedidos de exercer um
              ofício ou profissão - eles dependiam da rendas de suas
              propriedades ou, se pertencessem à minoria privilegiada de
              grandes nobres ou cortesãos, de casamentos milionários,
              pensões, presentes e sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia
              o status de nobre eram grandes e cada vez maiores, e suas rendas
              caíam - já que eram raramente administradores inteligentes de
              suas fortunas, se é que de alguma forma as conseguiam
              administrar. A inflação tendia a reduzir o valor de rendas
              fixas, como aluguéis"(17). No que se refere aos impostos e
              taxas, a camada superior do terceiro estado, rica e com relações
              úteis no governo, descobria os caminhos para escapar ao seu
              pagamento, o que não acontecia com o restante da população,
              particularmente nas áreas rurais. Alexis de Tocqueville, o
              pensador liberal francês do século XIX, faz a seguinte
              descrição das consequências das antigas taxas e serviços
              feudais, muitas das quais persistiam mesmo em relação aos
              camponeses já libertos da servidão à gleba: "Imagine o
              leitor um camponês francês do século XVIII...apaixonadamente
              enamorado pela terra, a ponto de gastar todas as suas economias
              para adquiri-la. ...Para completar essa compra, ele tem primeiro
              de pagar um imposto. ...Finalmente a terra é dele; seu coração
              está nela enterrado, com as sementes que semeia. Mas novamente
              seus vizinhos o chamam do arado, obrigam-no a trabalhar para eles
              sem pagamento. Tenta defender sua nascente plantação contra as
              manobras dos senhores da terra; estes novamente o impedem. Quando
              ele cruza o rio, esperam-no para cobrar uma taxa. Encontra-os no
              mercado, onde lhe vendem o direito de vender seus produtos; e
              quando, de volta para casa, ele deseja usar o restante do trigo
              para sua própria alimentação...não pode tocá-lo enquanto não
              o tiver moído no moinho e cozido no forno dos mesmos senhores de
              terras. Uma parte da renda de sua pequena propriedade é gasta em
              pagar taxas a esses senhores...Tudo o que fizer, encontra sempre
              esses vizinhos em seu caminho...e quando estes desaparecem, surgem
              outros com as negras vestes da Igreja, para levar o lucro líquido
              das colheitas...A destruição de parte das instituições da
              Idade Média tornou cem vezes mais odiosa a parte que ainda
              sobrevivia"(18). Contudo, deve ser anotado que a estrutura
              político-social tradicional e anacrônica já havia se tornado,
              no final do século XVIII, bastante complexa. A dialética dos
              interesses sociais contraditórios não era mais tão simples como
              fora há séculos. No primeiro Estado, havia diferenças sociais
              evidentes entre o alto clero enobrecido (bispos, abades,
              cônegos), senhor de imensas porções de terras(19), e o baixo
              clero, que muitas vezes vivia pobremente e em contato íntimo com
              os camponeses das aldeias. No segundo Estado já se podia divisar
              ao menos três camadas: a restrita nobreza cortesã, beneficiária
              de pensões e outras benesses reais, muito favorecida pela
              intimidade com os negócios da monarquia; os senhores feudais
              tradicionais, que dependiam de rendimentos fundiários e ainda
              detinham, provavelmente, uma quinta parte do reino(20); e até
              burgueses enobrecidos, a chamada "nobreza de toga"(21).
              No terceiro Estado, a situação era ainda mais diversificada: já
              se configurava uma alta burguesia, formada por banqueiros,
              industriais, grandes comerciantes, fornecedores do exército etc.,
              partidária de mudanças moderadas e que dava mostras de
              contentar-se com uma monarquia constitucional; uma pequena
              burguesia urbana já muito numerosa (viria a se tornar a principal
              base do radicalismo revolucionário), que abrangia artesãos
              independentes, advogados, médicos, alfaiates, barbeiros, pequenos
              lojistas etc.; uma pequena burguesia rural, constituída pela
              fração crescente de camponeses com terras, livres da servidão
              à gleba, mas ainda oprimidos pela sobrevivência de taxas
              senhoriais e outras obrigações remanescentes do feudalismo; uma
              massa heterogênea (ainda minoritária, mas em expansão) de
              trabalhadores assalariados na cidade e no campo(22); além de uma
              multidão de desempregados, mendigos, andarilhos, monges
              itinerantes, pessoas sem ocupação definida ou que exerciam
              atividades cambiantes ou sazonais. De modo geral, podia-se
              observar, com o desenvolvimento do capitalismo, um deslocamento
              progressivo - nem sempre muito claro, mas no século XVIII já
              preponderante - da antiga estratificação social por ordens e
              estamentos, baseada no privilégio (ou azar...) de nascimento,
              para uma diferenciação em que contava mais a inserção de
              classe, isto é, a posição efetivamente ocupada pelas pessoas na
              economia: burgueses (enobrecidos ou plebeus), proprietários de
              terras (bispos, barões e até alguns burgueses), o proletariado
              incipiente (rural e urbano), a multifacetada pequena burguesia, e
              assim por diante. É claro que, desde há muito, existiam as
              classes sociais, e elas lutavam entre si por interesses
              contraditórios, luta decisiva para o declínio econômico-social
              do feudalismo; mas seus contornos e, acima de tudo, sua
              consciência social, eram "nublados" pela divisão
              tradicional e antes muito estática baseada no nascimento.
              Portanto, a elevação das relações sociais de produção
              capitalistas à posição de categoria dominante nas relações
              humanas, estava, por assim dizer, clarificando a dinâmica social
              num sentido novo, sobrepondo-se progressivamente ao status
              nobiliárquico, clerical, plebeu livre ou plebeu servil. Essa
              tensa conformação estrutural da sociedade francesa portava ainda
              um fator adicional de agravamento: a persistência anacrônica do
              absolutismo monárquico. Entre os séculos XV e XVII, quando os
              reis europeus travaram lutas bem sucedidas contra a antiga
              dispersão do poder entre os senhores feudais, a burguesia
              deu-lhes apoio, pois isso representava certo alívio dos laços
              senhoriais sobre suas atividades econômicas nas cidades e no
              comércio entre as regiões de cada país. Vários desses reis
              absolutistas notabilizaram-se como "déspotas
              esclarecidos"(23), sensíveis às renovações que estavam em
              curso, estimulando a economia e as artes. Mas, na segunda metade
              do século XVIII, essa utilidade inicial do absolutismo se
              esvaíra para a burguesia pois, sendo já uma classe muito forte,
              ele passou a significar apenas sua eterna marginalização do
              poder político. Na França, a absorção de poderes absolutos
              pela figura do rei havia atingido seu ápice no início do século
              XVIII, durante o reinado do "rei sol", Luís XIV (a ele
              se atribuía a frase reveladora: "L'Etat c'est moi").
              Desde então, o grosso da aristocracia, (excetuado apenas o
              pequeno círculo da nobreza cortesã), foi esvaziado de funções
              políticas e era mantido afastado das decisões importantes do
              Estado. Mas nunca renunciou à luta para recuperar sua antiga
              influência nos negócios públicos: "A feudalidade foi
              justificada pela conquista, pois os nobres eram saídos dos
              conquistadores germânicos, constituídos, pelo direito das armas,
              senhores dos galo-romanos reduzidos à servidão. A aristocracia
              é anterior à monarquia, uma vez que os reis, originalmente, eram
              eleitos. Abeberando-se nesse arsenal ideológico (...), a
              aristocracia, tanto a da espada quanto a togada, conduziu, durante
              todo o curso do século XVIII, o assalto contra a autoridade
              real"(24). Embora a monarquia representasse a garantia dos
              privilégios sociais da nobreza, estava há muito tempo
              estabelecido entre ambas um contencioso cheio de riscos: até
              idéias liberais começavam a ter aceitação entre alguns nobres.
              Assim, a França sob Luís XVI era "...sob vários aspectos,
              a mais típica das velhas e aristocráticas monarquias absolutas
              da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura
              oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas
              forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em
              outras partes"(25). Esse quadro todo logo seria piorado
              dramaticamente por uma séria crise econômica e política, que
              lançaria as massas populares numa atividade contestatória sem
              precedentes e possibilitaria o florescimento dos porta-vozes
              revolucionários da burguesia - que, então, passaria a falar em
              nome de todo o terceiro estado. O abade liberal Emmanuel de
              Sieyès, membro de uma loja maçônica e impulsionador do
              movimento constitucionalista, desferiu, meses antes do início da
              grande tempestade, seu célebre panfleto revolucionário
              "Quê é o Terceiro Estado?", em que pregava abertamente
              a ruptura : "O quê é o terceiro estado ? Tudo. O quê tem
              sido ele, até agora, na ordem política? Nada. (...) O quê é
              preciso para que uma nação subsista e prospere? Trabalhos
              particulares e funções públicas. (...) Os trabalhos
              (particulares) que sustentam a sociedade...sobre quem recaem?
              Sobre o Terceiro Estado. As funções públicas (...) seria
              supérfluo percorrê-las detalhadamente para mostrar que o
              Terceiro Estado integra os dezenove vigésimos dela, com a
              diferença de que se ocupa de tudo o que é verdadeiramente
              penoso, de todos os cuidados que ordem privilegiada recusa.
              Somente os postos lucrativos e honoríficos são ocupados pelos
              membros da ordem privilegiada. (...) A pretensa utilidade de
              ordens privilegiadas para o serviço público não passa de uma
              quimera; pois tudo o que há de difícil nesse serviço é
              desempenhado pelo Terceiro Estado. Sem os privilegiados, os cargos
              superiores seriam infinitamente melhor preenchidos. (...) Se se
              suprimissem as ordens privilegiadas, isso não diminuiria em nada
              a nação; pelo contrário, lhe acrescentaria. Assim, o quê é o
              Terceiro Estado? Tudo, mas um tudo entravado e oprimido. O que
              seria ele sem as ordens de privilégios? Tudo, mas um tudo livre e
              florescente. Nada pode funcionar sem ele, as coisas iriam
              infinitamente melhor sem os outros.(...) O Terceiro Estado
              abrange, pois, tudo o que pertence à nação. E tudo o que não
              é Terceiro Estado não pode ser olhado como da nação. (...)
              Não há, no total, duzentos mil privilegiados das duas primeiras
              ordens. Comparem este número com o de 25 a 26 milhões de almas
              (...). Mas é difícil convencer as pessoas que só enxergam seus
              próprios interesses. (...) A nobreza deixou de ser esta
              monstruosa realidade feudal que podia oprimir impunemente; hoje
              ela não passa de uma sombra que, em vão, tenta assustar toda a
              nação. (...) É tempo de tomar um partido e dizer, com toda
              força, o que é verdadeiro e justo. (...) Então é por espírito
              de igualdade que se pronunciou contra o Terceiro Estado a
              exclusão mais desonrosa de todos os postos, de todos os lugares
              melhores? (...) As leis que, pelo menos, deveriam estar livres de
              parcialidade, também se mostram cúmplices dos privilegiados.
              Para quem parecem ter sido feitas? Para os privilegiados. Contra
              quem? Contra o povo. (...) Só há uma forma de acabar com as
              diferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não
              é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria nação. Se
              precisamos de Constituição, devemos fazê-la. Só a nação tem
              direito de fazê-la. (...) Então, é o Terceiro Estado que deve
              fazer os maiores esforços e dar os primeiros passos para a
              restauração nacional. (...) As circunstâncias não permitem que
              se seja covarde. Trata-se de avançar ou de recuar. (...) Vão
              dizer que o Terceiro Estado sozinho não pode formar os Estados
              gerais. Ainda bem ! Ele comporá uma Assembléia Nacional. (...)
              Os representantes do Terceiro Estado terão, incontestavelmente, a
              procuração dos 25 ou 26 milhões de indivíduos que compõem a
              nação, excetuando-se cerca de 200 mil nobres ou padres. Isso já
              basta para que tenham o título de Assembléia Nacional. Vão
              deliberar, pois, sem nenhuma dificuldade, pela nação inteira
              (...)"(26). O grau de ousadia, próprio de uma vanguarda
              tomando posição para a ofensiva, era indicativo de que aqueles
              que estavam prestes a dirigir a demolição revolucionária do
              ancien régime estavam seguros de já contarem com um "grande
              número de seguidores dispostos a levar suas idéias à
              prática"... Quê idéias eram essas ? Os pensadores da revolução Eram
              idéias às vezes contraditórias entre si, como costumam ser os
              grandes movimentos de idéias, mas quase sempre muito subversivas
              para a época, isto é, muito apropriadas aos que ansiavam por
              transformações jurídico-políticas correspondentes às
              transformações econômicas e sociais que já iam em fase
              avançada. Antes de mais nada, o europeu culto do século XVIII -
              nobre ou burguês - estava imerso num clima intelectual de franco
              triunfo do racionalismo. Isso não é de se estranhar, se
              considerarmos o bem sucedido ataque que, no mínimo há uns
              duzentos anos, vinha sendo feito de forma cada vez mais atrevida
              à visão de mundo com que a religião (o pensamento mágico em
              geral) legitimava o feudalismo. Copérnico causou sacrossanto
              estupor ao concluir que a Terra não era o centro do Universo, mas
              apenas um pequeno planeta, dentre outros, que orbitava em torno do
              sol. Para os dias de hoje, isso parece de obviedade trivial, mas
              no começo do século XVI representou uma colisão com mais de mil
              anos de crença geocêntrica, segundo a qual o homem, por ter sido
              criado à imagem e semelhança de Deus, ocupava o centro do mundo.
              Galileu Galilei, além de comprovar o heliocentrismo com seu
              telescópio, lançou as bases do método científico, fundado em
              observação e demonstração experimental, e não em dogmas. A
              circunavegação do globo por Fernão de Magalhães liquidou de
              vez com o mito da Terra plana. Newton revolucionou a física e a
              matemática. Descartes desenvolveu o método lógico, como na
              matemática, para a busca da verdade. Até a Igreja foi abalada
              estruturalmente pelas fraturas protestantes, que defendiam a
              comunicação direta do fiel com Deus, desmascaravam a
              degeneração do alto clero e legitimavam o lucro como bom e
              moral. Com tantos antecedentes, o século XVIII tinha todas as
              razões para ver na razão a potência finalmente capaz de
              entender a natureza e a sociedade, explicar a própria religião,
              libertar o homem dos seus terrores seculares, desvendar todos os
              mistérios, reformar tudo. Os filósofos do Iluminismo fizeram uma
              audaciosa construção intelectual nesse norte: Hobbes, Locke,
              Voltaire, Montesquieu, Diderot, Condorcet, Rousseau - só para
              mencionar algumas das grandes mentes que, malgrado tantas
              diferenças e divergências entre si(27), descontruíram
              metodicamente as estruturas da visão social de mundo do
              feudalismo. A Razão humana, sua ilimitada capacidade de
              desvendar, de iluminar os fenômenos (daí Iluminismo), poderia
              moldar o mundo em bases novas, tudo poderia ser revisto e
              reformado por seu filtro. A realidade circundante dava-lhes essas
              certezas: tudo, de fato, se revolucionava, por obra da
              inteligência e da engenhosidade. A invenção do tear mecânico e
              da máquina a vapor, as numerosas aplicações práticas das
              descobertas científicas, o alargamento das fronteiras do
              conhecimento (e da geografia) a expansão da produtividade, do
              controle técnico sobre a natureza, a emergência do espírito de
              aventura, a rápida expansão das trocas transcontinentais - nada
              mais permanecia imóvel, ao contrário das desoladoras certezas
              "eternas" e estáticas da Idade Média. "Pois, de
              fato, o 'Iluminismo', a convicção no progresso do conhecimento
              humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a
              natureza - de que estava profundamente imbuído o século XVIII -
              derivou sua força primordialmente do evidente progresso da
              produção, do comércio e da racionalidade econômica e
              científica que se acreditava estar associada a ambos"(28).
              Houve um núcleo dinâmico de idéias, no terreno da filosofia, de
              que a burguesia se serviu - seletivamente, como se verá - com
              notável eficiência para seus propósitos revolucionários na
              França, devido às consequências políticas imediatas que dele
              poderia extrair: o jusnaturalismo, particularmente o
              jusnaturalismo de base racional. A concepção da existência de
              um Direito aproximadamente equiparado à noção de Justiça(29),
              em forte conexão com a moral e, portanto, mais perfeito do que o
              direito objetivamente encontrável nas sociedades humanas, era
              muito antiga entre os pensadores, deitando raízes em filósofos
              da Grécia antiga. Sua gênese helênica foi primordialmente
              laica, na medida em que esse Direito superior decorreria da
              própria natureza, ou da observação do equilíbrio a ela
              inerente, e não dos deuses. Na Idade Média, ao retomar
              Aristóteles, São Tomás de Aquino buscou atualizar para o
              pensamento cristão a idéia desse direito natural (jus naturae),
              esforçando-se para demonstrar sua compatibilidade com a fé, uma
              vez que a natureza seria obra de criação divina. Mas logo o
              direito natural seria dessacralizado pelo Iluminismo,
              substituindo-se progressivamente a natureza em geral (isto é, o
              mundo físico ou social externo) pela idéia de natureza humana e,
              especificamente, pela razão humana, fonte interior do
              conhecimento. O direito, portanto, poderia ser
              descoberto/produzido pelo espírito humano, desde que se
              procedesse à sua investigação com os rigores do raciocínio,
              configurando-se então como expressão moral de possibilidades
              inalienáveis, universais e eternas do ser humano (os direitos
              naturais humanos). Essa razão triunfante busca a liberdade,
              estado primordial do homem; a natureza mostra que os homens nascem
              iguais, por isso todo privilégio é antinatural; as pessoas podem
              estabelecer as cláusulas do contrato que institui a sociedade; o
              indivíduo, portador de direitos imanentes (porque naturais), deve
              ser protegido do poder absoluto pela repartição do poder; a
              intolerância religiosa deve ser abolida, o Estado deve ser
              governado de acordo com a vontade geral, por isso as leis devem
              ser as mesmas para todos - por aí vai. "Com Rousseau, cuja
              influência foi enorme, a filosofia se radicalizou. Montesquieu
              continuava ligado às prerrogativas dos parlamentares, tendo sido
              um deles; Voltaire era um burguês abastado, indiferente à
              miséria popular. Rousseau vai mais longe, atacando a própria
              sociedade. Tudo o que o homem tem de bom vem da natureza; todo o
              mal, da sociedade que o alienou e corrompeu. Mesmo não se podendo
              voltar ao estado de natureza, ao menos é possível dela se
              aproximar. Uma boa constituição será, portanto, a que garantir,
              na medida do possível, a liberdade e a igualdade
              primitivas"(30). É preciso ler essa brevíssima notícia
              histórica com cautelas adequadas: as elaborações concernentes
              ao direito natural foram certamente complexas, múltiplas,
              contraditórias, muitas vezes contemporâneas entre si - a ponto
              de constituir empreitada de resultado incerto a tentativa de
              reuni-las numa só "escola filosófica"(31). Mas
              aprofundar a investigação sobre o jusnaturalismo seria tarefa
              para outro estudo. Cabe mais, aqui, anotar o papel social que
              efetivamente desempenhou, os reflexos que concretamente suscitou
              na práxis social. Neste sentido, é fácil perceber porque essa
              construção intelectual de um direito natural de base racional,
              prevalecente entre os grandes pensadores do século das luzes, foi
              socialmente apropriada com muita facilidade pela burguesia
              revolucionária como arma ideológica de combate. Bastava extrair
              daí consequências políticas muito lógicas, de uso imediato: a
              razão recusa-se a continuar acatando que mais de vinte milhões
              de franceses prossigam governados por uma minoria que nada produz,
              e que mantém uma vida de privilégios unicamente pelo privilégio
              de nascimento. Se a idéia de privilégio não pode ser acolhida
              pela razão, há que se construir uma sociedade constituída por
              indivíduos livres e iguais, cidadãos (não súditos), todos
              sujeitos de direitos, submetidos a leis comuns para todos,
              clamando a Nação a soberania para si, não mais para um monarca
              detentor de poder absoluto. Por isso, "...se o terceiro
              estado é tudo na sociedade...", a razão rechaça,
              naturalmente, que ele continue sendo "nada" na política
              e no poder. "A teoria do direito natural inverte pois,
              completamente, a 'pirâmide feudal'. Em lugar de relações
              verticais (hierarquizadas) instaurar-se-ão relações horizontais
              (comunidade nascida do contrato social). Deixará de haver ordens
              correspondendo a funções separadas e desiguais em direitos, não
              haverá senão homens livres e iguais, quer dizer, cidadãos.
              Deixará de haver rei no cume da pirâmide para governar os
              homens, mas a expressão da sua vontade geral, isto é, a
              lei"(32). A burguesia e, particularmente a burguesia
              francesa, finalmente encontrava um poderoso arsenal ideológico
              para refutar a visão social de mundo do passado. Se na filosofia
              estava acontecendo esse turbilhão, uma nova e correlata esfera do
              conhecimento também reivindicava à época o status de ciência:
              a economia política, que dava nascimento teórico ao liberalismo
              econômico. Na França, os chamados economistas fisiocratas
              (François Quesnay, o Marquês de Mirabeau, o ministro Turgot,
              etc.) defendiam, dentre outras coisas, que só a terra cria
              realmente valor e que há uma circulação natural de renda na
              sociedade, correspondendo tudo isso a uma ordem natural, regida
              por leis imutáveis, como as da física (daí, fisiocratas).
              Assim, não teriam cabimento intervenções na economia: "Por
              isso, defenderam a mais ampla liberdade econômica (contra as
              barreiras feudais, ainda imperantes na época...) e lançaram a
              célebre máxima do liberalismo: Laissez faire, laissez passer. E
              propuseram a supressão de todas as taxas, com sua substituição
              por um imposto único incidindo sobre a propriedade, já que esta
              seria a única fonte de riqueza e os proprietários apenas se
              apropriariam da renda da terra sem contribuir para o aumento do
              produto líquido, enquanto os agricultores, os comerciantes e os
              artesãos deveriam ficar aliviados da carga tributária para que
              se facilitasse a circulação da renda. Para manter essa ordem
              natural, o Estado deveria assumir o papel exclusivo de guardião
              da propriedade e garantidor da liberdade econômica"(33).
              Logo em seguida, na Inglaterra, Adam Smith (1723-1790) superava
              intelectualmente os fisiocratas na fundamentação do liberalismo
              e publicava, em março de 1776, "A Riqueza das Nações:
              Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas", que em
              pouco tempo se tornaria a "bíblia" econômica da
              burguesia - só na França, antes da Revolução de 1789, houve
              pelo menos três edições desse livro, e outras quatro foram
              publicadas durante o período revolucionário(34), o que não
              deixa de ser extraordinário para uma época de poucos leitores.
              Segundo essa obra paradigmática, os indivíduos só buscam mesmo
              seus próprios interesses, competem incessantemente para isso, o
              que pode parecer mau; mas se essa competição não for
              artificialmente cerceada pelo Estado ou pela intromissão
              ignorante dos homens, terminará, mediante a divisão social do
              trabalho, gerando uma ordem social natural que aumentará
              rapidamente a riqueza das nações e o bem estar dos indivíduos
              competidores. A produção sob o regime de livre empresa privada,
              com a conseqüente acumulação de capital, é o caminho para
              atingir esse fim. A classe dos capitalistas, proprietária dos
              meios sociais de produção, é necessária e benéfica a todos,
              mesmo aos trabalhadores, que se alugam aos capitalistas para fazer
              funcionarem aqueles meios. É certo que disso tudo resultará uma
              sociedade de grande desigualdade econômica, mas isto não é
              motivo para escândalo porque, ainda assim, propiciará melhorias
              nas condições de existência dos mais pobres, não sendo
              incompatível com a igualdade natural dos homens. Ademais, isso
              não será também injusto pois, embora o trabalho humano seja a
              verdadeira origem de toda riqueza, as relações serão baseadas
              na livre troca de equivalentes no mercado: o salário que o
              capitalista paga eqüivale ao trabalho que o operário lhe presta.
              Portanto, deixar livre a mão invisível do mercado é o meio mais
              sábio para que economia naturalmente se regule a si mesma, e
              todos possam chegar à felicidade individual(35). Essas demandas
              do liberalismo econômico colidiam de frente com o pensamento
              mercantilista dos governos europeus da época - caracterizado pelo
              intervencionismo estatal, protecionismo frente ao comércio
              exterior e ênfase no aumento de reservas de metais preciosos -
              que impedia a livre circulação de mercadorias e a livre
              competição no mercado internacional. Este pensamento havia sido
              útil a uma fase muito inicial do desenvolvimento do capitalismo,
              mas agora a burguesia (ao menos sua camada mais alta) passava a
              percebê-lo como obstáculo à expansão que buscava. Esse vasto
              conjunto de idéias (certamente mais vasto do que o aqui
              exemplificado) acabou, portanto, propiciando fundamentos teóricos
              e elevando a um patamar de sofisticação intelectual a ideologia
              intuitiva e prática da burguesia, abrindo caminho para essa
              classe reivindicar-se perante a sociedade como portadora legítima
              de interesses universais. "Sem dúvida, abaixo da filosofia
              do século XVIII, o interesse da burguesia revela-se facilmente,
              pois ela deveria tirar as maiores vantagens do novo regime. Mas
              ela acreditava sinceramente trabalhar pelo bem da humanidade. E
              mais: estava persuadida de preparar a chegada de uma nova era da
              justiça e do direito"(36). Essa classe necessitava de
              transformações sociais e se atribuía o papel transformador.
              "O progresso das Luzes solapava os fundamentos ideológicos
              da ordem estabelecida, ao mesmo tempo que se afirmava a
              consciência de classe da burguesia. Sua boa consciência: classe
              em ascensão, acreditando no progresso, tinha a convicção de
              representar o interesse geral e de assumir o encargo da nação;
              classe progressiva, exercia uma triunfante atração sobre as
              massas populares, como sobre os setores dissidentes da
              aristocracia. Contudo a ambição burguesa, apoiada pela realidade
              social e econômica, se chocava com o espírito aristocrático das
              leis e das instituições"(37). Com bandeiras assim
              flamejantes, uma palavra - que freqüentaria o vocabulário humano
              nos séculos seguintes - começou a passar, com insistência
              crescente, pela cabeça dos burgueses. Era esta a palavra:
              Revolução! "Liberté, Egalité,
              Fraternité" A França dos anos oitenta do século XVIII
              entrava em plano inclinado de desagregação. Uma diversidade de
              fatores complicava a situação nacional: crise fiscal, crise
              política, crise econômica, crise social - tudo ao mesmo tempo. O
              país mal terminou de lamber suas feridas pela derrota humilhante
              na Guerra dos Sete Anos (1756/1763), quando perdeu para a
              Inglaterra todas as suas possessões na América do Norte, e já
              se envolveu, por razões de política internacional do Estado, na
              guerra de independência americana, contra a mesma e velha rival.
              Teve de deslocar, durante anos a fio e a preços de guerra, tropas
              e suprimentos para o outro lado do oceano - financiados por
              pesados empréstimos contraídos pelo Tesouro nacional. O
              descontrole dos gastos, as guerras de conquista, a inflação, as
              edificações suntuosas e o esbanjamento ostentatório da Corte
              (motivo de grande impopularidade da monarquia), eram antigos e
              mantinham o país, desde o reinado de Luís XIV, numa situação
              de crescente endividamento; mas o brutal aumento da dívida
              pública, após e em conseqüência da guerra americana,
              precipitou uma crise fiscal sem precedentes. Em 1788, 50 % das
              despesas do tesouro destinavam-se ao pagamento de juros da dívida
              pública. Não havia mais de onde tirar
              dinheiro, a menos que...os que não pagavam impostos passassem a
              pagá-los. A igualdade fiscal e outras reformas já haviam sido
              tentadas antes pelo rei mas, evidentemente, repudiadas com firmeza
              pela nobreza e pelo clero(38). Todavia, estando o reino à beira
              da bancarrota, Luís XVI imaginou poder desta vez fazer passar a
              igualdade fiscal, negociando com a aristocracia: convocou, no
              início de 1787, um "Conselho de Notáveis", composto de
              144 membros escolhidos a dedo. Nada obteve. Procurou conter
              despesas, introduzir algumas reformas, contratar novos
              empréstimos, sem qualquer sucesso. A resistência aristocrática
              ao absolutismo percebeu o momento de fraqueza da monarquia e tomou
              a ofensiva, impondo condições, exigindo partilhar o poder. O rei
              adotou medidas repressivas contra nobres insubordinados, a
              reação foi grande, teve de recuar. Tentou restabelecer sua
              autoridade expedindo "cartas régias"(39), sofreu nova
              desmoralização, viu-se forçado a revogá-las: agora, a própria
              aristocracia começava a bradar por seus "direitos
              individuais e naturais" (vê-se que essa linguagem havia se
              imposto...) contra o autoritarismo absolutista. A crise
              institucional tornou-se objeto de acalorados debates públicos:
              embora a causa imediata da revolta dos nobres fosse sua recusa em
              abrir mão de privilégios fiscais e econômicos, a luta política
              contra o absolutismo colocou, por um breve momento, o terceiro
              estado em frente comum com a aristocracia. Começaram a surgir
              tumultos populares. Isolado no Palácio de Versalhes, com os
              cofres do Tesouro vazios, Luís XVI terminou, em agosto de 1788,
              por submeter-se à exigência da "rebelião dos nobres":
              convocar para o ano seguinte a assembléia dos "Estados
              Gerais" para encontrar saídas para as dificuldades do país.
              Uma decisão que lamentaria para sempre - os nobres também... Os
              Estados Gerais eram a antiga assembléia que reunia representantes
              das três "ordens" em que se dividia a população livre
              do país, e haviam tido num passado remoto poderes legais sobre
              diversas questões do Estado - por exemplo, impostos. Mas, à
              medida em que o absolutismo monárquico foi ganhando terreno,
              nunca mais foram convocados: sua última reunião havia acontecido
              há 174 anos, em 1614. Seu chamamento em 1788 foi, portanto, sinal
              evidente do enfraquecimento do absolutismo. Ao lado da crise
              fiscal, estopim da crise de governabilidade, uma grave crise
              econômico-social se abatia sobre o país. Invernos rigorosos e
              verões especialmente chuvosos ocasionaram péssimas safras em
              1788 e 1789, fazendo os preços dos gêneros agrícolas
              dispararem, especialmente o do pão, fundamental na alimentação
              do povo. Açambarcadores e especuladores tiraram partido do salto
              da inflação. Além disso, a superioridade inglesa na
              concorrência pela oferta de produtos têxteis também estancou a
              atividade desse ramo das manufaturas francesas, gerando prejuízos
              e desemprego. Multidões de miseráveis perambulavam pelas cidades
              e pela zona rural, buscando sobrevivência na mendicância ou
              extravasando seu ódio aos privilegiados mediante saques e
              atentados contra senhores rurais, ou dedicando-se simplesmente à
              delinqüência. Até a média burguesia ressentia-se amargamente
              da deterioração de seus meios de vida, especialmente porque, já
              havia algum tempo, nobres que vinham perdendo rendas, ou que se
              encontravam mesmo em vias de empobrecimento, valeram-se de seus
              privilégios "de sangue" e conseguiram impor ao rei o
              retorno da exclusividade aristocrática sobre os cargos públicos
              mais vantajosos. A quase totalidade dos plebeus foi expulsa dos
              graus mais cobiçados da hierarquia da Administração. No
              exército isso era causa de grande descontentamento pois, desde um
              edito real de 1781, o acesso às patentes de oficial ficou
              restrito exclusivamente aos nobres "de espada" e, assim
              mesmo, se possuíssem "três graus de nobreza". Assim,
              começaram a brotar, principalmente dos estratos intermediários
              do terceiro estado, ardorosos agitadores políticos imbuídos de
              idéias iluministas. "Como as portas se fecham, nasce a
              idéia de derrubá-las. A partir do momento em que a nobreza
              pretende torna-se uma casta e reservar os cargos públicos ao
              privilégio de nascimento, o único recurso é suprimir o
              privilégio do sangue para dar 'lugar ao mérito'. É claro que o
              amor-próprio não estava ausente da jogada, e qualquer
              fidalguinho pouco importante, que simplesmente marcasse as
              distâncias, fazia renascer as feridas. Entre burgueses de
              diversos tipos forjou-se um vínculo que nada pôde romper: um
              ódio comum à aristocracia"(40). Reuniões febris nos cafés
              parisienses, nos ativos "clubes" políticos (não
              existiam partidos) e na grande e semi-secreta Maçonaria
              (racionalista e anticlerical) passaram a irradiar efervescente
              propaganda das consignas de igualdade e liberdade junto ao povo. O
              anúncio da convocação da assembléia dos Estados Gerais
              deu-lhes um norte político, pois perceberam - com mais razão do
              que podiam imaginar - que estaria aí uma oportunidade para
              fazerem valer muitos de seus pontos de vista. Mas esse anúncio
              também desfez rapidamente aquela fugaz aliança política entre a
              aristocracia e o terceiro estado contra o absolutismo. Os
              aristocratas pretendiam que essa assembléia, a partir de maio de
              1789, conservasse a mesma forma de quase duzentos anos passados:
              quantidade igual de representantes para as três
              "ordens" (em vez de proporcional ao peso de cada ordem
              na população) e votação por ordem durante as sessões (e não
              por cabeça). O terceiro estado, que compunha seguramente mais de
              90% da população(41), percebeu que isso o deixaria em completa
              minoria e passou a reivindicar o contrário: representação
              proporcional e voto por cabeça. Entre dois fogos, Luís XVI
              arbitrou pelo que imaginou ser um "meio termo": aceitou
              apenas duplicar a representação do terceiro estado e nada
              decidiu sobre o voto por ordem ou por cabeça. A animosidade do
              terceiro estado contra a nobreza e o clero reabriu-se. As
              eleições dos representantes das ordens realizaram-se entre
              fevereiro e março de 1789, em clima de grande tensão, panfletos
              exaltados circulando (o de Sieyès foi lançado em janeiro),
              chegando a ocorrer conflitos armados entre burgueses e nobres. Os
              regulamentos eleitorais eram complicados, com procedimentos
              variáveis entre cidade e campo, e mesmo de região para região,
              o que distorcia ainda mais a representação. No terceiro estado,
              de modo geral, só podiam votar homens com mais de 25 anos e, em
              Paris, que também fossem contribuintes de importância razoável
              (voto censitário) - o que excluía todos os mais pobres. Foram
              eleitos entre 1118 e 1196 deputados (a inexatidão dos registros
              não permite certeza absoluta dos números): quase 300 do clero,
              aproximadamente o mesmo número da nobreza, e pouco menos de 600
              do terceiro estado. Entre os eleitos da nobreza, uma minoria tinha
              idéias liberais; entre os do clero predominavam párocos (baixo
              clero); e no terceiro estado praticamente todos eram burgueses -
              nenhum camponês ou operário(42) - com predomínio de
              juristas(43). Quando os Estados Gerais começaram a se reunir, em
              4 de maio de 1789, a crise social já havia se intensificado
              dramaticamente, devido ao crescimento do desemprego, alta dos
              preços e aumento da fome nas massas populares. Pequenos
              aglomerados espontâneos de pessoas surgiam nas praças de Paris
              quase todos os dias, cresciam em poucas horas, os protestos
              tornavam-se inflamados, logo a polícia comparecia, começava o
              tumulto. Alastraram-se por todo o país agitações camponesas,
              pilhagens de celeiros, ataques a castelos e a igrejas, saques de
              lojas nas cidades, greves por reivindicações salariais em Paris.
              Um autor(44) "...registrou mais de 400 revoltas entre abril e
              julho de 1789". O povo comum parecia ter perdido todo medo
              das autoridades. Os deputados eleitos aos Estados Gerais
              ocuparam-se, entre 4 de maio e meados de junho, com verificações
              procedimentais, reunindo-se em Versalhes separadamente por ordens,
              como havia sido em 1614. Mas a maioria dos deputados burgueses,
              empolgados pelo clima radicalizado do país, e cada vez mais
              incitados pela população que assistia às suas sessões, passou
              a reivindicar que os deputados das três ordens se fundissem numa
              só plenária, votando por cabeça, constituindo uma única
              Assembléia Nacional soberana sem distinções por ordens. Era uma
              proposta de claro rompimento com a legalidade, garantiria maioria
              ao terceiro estado e afrontava ao rei. A tensão aumentou,
              surgiram boatos de intervenção militar a mando de Luís XVI.
              Nesse clima de exaltação, os deputados do terceiro estado
              fizeram, em 20 de junho, o célebre "Juramento de Jeu de
              Paume"(45). Muitos deputados do baixo clero, e até alguns
              dos nobres liberais, aderiram abertamente às propostas dos
              burgueses. Em 23 de junho, o rei reuniu-se com os três estados,
              acenou com concessões (liberdade de imprensa, liberdade
              individual etc.), mas ordenou que as sessões fossem por ordens,
              sob ameaça de dissolução do terceiro estado. Saiu do salão
              acompanhado dos deputados da nobreza e de parte do clero. Os
              deputados remanescentes, grande maioria, continuaram reunidos
              (Mirabeau: "Só sairemos pela força das baionetas!") e
              essa assembléia decretou a imunidade de seus membros. O rei
              ordenou o uso da força para expulsá-los. Mas, a essa altura, uma
              grande massa popular já havia ocupado sem resistência o pátio
              do palácio; a própria guarnição de Versalhes não era
              confiável. Diante do impasse, os nobres liberais promoveram uma
              conciliação, e o rei foi obrigado a voltar atrás. A burguesia
              saiu vitoriosa em sua aberta ruptura com a legalidade monárquica:
              em 27 de junho, os três estados já se reuniam unificados. Era o
              fim do absolutismo. Em 7 de julho, os Estados Gerais adotaram o
              nome de Assembléia Nacional Constituinte e no dia 11 já era
              apresentada uma primeira versão do que em breve viria a ser uma
              Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Vencidos pela
              burguesia, mas não conformados, o rei e a maioria da nobreza
              começaram a articular o contra-ataque: constituíram um novo
              ministério "de confrontação" e ordenaram o
              deslocamento de tropas (18.000 soldados(46)) para a região de
              Paris, com o claro propósito de desfechar um golpe e dissolver a
              Assembléia Nacional Constituinte. Porém, a situação já havia
              saído de controle. A sedição popular se generalizava: uma massa
              crescente de desempregados e famintos, pequenos lojistas,
              artesãos, operários e profissionais liberais realizava comícios
              inflamados, provocava choques com a guarda, pilhagens e
              incêndios, deserções na tropa, expulsão de autoridades.
              Liderada por burgueses e pequeno-burgueses radicais, a massa
              popular entrou em processo intensivo de organização em todos os
              bairros: lojas de armas foram esvaziadas, grupos de civis armados
              e guardas amotinados passaram a controlar os portões de Paris,
              armaram barricadas, ocuparam prédios públicos e circulavam em
              patrulhas. No dia 13 de julho, um comitê popular formou-se em
              Paris e criou uma milícia civil burguesa. Para armar essa
              milícia, uma multidão atacou na manhã do dia 14 o arsenal do
              Hôtel des Invalides, onde apoderou-se de pelo menos 30.000
              fuzis(47), distribuídos imediatamente aos insurretos. No mesmo
              dia, a fortaleza-prisão da Bastilha, odiado símbolo do
              absolutismo, foi cercada à busca de mais armas. Seu diretor
              aceitou dialogar com uma delegação do povo, prometeu só
              disparar se a Bastilha fosse atacada, mas quando a delegação se
              retirava os canhões da fortaleza abriram fogo. Os
              revolucionários passaram ao assalto: apoiados por soldados
              desertores que trouxeram canhões, arrombaram os portões da
              fortaleza, renderam a guarnição defensora, executaram o diretor
              da Bastilha, libertaram os poucos presos que lá estavam. A
              insurreição tomou conta da capital. Iniciaram-se execuções
              sumárias. O comitê, agora chamado de "Comuna de
              Paris", transformou-se no novo poder municipal e a milícia
              civil organizou-se como Guarda Nacional. O rei viu-se forçado a
              recuar mais uma vez, suspendendo o nunca concluído deslocamento
              de tropas, tendo agora de acatar o poder popular surgido sob o
              signo da nova bandeira tricolor, que unia o branco da monarquia ao
              vermelho e azul da cidade de Paris. Rapidamente, acontecimentos
              semelhantes se alastraram por toda a França. Primeiro nas
              cidades, que reproduziram em graus variados a insurreição da
              capital, expulsaram as autoridades e instalaram nas
              administrações delegados do terceiro estado. E logo também nas
              áreas rurais, onde milhões de camponeses (com terra ou
              assalariados), temendo a reação do "complô
              aristocrático" e dos inúmeros agrupamentos de bandidos
              (supunha-se estarem a serviço da reação senhorial),
              intensificaram furiosamente a ação revolucionária. Dezenas de
              castelos foram incendiados em poucos dias, seus senhores colocados
              para correr, as cercas das fazendas derrubadas, as terras ocupadas
              pelos camponeses, os registros de propriedade queimados. Assim, o
              que havia começado como uma "rebelião dos nobres" em
              1788 prosseguiu como revolução jurídica da burguesia nos
              Estados Gerais, explodiu na insurreição popular armada em Paris,
              ganhou quase toda a França com as revoltas municipais e selou a
              morte do Antigo Regime com o levante de milhões de camponeses nas
              áreas rurais da França. Nos primeiros dias de agosto já era
              claro que a Revolução - ou, ao menos, sua primeira fase - havia
              triunfado. Milhares de nobres e membros da igreja iniciaram uma
              torrente migratória para países vizinhos(48) e o rei recolheu-se
              cauteloso ao Palácio de Versalhes(49). Em meio a esse inesperado
              terremoto social, a Assembléia Nacional Constituinte, inspirada -
              e pressionada - por ele, deixou de lado todas as cautelas e
              vacilações. Na noite de 4 para 5 de agosto, adotou resoluções
              abrangentes que deitavam por terra, ao menos no plano jurídico
              (na realidade social a transformação seria mais demorada e
              complicada), quase tudo o que restava do feudalismo e dos
              privilégios do clero e da nobreza. Os próprios deputados dessas
              duas ordens, subitamente "convertidos" à causa da
              Revolução - agora chamada de "sagrada" - participaram
              dessa memorável noite de generosidades, em que não faltaram
              lágrimas, renúncias "espontâneas" a privilégios
              centenários, discursos comovidos e palavras grandiosas de amor à
              "pátria" e ao "povo". Não demorou para que o
              próprio rei recebesse o título de "Restaurador da liberdade
              francesa"... O quanto essa noite teve de
              "espontânea" ou foi precipitada pela revolução
              popular é até hoje objeto de controvérsias acadêmicas. Mas,
              depois dela, não havia mais como se voltar atrás. A "Declaração" de 1789
              e a Constituição de 1791 Nessa atmosfera exaltada, venceu entre
              os deputados o ponto de vista de que, antes da redação de uma
              Constituição, deveria ser proclamada uma "Declaração dos
              Direitos do Homem e do Cidadão". Além de relacionar os
              princípios que deveriam nortear o texto constitucional, ela seria
              o manifesto revolucionário da nova França. A partir de um novo
              projeto (vários anteriores foram desprezados) cujos principais
              redatores foram Mirabeau e Sieyès, a Declaração começou a ser
              votada em 20 de agosto e foi aprovada no dia 26 desse mês, com
              dezessete artigos. É considerada o atestado de óbito do Antigo
              Regime. "Os homens nascem e são livres e iguais em
              direitos" (art. 1°) e "a finalidade de toda
              associação política é a conservação dos direitos naturais e
              imprescindíveis do homem" (art. 2°). Quais são esses
              direitos ? São quatro: "a liberdade, a propriedade, a
              segurança e a resistência à opressão" (art. 2°). A
              soberania foi atribuída, no artigo 3°, à "Nação"
              (fórmula unificadora) e não ao povo (expressão rejeitada, pelo
              que podia conter de reconhecimento das diferenças sociais). A
              liberdade (art. 4°: "poder fazer tudo aquilo que não
              prejudique a outrem") só pode ser limitada pela lei, que
              deve proibir as "ações prejudiciais à sociedade"
              (art. 5°). A lei "deve ser a mesma para todos" (art.
              6°). Não haverá acusação ou prisão "senão nos casos
              determinados pela lei e de acordo com as formas por esta
              prescrita", devendo então o cidadão submeter-se,
              "senão torna-se culpado de resistência" (art. 7°). Os
              princípios da necessária anterioridade da lei face ao delito e
              da presunção de inocência dos acusados foram estabelecidos nos
              artigos 8° e 9°. A liberdade de opinião, inclusive religiosa,
              foi enunciada no artigo 10° e a de expressão no artigo 11°. A
              necessidade de uma "força pública" para garantia dos
              direitos do homem e do cidadão foi incluída no artigo 12°. O
              artigo 13° instituía a igualdade fiscal. Os artigos 14° e 15°
              estabeleciam o direito de fiscalização dos cidadãos sobre a
              arrecadação e os gastos públicos. O artigo 16° enunciava a
              necessidade de garantia dos direitos e de "separação dos
              poderes". Por fim, o artigo 17° reiterava que "a
              propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela
              pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública
              legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob a condição de
              justa e prévia indenização"(50). É óbvia a inspiração
              jusnaturalista, conforme aponta Bobbio(51): "...o núcleo
              doutrinário da Declaração está contido nos três artigos
              iniciais: o primeiro refere-se à condição natural dos
              indivíduos que precede a formação da sociedade civil; o
              segundo, à finalidade da sociedade política , que vem depois (se
              não cronologicamente, pelo menos axiologicamente) do estado de
              natureza; o terceiro, ao princípio de legitimidade do poder que
              cabe à Nação". Mas, como se pode ver, os quatro
              "direitos naturais" enunciados no artigo 2° (liberdade,
              propriedade, segurança e resistência à opressão) são
              contemplados desigualmente na Declaração. A liberdade recebeu
              sete artigos: o 4° e o 5° definem seus contornos gerais, do 7°
              ao 9° é tratada a liberdade individual, o artigo 10° refere-se
              à liberdade de opinião e o 11° à liberdade de expressão. A
              propriedade só é abordada no artigo 17°, mas beneficia-se de um
              tratamento enfaticamente protecionista e privatista - note-se que
              é o único direito qualificado como "inviolável e
              sagrado". A segurança só é contemplada no artigo 12°, e
              de modo visivelmente menos relevante. Quanto ao direito de
              resistência à opressão, a Declaração nada lhe dedicou, a não
              ser a menção inicial. Há uma ausência memorável: a igualdade
              não figurou entre os direitos "naturais e
              imprescindíveis"(52) proclamados no artigo 2°, muito menos
              foi elevada ao patamar de "sagrada e inviolável" como
              fizeram com a propriedade. Além disso, quando mencionada depois,
              o foi com um certo sentido: os homens são iguais - mas "em
              direitos" (art. 1°), perante a lei (art. 6°) e perante o
              fisco (art. 13). Assim, a igualdade de que cuida a Declaração é
              a igualdade civil (fim da distinção jurídica baseada no status
              de nascimento). Nenhum propósito de estendê-la ao terreno
              social, ou de condenar a desigualdade econômica real que
              aumentava a olhos vistos no país. "O indivíduo era uma
              abstração. O homem era considerado sem levar em conta a sua
              inserção em grupos, na família ou na vida econômica. Surgia,
              assim, o cidadão como um ente desvinculado da realidade da vida.
              Estabelecia-se igualdade abstrata entre os homens, visto que deles
              se despojavam as circunstâncias que marcam suas diferenças no
              plano social e vital. Por isso, o Estado teria de abster-se.
              Apenas deveria vigiar, ser simples gendarme"(53). Na
              redação inicial, Sieyès pretendera mesmo discernir que a
              igualdade a ser garantia era "de direitos" e não
              "de recursos"(54). Mas, talvez por configurar
              distinção excessivamente reveladora, os constituintes preferiram
              não acolhê-la - o que, ironicamente, iria facilitar nas décadas
              seguintes a que a noção de igualdade fosse retomada pelo
              movimento operário num sentido radical, socialista. Também
              "não é temerário supor que, se a Assembléia descartou a
              menção da 'satisfação geral' como objetivo da associação
              política, é porque quis impedir que se invocasse a igualdade
              para exigir a melhora do destino dos deserdados da fortuna, e que
              se transformasse a igualdade jurídica ou civil em igualdade
              social"(55). Os estudiosos não deixaram passar despercebidos
              outros silêncios eloqüentes de várias dimensões da igualdade
              evitadas pelos constituintes: o sufrágio universal sequer foi
              mencionado, a igualdade entre sexos não chegou a ser cogitada (o
              "homem" do título da Declaração era mesmo só o do
              gênero masculino), o colonialismo francês (ou europeu em geral)
              não foi criticado, a escravidão não foi vituperada (e era uma
              realidade dramática naquele tempo), o direito ao trabalho foi
              esquecido etc.. Assim, tão importantes quanto as idéias que a
              Declaração contém, são as idéias que ela não contém - e
              que, a julgar pela acumulação filosófica já existente no final
              do século XVIII, a "Razão" esperaria que fossem
              acolhidas nesse texto. Os deputados constituintes reproduziram no
              início da Declaração, de modo abstrato, princípios do
              jusnaturalismo que gozavam de grande prestígio (liberdade,
              igualdade); mas, em seguida, ao "traduzirem-nos" nos
              demais artigos, promoveram uma seleção cuidadosa de temas, de
              sentidos e de ênfases - seleção guiada, evidentemente, pelo
              filtro de seus interesses e conveniências. Por mais que tivessem
              bebido nas fontes filosóficas iluministas dos direitos naturais e
              universais, seria excessivo esperar que esses burgueses
              legisladores se mostrassem dispostos, de "motu proprio",
              a pavimentar uma estrada jurídica que apontasse para alguma
              espécie mais real de igualdade social. "As contradições
              que marcaram sua obra explicam o realismo dos Constituintes, que
              pouco se embaraçavam com princípios quando se tratava de
              defender seus interesses de classe"(56). Mais precisamente,
              é "à liberdade que a burguesia mais se atém. Exige, em
              primeiro lugar, a liberdade econômica, embora não se lhe faça a
              menor menção na Declaração dos Direitos de 1789: sem dúvida,
              porque a liberdade econômica estava implícita aos olhos da
              burguesia, mas também porque as massas populares permaneciam
              profundamente apegadas ao antigo sistema de produção que, pela
              regulamentação e pela taxação, garantia, em certa medida, suas
              condições de existência. O 'laisser-faire, laisser-passer'
              constituía, desde 1789, de forma ponderável, o fundamento das
              novas instituições. A liberdade da propriedade derivou da
              abolição da feudalidade. A liberdade de cultura (agrícola)
              consagrou o triunfo do individualismo agrário, ainda que o
              Código rural de 27 de setembro de 1791 tenha mantido, não sem
              contradição, o terreno de pastagem livre e o direito de
              percurso, se baseados num título ou num costume. A liberdade de
              produção foi generalizada pela supressão dos monopólios e das
              corporações: a lei de Alíarde, de 2 de março de 1791, suprimiu
              as corporações, jurandas e mestrados, mas também as manufaturas
              privilegiadas. A liberdade do comércio interno foi acompanhada da
              unificação do mercado nacional pela abolição das aduanas
              internas e dos pedágios, pelo recuo das barreiras que incorporou
              as províncias de estrangeiro efetivo, enquanto a abolição dos
              privilégios das companhias comerciais liberava o comércio
              externo. (...) O indivíduo livre o é também de criar e de
              produzir, de procurar o lucro e de o desfrutar à sua maneira. De
              fato, o liberalismo fundado na abstração de um individualismo
              social igualitário beneficiava os mais fortes: a lei Le Chapelier
              constitui, até 1864, para o direito de greve, e até 1884, para o
              direito sindical, uma das peças mestras do capitalismo da livre
              concorrência"(57). Os constituintes deram-se por bem
              servidos gravando na "Declaração" de 1789 uma certa
              noção de liberdade que estava em voga entre os revolucionários
              liberais, que não precisava ir além do significado de garantia
              formal contra o Estado: "Isso se explica no fato de que a
              burguesia que desencadeara a revolução liberal estava oprimida
              apenas politicamente, não economicamente. Daí porque as
              liberdades da burguesia liberal se caracterizavam como
              'liberdades-resistência' ou como meio de limitar o poder que,
              então, era absoluto"(58). Portanto, a
              "Declaração" era "um manifesto contra a sociedade
              hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor
              de uma sociedade democrática e igualitária.(...) Os homens eram
              iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas
              ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era
              igualmente entendido como fato consumado que os corredores não
              terminariam juntos. E a assembléia representativa que ela
              vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era
              necessariamente uma assembléia democraticamente eleita, nem o
              regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia
              constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era
              mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a
              república democrática, que poderia ter parecido uma expressão
              mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também
              advogassem esta causa. Mas, no geral, o burguês liberal clássico
              de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim
              um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades
              civis e garantias para a empresa privada e um governo de
              contribuintes e proprietários"(59). Isso começaria a ficar
              claro logo em seguida, nos debates para a redação da
              Constituição, quando os mesmos deputados que haviam escrito a
              "Declaração" explicitaram sua rejeição à igualdade
              política, ao decidirem que o direito de voto seria
              "censitário", contra a "esquerda" jacobina
              (com destaque para o ardoroso deputado Robespierre) que batia-se
              pelo direito de voto universal. "Já em julho de 1789,
              Sieyès distinguia os cidadãos ativos, que desfrutariam dos
              direitos políticos completos, e os cidadãos passivos, que só
              teriam direitos naturais e civis. Em 29 de setembro, o comitê de
              constituição aceitava a distinção e pedia o pagamento de um
              imposto direto igual a pelo menos o valor de três dias de
              trabalho para obter a qualificação de cidadão ativo.(...) Foram
              igualmente excluídos do direito de voto os criados assalariados e
              os devedores insolventes. Para elegibilidade às assembléias
              locais, admitiu-se o pagamento de um imposto de dez dias de
              trabalho; para elegibilidade à Assembléia Nacional, a taxa foi
              fixada em marcos de prata, mas também se exigia a posse de uma
              propriedade fundiária. O marco de prata foi finalmente abolido em
              27 de agosto de 1791, como resultado de uma violenta campanha dos
              jornais democráticos contra a 'aristocracia dos ricos'. (...)
              Nessa data, a França contava 4.298.360 cidadãos ativos, em 24
              milhões de habitantes"(60). Mesmo "...a igualdade civil
              recebeu, no entanto, uma singular deturpação pela manutenção
              da escravidão nas colônias: sua abolição teria lesado os
              interesses dos grandes plantadores cujo grupo de pressão era
              particularmente influente na Assembléia"(61). Em 15 de maio
              de 1791, a Assembléia Constituinte decidia que "...o corpo
              legislativo nunca deliberará sobre o estado político das pessoas
              de cor que não forem nascidas de pai e mãe livres"(62). Só
              em fevereiro de 1794 a França foi levada a abolir a escravatura
              no Haiti - depois que uma bem sucedida insurreição de escravos
              tomou o poder nessa ilha. A Assembléia Constituinte também
              tornou o porte de armas um privilégio burguês: "somente os
              cidadãos ativos (...), únicos de posse dos direitos políticos,
              participaram da Guarda Nacional"(63). Além disso, a fome e o
              desemprego aumentavam e crescia a percepção de que os deputados
              derivavam para uma solução de conciliação com a aristocracia e
              a monarquia: por um decreto de 15 de março de 1790, boa parte dos
              direitos feudais foi considerada resgatável, em vez de abolida.
              Por outro decreto, de 3 de maio desse ano, foi fixada a taxa de
              resgate em "vinte vezes a renda anual para os direitos em
              dinheiro, vinte e cinco para os direitos 'in natura'(...). O
              resgate era estritamente individual; o camponês devia saldar os
              rendimentos em atraso desde trinta anos(...)e beneficiava
              unicamente aos proprietários, que o fizeram recair sobre os
              foreiros, meeiros e arrendatários"(64). A conciliação
              prosseguiu com a preservação da monarquia sob forma
              constitucional, como na Inglaterra. Assim, foi emergindo a
              desconfiança popular em relação à Assembléia Constituinte.
              Após uma breve pausa no final de 1789, as greves e protestos
              ressurgiram. A resposta dos deputados não poderia ser mais
              esclarecedora de suas convicções a respeito dos trabalhadores:
              "A Assembléia Constituinte votou então a lei de 14 de junho
              de 1791, cujo relator foi Le Chapelier, que proibiu, sob pena de
              multa e prisão, que todos os operários autônomos ou
              assalariados se dissessem presidentes ou síndicos, tomassem
              decisões na qualidade de autoridades, mantivessem registros, se
              associassem com vistas a recusar trabalho ou a só desempenhá-los
              por determinadas tarifas. Qualquer ajuntamento de artesãos,
              operários assalariados, autônomos ou jornaleiros seria
              dispersado pela força"(65). A lei "Le Chapelier"
              teria vida longa, quase cem anos: só foi revogada em 1.887, após
              duradoura resistência dos trabalhadores franceses. A repressão
              violenta também começou logo a agir. Em 17 de julho de 1.791 a
              Guarda Nacional, sob comando do general liberal La Fayette (herói
              na guerra de independência americana) disparou contra uma
              manifestação no Champ-de-Mars que exigia a convocação de um
              novo poder constituinte: "registraram-se, pelo menos,
              cinqüenta mortos"(66). Com esse perfil, a primeira
              Constituição produzida pela Revolução, com 210 artigos, foi
              aprovada pela Assembléia Nacional Constituinte em 3 de setembro
              de 1.791, sem ser submetida a qualquer ratificação popular.
              Foram então promovidas eleições para o novo parlamento
              nacional, chamado de Assembléia Legislativa, com mandato de dois
              anos, sob aquelas regras restritivas do voto censitário. Em
              conseqüência, o corpo eleito foi ainda menos diversificado do
              que o das eleições dos Estados Gerais: agora, "...a
              esmagadora maioria dos deputados era de origem burguesa,
              predominavam os proprietários e advogados, mas também havia 28
              padres constitucionais, 28 médicos e eruditos. (...) Eram
              notáveis que já haviam disputado um mandato local ou funções
              judiciárias"(67). O Terror "de esquerda" e
              a Constituição de 1793 Talvez a decisão de maiores
              consequências adotada pela Assembléia Legislativa foi iniciar a
              guerra contra a Áustria, em abril de 1792, numa tentativa de
              libertar-se do círculo de ferro que as monarquias européias
              haviam erguido contra a França revolucionária. Iniciou-se,
              então, o período de mais de vinte anos de guerras quase
              ininterruptas entre a França e as monarquias feudais de toda a
              Europa. Mal preparada, a guerra começou com humilhantes derrotas
              iniciais e abriu passagem para a invasão do país pela
              coligação da Áustria-Prússia, pondo em risco a sobrevivência
              da Revolução. Essa intervenção estrangeira tinha certamente
              suas próprias razões: "era cada vez mais evidente para os
              nobres e governantes por direito divino de outros países que a
              restauração do poder de Luís XVI não era meramente um ato de
              solidariedade de classe, mas uma proteção importante contra a
              difusão de idéias perturbadoras vindas da França"(68). A
              certeza de entendimentos mal ocultados entre o rei e as potências
              invasoras - e o perigo real de restauração do Antigo Regime -
              acendeu um ardoroso sentimento de patriotismo rebelde no povo
              parisiense, fortaleceu o movimento republicano e abriu caminho
              para o retorno de uma vigorosa ação de massas no cenário
              político francês. Em julho de 1.792, quase todas as 48 sections
              (assembléias distritais) de Paris foram virtualmente tomadas
              pelos sans culottes(69). Os sublevados rapidamente constituíram
              um comitê central para coordenar a ação entre as sections. Em
              12 de agosto essa irrupção popular criou uma outra Comuna em
              Paris, que se lançou novamente à insurreição armada, assumiu o
              poder na capital, forçou a Assembléia Legislativa a precipitar a
              abolição da monarquia (setembro) e a prisão do rei, exigindo,
              ainda, o fim da discriminação entre cidadãos "ativos"
              e "passivos" e a convocação de uma nova assembléia
              constituinte. No mesmo semestre foi eleita e empossada a
              Convenção Nacional, agora num processo de sufrágio que, pela
              primeira vez, foi quase universal, embora indireto. Essa
              "segunda Revolução Francesa", conseguiu mobilizar
              poderosamente as energias populares, fez inverter o curso da
              guerra, deu uma seqüência de vitórias à França contra seu
              cordão de inimigos externos e empurrou para fora do país os
              exércitos invasores. Porém, ao mesmo tempo, as contradições
              sociais radicalizavam-se dramaticamente. Os remanescentes do bloco
              social aristocrático-clerical, ainda muito fortes, assim como o
              setor "moderado" da burguesia (monarquistas
              constitucionais), viram que estavam rompidas as possibilidades de
              conciliação - o rei, inclusive, fora guilhotinado em 21/01/1.793
              por decisão da Convenção Nacional. Além disso, a Igreja
              Católica já havia conseguido ganhar para o campo da
              contra-revolução uma fração ponderável dos camponeses, que se
              sentiam feridos em suas crenças religiosas desde que os
              revolucionários, no acirramento da luta contra o clero,
              deflagraram uma agressiva campanha de
              "descristianização"(70). Esse conjunto de forças
              lançou-se numa feroz guerra civil contra o governo de Paris em
              imensas regiões do interior (principalmente na Vendéia e na
              Bretanha), promovendo massacres de revolucionários - que
              respondiam na mesma moeda. Não demorou também para que se
              ampliassem por quase toda a Europa as alianças militares
              estrangeiras contra a França: o país voltou a ser invadido,
              agora por todos os lados, ficando em situação de cerco completo
              e iminente aniquilamento. A economia de livre empresa sem
              controle, instituída desde 1789, entrou em turbulência
              inflacionária e os preços dos alimentos dispararam novamente.
              "Em junho de 1793, sessenta dos oitenta departamentos
              franceses estavam em revolta contra Paris; os exércitos dos
              príncipes alemães estavam invadindo a França pelo norte e pelo
              leste; os britânicos atacavam pelo sul e pelo oeste: o país
              achava-se desamparado e falido"(71). Nesse panorama, a
              Convenção Nacional - composta por cerca de 900 deputados
              majoritariamente burgueses e repletos de cisões internas -
              curvou-se aos clamores que vinham da aliança entre jacobinos e
              sans-culottes e constituiu, em abril de 1793, um governo
              revolucionário de guerra, dirigido por um Comitê de Salvação
              Pública. O agravamento dos conflitos políticos - na Convenção
              e na sociedade - fez subir depressa a temperatura: em 2 de junho
              de 1793, uma multidão de sans culottes e soldados invadiu a
              Convenção, expulsou e prendeu os 29 deputados que compunham o
              núcleo principal dos moderados Girondinos, partidários, antes de
              tudo, de um legalismo garantidor da liberdade econômica. O
              movimento popular empurrava a Revolução para a frente, exigindo
              a intensificação do levée en masse (mobilização geral) e o
              esmagamento dos inimigos internos e externos da Revolução. A
              partir daí, logo pontificou no Comitê de Salvação Pública o
              advogado Robespierre, rousseauniano ardoroso, conhecido como
              "o Incorruptível". Em setembro de 1793, iniciavam-se os
              onze meses conhecidos como período do "Terror":
              direcionamento estatal da economia para o esforço de guerra,
              controle compulsório de preços, salários e lucros, confisco de
              grãos para alimentar as tropas, incentivo à participação das
              massas em todos os momentos, execução na guilhotina de milhares
              de nobres e de opositores em geral. Repressão não só aos
              inimigos declarados da Revolução, como também a todas as
              próprias dissidências internas a ela, da "direita" à
              "esquerda"(72) (inclusive de muitos jacobinos e sans
              culottes). Busca da unidade completa do país, a fogo e ferro, com
              ou sem lei (Robespierre: "Não se pode querer uma revolução
              sem revolução"), para salvar la grande nation. Sob este
              ponto de vista, deu certo: em menos de um ano, não só a guerra
              civil estava sendo revertida em favor dos revolucionários, como
              todos os exércitos estrangeiros haviam sido escorraçados. Mais
              ainda: o que inicialmente fora guerra de autodefesa já se
              transformara em guerra de ocupação e anexação de territórios
              de países vizinhos, com base numa doutrina político-militar
              recém-inventada pela burguesia que pregava a necessidade de
              estender as fronteiras da França até certos limites geográficos
              "naturais". Foi sob pressão dos mesmos sans culottes e
              jacobinos que a Convenção Nacional redigiu a segunda
              Constituição produzida pela Revolução, democrática e
              socialmente avançada para a época - aprovada por um referendum
              popular em julho de 1793, o que também era inédito. Essa
              Constituição - chamada pelos revolucionários de
              "Constituição do Ano I"(73) - estava dividida em duas
              partes: uma "Declaração dos direitos do homem e do
              cidadão", de 35 artigos, seguida de um "Ato
              Constitucional", com mais 124 artigos. Além de todos os
              direitos, deveres e liberdades previstos na
              "Declaração" de agosto de 1789, a nova
              "Declaração" introdutória desta Constituição
              iniciava-se com a afirmação solene, já no artigo primeiro, de
              que "o fim da sociedade é a felicidade comum", e
              colocava a igualdade (art. 2°) entre os direitos naturais
              imprescritíveis - no mesmo nível da propriedade, liberdade e
              segurança. Mantinha a igualdade civil da Declaração de 1789 e
              bania a distinção política entre cidadãos "ativos" e
              "passivos" que fora gravada em três artigo do Título
              III, Capítulo I, da Constituição de 1791. No artigo 18, proibia
              a compra e venda de seres humanos e abolia a servidão doméstica
              (mantida na Constituição anterior, Título III, Capítulo I).
              Instituía, no artigo 21, a assistência social como "dívida
              sagrada" e reconhecia o direito ao trabalho. Erigia a
              instrução pública (artigo 22) a direito de todos os cidadãos.
              Indicava (artigo 23) que os direitos de cada um deviam ser
              operantes, assegurados pela ação de todos. O último artigo
              dessa "Declaração" introdutória era flamejante:
              "Sempre que o Governo viola os direitos do povo, a
              insurreição constitui, para o povo e para cada porção do povo,
              o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos
              deveres". Na segunda parte dessa Constituição - o "Ato
              Constitucional" - vários artigos (2°, 7° e 8°)
              consagravam o princípio da soberania popular (na Constituição
              de 1791, artigos 1° e 2° do Título III, a soberania pertencia
              à Nação). No artigo 4°, o Ato Constitucional acabava com o
              requisito de pagamento de uma importância em dinheiro para
              adquirir a condição de cidadão (previsto no Título III,
              Capítulo I, da outra Constituição). O princípio do sufrágio
              universal decorria do espírito que perpassava vários artigos
              (4°, 7°, 8°, 11, 32 e 37), e o princípio da elegibilidade
              universal estava consagrado no artigo 28. A imunidade criminal dos
              parlamentares por opiniões expressadas dentro do Corpo
              Legislativo estava assegurada no artigo 43. O Ato combinava a
              democracia representativa (artigos 8° e 9°) com formas amplas de
              democracia direta: de acordo com os artigos 57 a 60, todas as leis
              deveriam ser aprovadas provisoriamente pelo parlamento e remetidas
              a todas as comunas da Repúblicas, só passando a vigorar se não
              fossem contestadas pelas assembléias primárias de eleitores. A
              República era organizada de modo parlamentarista (art. 65). Todos
              os juizes e administradores eram eleitos (arts. 79 e 80). A
              publicidade era assegurada no último artigo: "A declaração
              dos direitos e o ato constitucional ficam gravados em tábuas no
              interior do Corpo Legislativo e nas praças públicas"(74).
              "Foi a primeira constituição genuinamente democrática
              proclamada por um Estado moderno"(75). Contudo, a
              Constituição do Ano I nunca foi aplicada. Tanto no que diz
              respeito ao exercício da democracia, quanto no que se refere às
              aspirações sociais dos trabalhadores e das mulheres, o abismo
              entre textos jurídicos pomposos e sua efetividade prática dá o
              tom. A Convenção Nacional, agora sob hegemonia jacobina, decidiu
              em 10 de outubro desse ano que a nova Constituição ficaria
              suspensa enquanto durasse a guerra (iria durar mais de 20 anos!).
              Num discurso de 1794, Robespierre bradava: "É preciso
              organizar o despotismo da liberdade para esmagar o despotismo dos
              reis"(76). Assim, aqueles avanços de natureza democrática e
              os acenos rumo a uma justiça social distributiva, pela primeira
              vez colocados numa Constituição pela pressão popular,
              tornaram-se letra morta antes mesmo que essa pressão refluísse
              pelo cansaço do esforço de guerra. Quando os operários
              parisienses, desesperados pela fome, reiniciaram em 1793 protestos
              desorganizados contra a carestia, os líderes "enragés"
              (raivosos, furiosos...) que os defenderam foram acusados pelo
              próprio Robespierre de "agentes do fanatismo, do crime e da
              perfídia". O principal deles, Jacques Roux, ex-padre e
              membro da Comuna formada em Paris em 1.789, denunciava em 25 de
              junho de 1793: "A igualdade não passa de um vão fantasma
              quando o enriquecido pelo monopólio exerce o direito de vida e
              morte sobre seu semelhante"(77). Roux foi preso em 5 de
              setembro e encaminhado ao Tribunal Revolucionário, meio seguro de
              remetê-lo à guilhotina. Preferiu o suicídio em 10 de fevereiro
              de 1794. Como o mal-estar social só se agravasse, não demorou
              para que surgisse outro líder em defesa dos esfomeados: Hébert,
              jornalista e suplente da Comuna de Paris, que juntou um grupo
              militante em torno de si e foi acusado de ser demagogo. No início
              de 1794, quando a miséria gerou novos tumultos em Paris, Hébert
              e seus amigos foram presos e guilhotinados. A repressão também
              se abateu sobre o incipiente e frágil movimento feminista. A
              Revolução, em momento algum, mostrou inclinação de estender
              às mulheres direitos iguais aos dos homens. Já em janeiro de
              1789, quando lançou seu panfleto revolucionário "Quê é o
              Terceiro Estado?", o abade Sieyès deixou isso claro:
              "Não pode haver em gênero algum uma liberdade ou um direito
              sem limites. Em todos os países, a lei fixou caracteres
              preciosos, sem os quais não se pode ser nem eleitor, nem
              elegível. (...) E as mulheres estão, em toda parte, por bem ou
              por mal, impedidas de receber essas procurações."(78)
              Assim, quando Claire Lacombe, atriz da Comédie Française, líder
              popular e organizadora da Sociedade das Mulheres Revolucionárias,
              tentou exigir isso, teve o mesmo destino de todos os que eram
              considerados inimigos da Revolução(79). Os jacobinos, malgrado
              seu radicalismo operacional e sua bem sucedida política de
              alianças com as classes populares, nunca deixaram de ser
              revolucionários burgueses: "partidários do liberalismo
              econômico, aceitaram a regulamentação e a taxação como uma
              medida de guerra e como uma concessão às reivindicações
              populares"(80). Aliaram-se aos sans culottes - e à massa de
              proletários que eles arrastavam atrás de si - no combate comum
              à direita da Convenção. Contudo, no início de 1794, sua
              ditadura "salvacionista" já havia conseguido quebrar a
              energia popular e esvaziar a dinâmica democracia direta das
              sections parisienses. "Mas o que o governo ganhava em força
              coativa perdia em apoio confiante; sua base social encolhia-se
              perigosamente"(81). O Terror "de direita" e a
              Constituição de 1795 Tão logo os perigos que ameaçavam a
              França foram esconjurados pelas vitórias em campo de batalha e o
              movimento dos sans culottes perdeu fôlego, formou-se uma nova
              maioria de direita entre os deputados da Convenção Nacional. No
              dia 27 de julho de 1794 (9 de Termidor do Ano II, pelo novo
              calendário) os jacobinos foram derrubados do poder. Terminava o
              terror "de esquerda", começava o terror "de
              direita". Robespierre, ao ser preso, recebeu um tiro que lhe
              estilhaçou o maxilar. No dia seguinte, ele e mais 22 jacobinos
              foram guilhotinados. Mais um dia, e outros 71 robespierristas
              acabaram do mesmo jeito. O banho de sangue iniciado por essa
              "reação termidoriana" colocou a definitiva pá de cal
              nas esperanças de democracia e justiça social que a Revolução
              pudesse ter suscitado. A partir daí, a correlação de forças se
              definia: "A Revolução seria 'burguesa' e nada faria pelos
              operários"(82). O terror de direita (chamado,
              eufemisticamente, de "branco") alastrou-se por toda a
              França, com massacres de jacobinos e sans culottes em Lyon,
              Nîmes, Montélimar, Tarascon e Avignon(83). Em dezembro de 1794,
              a Convenção Nacional reintegrou os Girondinos. O controle de
              preços foi extinto, o liberalismo econômico retornou por
              completo e, com ele, o abastecimento desorganizou-se e a
              inflação disparou. "Miséria crescente: o índice do custo
              de vida em Paris, com base 100 em 1790, passou de 580 em janeiro
              de 1795, a 720 em março e 900 em abril"(84). Em 1° de abril
              de 1795 (12 de Germinal do ano III) uma multidão esfomeada,
              desarmada e sem chefes, invadiu a sala de sessões da Convenção
              implorando "pão e Constituição". A repressão foi
              exemplar: prisões, deportações para a Guiana, guilhotina,
              expurgo na Guarda Nacional. Mas a fome continuava gerando
              desespero. Em 20 de maio de 1795 (1° de Pradial), outra
              multidão, principalmente mulheres, invadiu de novo a Convenção
              e um deputado foi morto na confusão. Os deputados fugiram, só
              restando os "montanheses"(85), que votaram alguns
              decretos em atendimento às reivindicações dos manifestantes.
              Algumas horas depois, retomada a Convenção pela tropa
              governista, esses decretos foram anulados e os
              "montanheses" foram acusados de cumplicidade com os
              "desordeiros". No dia 23 de maio, 20.000 soldados
              cercaram o faubourg (bairro popular do subúrbio) de Saint-Antoine,
              que capitulou. Desta vez, repressão ainda mais feroz, inclusive
              condenação à morte pelo Tribunal Revolucionário de seis
              deputados "montanheses" (todos tentaram o suicídio na
              prisão, mas três não morreram e foram conduzidos moribundos à
              guilhotina). Ao mesmo tempo em que esmagavam o movimento popular,
              os burgueses termidorianos, muito conscientes do que convinha a
              seus interesse de classe, não pensavam numa volta ao ancien
              régime: uma expedição de monarquistas emigrados, capturada em
              21 de julho de 1.795 após desastrada tentativa de invasão da
              França, foi punida com oitocentas condenações à
              guilhotina(86). Dois decretos da Convenção, nessa fase de
              vitória termidoriana, foram extraordinariamente sugestivos: em 12
              de junho de 1795 foi proscrito o uso da palavra
              "revolucionário"; e em 24 de junho foi ordenada a
              destruição dos edifícios dos jacobinos da rua Saint-Honoré,
              para dar lugar a um...mercado(87). Nessa nova atmosfera política,
              nem pensar mais em aplicar a Constituição de 1793. Entre 4 de
              julho e 17 de agosto de 1795, a Convenção Nacional discutiu e,
              em 22 de agosto, aprovou uma nova Constituição - a terceira
              após a Revolução. Tinha 377 artigos, continuava buscando
              legitimidade nos "direitos naturais" e cristalizava um
              recuo em relação aos avanços experimentados pelos Direitos
              Humanos na Constituição de 1793. Começava com uma declaração
              de direitos e deveres que, desde logo, contemplava no artigo 5° a
              propriedade com uma definição de sentido individualista e sem
              limitações, como nas Constituições anteriores: "a
              propriedade é o direito de desfrutar e dispor de seus bens,
              rendas, do fruto de seu trabalho e da indústria". O artigo
              8° da Declaração de deveres indicava o fundamento da sociedade:
              "É na manutenção das propriedades que repousam a cultura
              das terras, todas as produções, todo meio de trabalho e toda a
              ordem social". Para alguém obter a condição de cidadão, a
              Constituição passava a exigir o pagamento de "uma
              contribuição direta, territorial ou pessoal ". O enunciado
              solene do artigo 1° da "Declaração" de 1789 ("Os
              homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos") foi
              abandonado e, na Constituição de 1795, substituído (art. 3°)
              por: "A igualdade consiste no fato de a lei ser igual para
              todos". O princípio do voto universal foi abolido e, em seu
              lugar, foi restabelecido (art. 35) o sistema de voto censitário
              de 1791, porém desta vez muito mais excludente socialmente:
              "Ninguém poderá ser eleitor se não tiver 25 anos completos
              e não reunir às qualidades necessárias para exercer os direitos
              de cidadão francês uma das condições seguintes, a saber: nas
              comunas com mais de 6 mil habitantes, ser proprietário ou ter o
              usufruto de um bem cuja renda for avaliada como igual ao valor
              local de duzentos dias de trabalho, ou ser o locatário de uma
              moradia avaliada numa renda igual ao valor de 150 dias de
              trabalho, ou de um bem rural avaliado em duzentos dias de
              trabalho. Nas comunas com menos de 6 mil habitantes, ser
              proprietário ou ter o usufruto de um bem cuja renda for avaliada
              corno igual ao valor local de cem dias de trabalho. E no campo,
              ser proprietário ou ter o usufruto de um bem cuja renda for
              avaliada como igual ao valor local de 150 dias de trabalho, ou ser
              arrendatário ou meeiro de bens avaliados em duzentos dias de
              trabalho...". O Poder Legislativo adotava,
              "prudentemente", o sistema bicameral, como na Inglaterra
              e nos Estados Unidos: uma câmara baixa (o Conselho dos
              Quinhentos) e uma câmara alta (o Conselho dos Anciãos). Também
              o princípio da elegibilidade universal era restringido:
              "Para ser eleito ao Conselho dos Quinhentos era preciso ter
              trinta anos completos e ter estado domiciliado no território da
              República durante os dez anos precedentes à eleição. A
              iniciativa das leis cabia a este Conselho. (...) O Conselho dos
              Anciãos era composto de 250 membros. Para participar dele, era
              preciso ter quarenta anos, ser viúvo ou casado e ter domicilio no
              território da República há quinze anos. Ele aprovava ou
              rejeitava as propostas do Conselho dos Quinhentos. 'O Conselho dos
              Quinhentos, por ser composto de membros mais jovens, proporá os
              decretos que lhe parecerem úteis; ele será', observava Boissy
              d'Anglas, 'o pensamento e, por assim dizer, a imaginação da
              República; o Conselho dos Anciãos será sua razão'". O
              Poder Executivo era entregue a um Diretório de cinco membros,
              eleitos pelos Conselhos. Os direitos econômicos-sociais do povo,
              que haviam se beneficiado de um início de acolhida na
              Constituição de 1793, foram inteiramente deixados de lado. A
              Comuna de Paris, de lembrança tão assustadora para a burguesia,
              deixava de existir, e o direito de insurreição, exaltado na
              Constituição de 1793, não voltou a ser mencionado(88). Essa
              Constituição de 1795 (Ano III) consagrava finalmente, no plano
              jurídico, a preponderância social e política da burguesia e do
              capital. O desprezo dos liberais pelo povo, que seria doravante
              marca distintiva de sua ideologia, foi sintetizado de modo
              memorável pelo convencional Boissy d'Anglas, relator do projeto
              dessa Constituição, em seu discurso preliminar de 23 de junho de
              1795: "A igualdade civil, eis tudo o que o homem razoável
              pode exigir. A igualdade absoluta é uma quimera; para que pudesse
              existir, seria preciso que existisse igualdade total no espírito,
              na virtude, na força física, na educação e na fortuna de todos
              os homens. Em vão a sabedoria se extenuaria para criar uma
              constituição se a ignorância e a falta de interesse pela ordem
              tivessem o direito de serem aceitas entre os guardiães e
              administradores desse edifício. Nós devemos ser governados pelos
              melhores, os melhores são os mais instruídos e os mais
              interessados na manutenção das leis. Ora, com pouquíssimas
              exceções, os senhores só encontrarão homens assim entre
              aqueles que, possuindo uma propriedade, são ligados ao país que
              a contém, às leis que a protegem e que devem a essa propriedade
              e ao conforto que ela proporciona a educação que os tornou
              apropriados para discutir com sagacidade e justiça as vantagens e
              desvantagens das leis que determinam o destino da pátria". E
              Boissy d'Anglas concluiria, numa fórmula que resumia a política
              social dos termidorianos: "Um país governado pelos
              proprietários é de ordem social, aquele onde os
              não-proprietários governam está em estado de
              natureza"(89). Esse paramento constitucional oligárquico foi
              levado, no final de setembro de 1795 (Vindimário do ano IV), à
              consulta "popular" - menos de um milhão e cem mil
              eleitores, numa população que já ultrapassava 25 milhões de
              pessoas. Formalmente, estava tudo em ordem, conforme o direito
              constitucional positivo. Mas estava longe de significar paz
              social. Ao contrário: os setores populares e o incipiente
              proletariado urbano finalmente descobriam qual era o lugar que o
              reino do lucro lhes reservava e, pela primeira vez, pensariam em
              buscar um projeto social que atendesse a seus próprios interesses
              enquanto maioria oprimida. Esse novo caminho começou a ser aberto
              por Gracchus Babeuf, um jovem estudioso de origem pobre que se
              tornara líder popular muito ativo desde 1789 (inclusive sofrera
              duas prisões) e que amadurecera suas idéias extraindo lições
              dos desdobramentos sociais das várias fases da Revolução.
              Diferentemente da crença predominante entre jacobinos e sans
              culottes na função redentora da pequena propriedade individual,
              a posição de Gracchus Babeuf evoluíra para a defesa aberta da
              propriedade comum ou coletiva dos meios sociais de produção. No
              dia 30 de novembro de 1.795 (9 de Frimário do ano IV), Babeuf
              publicou no jornal Le Tribun du Peuple seu "Manifesto dos
              Plebeus", verdadeira declaração de guerra aos termidorianos:
              "A democracia é a obrigação dos que têm demais de saciar
              os que não têm o bastante; todo o déficit que se encontra na
              fortuna destes últimos procede apenas do que os outros lhes
              roubaram. Nós definiremos a propriedade, provaremos que o
              território não é de ninguém, mas de todos. Provaremos que tudo
              aquilo que um indivíduo açambarca além do que pode alimentá-lo
              é um roubo social, que, portanto, é justo tomar de volta. A
              única maneira de fazê-lo é implantar a administração comum,
              extinguir a propriedade particular, vincular cada homem ao
              talento, à indústria que conhece, obrigá-lo a entregar o fruto
              de seu trabalho em espécie às lojas comuns e criar uma
              administração única de distribuição... Este governo cuja
              viabilidade a experiência demonstrou, pois é aplicado aos 1
              milhão e 200 mil homens de nossos doze exércitos (o que é
              possível em pequena escala, é possível em grande), é o único
              que pode resultar em felicidade universal, em felicidade comum,
              objetivo da sociedade"(90). O governo do Diretório ordenou a
              prisão de Babeuf e, numa operação comandada em 27 de fevereiro
              de 1796 por um jovem general que fazia carreira meteórica
              (Napoleão Bonaparte), fechou o clube político do Panthéon, que
              agrupava militantes jacobinos conquistados para essas novas
              idéias. Babeuf escapou e, na clandestinidade, refletiu sobre as
              novas condições políticas em que se encontrava a França: os
              operários dos faubougs já haviam sido desarmados pelos
              termidorianos desde os distúrbios de Germinal e Pradial; a
              repressão policial aos movimentos populares tornara-se sufocante;
              portanto, não haveria mais espaço de liberdade para repetir-se
              uma insurreição de massas à maneira antiga, isto é, com pouca
              organização prévia e movida quase só pela propaganda
              revolucionária. Por isso, criou um comitê clandestino que
              estabeleceu laços discretos com a tropa e com os bairros
              operários, fez circular um "Manifesto dos Iguais"(91),
              e começou a preparar um levante em segredo. Mas seus planos foram
              abortados por um delator e a rebelião ficou restrita a um único
              acampamento do regimento de dragões. Houve centenas de prisões e
              deportações. Babeuf e outros companheiros foram executados em 27
              de maio de 1797. Esse movimento, que entrou para a história com o
              nome de "Revolta dos Iguais", é considerado o marco
              inicial de um longo processo de transformação da consciência
              dos trabalhadores, no sentido de passarem a exercer uma ação
              política independente da burguesia. Seu programa - uma espécie
              de "comunismo de repartição", no dizer de Lefebvre -
              ainda refletia o pequeno grau de concentração industrial e
              operária do capitalismo do final do século XVIII e antecipava as
              idealizações de reforma social de inspiração moral da primeira
              metade do século XIX que seriam conhecidas como "socialismo
              utópico". Apesar do esmagamento da resistência popular, o
              regime do Diretório criado pelos termidorianos não consolidaria
              uma institucionalização duradoura. Os termidorianos, sem o apoio
              de massas de outrora, e ainda ameaçados - pelas monarquias
              absolutistas dos países à sua volta e pela resistência
              aristocrática interna, que não se dissipara por completo -
              passaram a depender cada vez mais do exército para impor a ordem.
              A turbulência política na França pós-revolucionária ainda
              continuaria por vários anos, mas agora as lutas se davam no seio
              das novas classes dominantes, ou contra reações de inspiração
              monarquistas - cabendo, quase sempre, uma quota de repressão para
              as franjas de setores populares que fossem levadas de roldão em
              cada episódio. Seguiram-se diversos golpes (em Frutidor de 1797,
              Floreal de 1.798, Pradial de 1799) até tudo culminar no golpe de
              Estado de 10 de novembro de 1799 (18 de Brumário do Ano VIII),
              pelo qual a burguesia francesa rasgou sua própria Constituição
              e entregou o poder ao general Napoleão Bonaparte, para que ele
              impusesse a estabilidade política com base no programa econômico
              liberal de 1789-1791 e levasse o país à vitória em guerras por
              toda a Europa (até no Egito) - que, rapidamente, assumiam a
              natureza de expedições militares para anexação de territórios
              e conquista de mercados. Começava a ditadura "cesarista"
              de Napoleão, primeiro em sua forma ainda remotamente republicana
              (regime do "Consulado", 1799-1804), deslizando depois
              para o regime imperial absolutista (1804-1815), mas, em ambos os
              casos, a serviço da edificação e expansão da ordem capitalista
              francesa na Europa. Bonaparte era a "pessoa adequada para
              concluir a revolução burguesa e começar o regime
              burguês"(92) - isto a história provou. As guerras
              napoleônicas certamente concretizaram a vocação universal da
              Revolução Francesa, aniquilando a estrutura feudal remanescente
              por onde passavam seus exércitos, e exportando as instituições
              e leis burguesas para esses países. O Código Napoleônico de
              1804, que se tornaria modelo de estatuto jurídico do capitalismo
              para grande parte das nações, simboliza adequadamente isso:
              cerca de 80% dos seus dispositivos dizem respeito, direta ou
              indiretamente, à propriedade, às relações contratuais e não
              contratuais dela decorrentes ou a institutos jurídicos que lhes
              são aparentados (títulos de crédito, sociedades anônimas ou
              comanditárias, posse, sucessões, etc.). Mesmo após a debacle
              final de Waterloo, em 1815, as velhas relações feudais não
              puderam mais retornar de modo pleno, seja na França, seja em toda
              a Europa ocidental. Contudo, sob o prisma de uma história social
              dos Direitos Humanos, esse período não suscita mais interesse,
              senão pelo que passaria a apresentar de negativo. A Revolução
              Francesa - e suas extensões militares por quase todo o continente
              - já havia esgotado o que tinha a oferecer neste terreno:
              igualdade civil e liberdade individual - uma e outra muito
              relativizadas pela desigualdade social que se consolidaria no
              capitalismo. Isso não foi pouco, se comparado com o modo de vida
              na sociedade feudal, mas deixava muito a desejar para a maioria da
              população que, como visto, sonhara mais alto. Os anseios de
              igualdade social ou, ao menos, de algo que se aproximasse disso,
              foram ferozmente frustrados pelos revolucionários burgueses que,
              malgrado sua aliança com o campesinato e com as massas populares
              urbanas, sempre conservaram a hegemonia política e, por isso,
              imprimiram ao processo de transformações a marca dos seus
              interesses de classe. A própria igualdade política formal
              (sufrágio universal e elegibilidade universal), motivo de
              retumbantes discursos, nunca passou de retórica conveniente,
              mesmo durante o brevíssimo período (1792-1793) em que as classes
              populares quase conseguiram impor seus pontos de vista a esse
              respeito. Os direitos de votar e ser votado ficaram, de fato,
              restritos à elite econômica, modelo que se disseminou até o
              final do século XIX, seja por muitas variantes de qualificação
              censitária do eleitorado (isto é, baseada em censo prévio de
              patrimônio ou renda), seja mediante subterfúgios jurídicos
              aparentemente "democráticos", às vezes até
              engenhosos. Na Inglaterra do século XIX, por exemplo,
              "nenhum cidadão são e respeitador da lei era impedido,
              devido ao status pessoal, de votar. Era livre para receber
              remuneração, adquirir propriedade ou alugar uma casa e para
              gozar quaisquer direitos políticos que estivessem associados a
              esses feitos econômicos"(93). Em outros casos, o direito de
              voto não era universal simplesmente porque uma parte enorme dessa
              "universalidade" continuaria por muito tempo na
              escravidão - situação da maioria dos países americanos,
              inclusive dos EUA. Quanto às mulheres, o balanço da Revolução
              Francesa iniciada em 1789 não poderia ser mais melancólico: nada
              lhes foi concedido. Assim como Claire Lacombe, foi em vão que
              outra mulher notável, Olympe de Gouges, tentou reivindicar
              igualdade direitos: "A lei deve ser a expressão da vontade
              geral; todas as cidadãs e cidadãos devem participar
              pessoalmente, ou por meio de seus representantes, de sua
              criação; ela deve ser a mesma para todos; todas as cidadãs e
              todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, devem ter igual
              acesso a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
              segundo suas capacidades, e sem outra distinção além de suas
              virtudes e talentos"(94). Também terminou na guilhotina. "Restauração" e
              "Revolução Industrial": Direitos Humanos em crise Com
              a derrota definitiva de Napoleão em 1815 perante os exércitos da
              coligação anti-francesa (principalmente Áustria, Inglaterra,
              Rússia e Prússia), iniciavam-se quinze opressivos anos em que
              foram abolidos da Europa continental quase todos os vestígios de
              liberdades - exceto, evidentemente, a liberdade de empreendimento
              e de lucro. Foi o período conhecido como
              "Restauração". Sob a batuta da "Santa
              Aliança" (Rússia, Áustria e Prússia), monarquias
              reacionárias retornaram ao poder, promoveram a caça sistemática
              aos militantes revolucionários, colocaram a imprensa sob censura
              e se esforçaram por expurgar do ambiente cultural europeu aquelas
              "perigosas" idéias de liberdade e igualdade. A
              Inglaterra, satisfeita com a derrota imposta à velha rival, ficou
              fora da "Santa Aliança", seja porque lhe convinha
              cuidar de seus próprios interesses econômicos, seja porque sua
              burguesia liberal e sua aristocracia há muito tempo já haviam
              superado o absolutismo do rei e negociado um modus vivendi entre
              si. Na França, a monarquia foi restaurada em 1815, assumindo o
              trono Luís XVIII, irmão de Luís XVI. Mas isso não significou o
              retorno ao ancien régime anterior a 1789: as relações
              econômicas capitalistas já estavam perfeitamente consolidadas e,
              politicamente, a grande burguesia francesa não teve maiores
              dificuldades para acomodar-se a um regime que não interferiu na
              acumulação de capital. A expressão mais característica da
              resistência popular européia durante os anos sombrios da
              Restauração assumiu a forma do movimento dos carbonários(95).
              Nesse ambiente de conservadorismo, os Direitos Humanos, sofreram
              retrocesso generalizado, despontando contra eles uma agressiva
              crítica promovida pelos governos e pela Igreja Católica.
              "Para os governos conservadores depois de 1815 - e que
              governos da Europa continental não o eram? - o encorajamento dos
              sentimentos religiosos e das igrejas era uma parte tão
              indispensável da política quanto a organização da política e
              da censura: o sacerdote, o policial e o censor eram agora os três
              principais apoios da reação contra a revolução. (...) Além do
              mais, os governos genuinamente conservadores se inclinavam a
              desconfiar de todos os intelectuais e ideólogos, até dos que
              eram reacionários, pois, uma vez aceito o principio do
              raciocínio em vez da obediência, o fim estaria próximo.
              Conforme escreveu Friedrich Gentz (secretário de Metternich) a
              Adam Mueller, em 1819: 'Continuo a defender esta proposição: a
              fim de que a imprensa não possa abusar, nada será impresso nos
              próximos...anos. Se este princípio viesse a ser aplicado como
              uma regra obrigatória, sendo as raríssimas exceções
              autorizadas por um Tribunal claramente superior, dentro em breve
              estaríamos voltando a Deus e à Verdade"(96). Embora
              sobrevivesse na Igreja um pensamento - minoritário e marginal -
              receptivo a noções de progresso, sua hierarquia aferrou-se numa
              posição de repulsa, não só às idéias de igualdade e de
              direitos sociais para os trabalhadores, como também antiliberal.
              Essa inflexibilidade perduraria até o final do século XIX, só
              vindo a experimentar mudanças em 1891, quando o Papa Leão XIII
              publicou sua encíclica Rerum Novarum, em que, ao mesmo tempo em
              que demarcava escrupulosa distância do socialismo, lamentava os
              males sociais produzidos pelo capitalismo. Essa ofensiva
              ideológica de caráter regressivo congelou os direitos das
              classes populares no patamar da igualdade civil (jurídico-formal)
              alcançado durante a primeira fase da Revolução Francesa de
              1789, sem concessões que lhe estendessem os direitos políticos
              quase alcançados na segunda fase daquela revolução. Além da
              "Restauração", abateram-se também sobre os Direitos
              Humanos novos danos, não mais decorrentes de resquícios feudais
              ou do absolutismo, mas do próprio desenvolvimento da economia
              capitalista. No início do século XIX, começaram a estender-se
              sobre partes da Europa os efeitos da "Revolução
              Industrial" que já estava adiantada na Inglaterra. Neste
              país, a outra grande potência européia daquele tempo e inimiga
              histórica da França, a política já havia acertado o passo com
              a burguesia há mais de um século. Pela "Revolução
              Gloriosa" (1688), o Parlamento, dominado por uma aliança da
              alta burguesia com a nobreza anglicana libe-ral, apoiou o
              príncipe Guilherme de Orange, que destronou militarmente seu
              sogro, o rei Jaime II. Essa união da maioria das classes
              dominantes no Parlamento possibilitou-lhes mobilizarem as classes
              populares em seu favor, sem perder o controle sobre elas (como
              ocorrera na França), e acarretou a substituição revolucionária
              do absolutismo por uma monarquia constitucional bicameral. Foi,
              então, assinado o Bill of Rights (Declaração de Direitos),
              implantou-se a liberdade de imprensa, a livre iniciativa
              econômica desvencilhou-se de restrições anteriores, e logo
              desenvolveram-se outras reformas que permitiram à acumulação
              privada de lucro erigir-se em meta dominante das políticas
              governamentais(97). Os resquícios do problema camponês foram
              "resolvidos" pelos Enclosure Acts ("decretos de
              cercamentos"), pelos quais as antigas terras de uso comum
              foram cercadas e interditadas aos camponeses, forçando seu êxodo
              massivo para as cidades, dando lugar ao surgimento de extensas
              fazendas para a produção de lã e cereais. Formou-se assim na
              Inglaterra, em poucas décadas, uma numerosa classe operária
              urbana: economicamente, "livre" de seus antigos meios de
              produção e, juridicamente, "livre" para locomover-se
              do campo para os bairros miseráveis das cidades e lá abraçar a
              perspectiva de vida que lhe restava, ou seja, vender sua força de
              trabalho a baixíssimo preço a quem quisesse empregá-la. A
              Inglaterra já dispunha também de vasto império colonial, além
              de haver-se tornado a maior potência comercial da época. Quando,
              no último quarto do século XVIII, sobreveio intenso
              desenvolvimento tecnológico - invenção da fiandeira e do tear
              mecânicos, produção de ferro com carvão de coque, navios e
              locomotivas a vapor, etc. - a burguesia britânica pôde tirar
              partido da reunião privilegiada dessas duas condições
              (abundância de força de trabalho "livre" e monopólio
              quase solitário do mercado mundial) para promover a
              substituição das antigas manufaturas pela indústria mecanizada
              moderna. O país ganhou dianteira no desenvolvimento do
              capitalismo e, em 1780, já iniciava o grande salto produtivo da
              Revolução Industrial, que faria dele a principal potência
              econômica, militar e colonial do planeta por mais de cem anos.
              Mais devagar, e com algum atraso, essas transformações
              tecnológicas e produtivas foram se operando em outros países ao
              longo da primeira metade do século XIX(98). E foram sempre
              acompanhadas do desenvolvimento ou consolidação de noções
              jurídicas novas - correspondentes a essas mudanças econômicas -
              como, por exemplo, o hoje tão familiar instituto do "sujeito
              de direitos", inerente à igualdade jurídica e
              indispensável para que compra e venda capitalista da força de
              trabalho pudesse passar a ter livre curso(99). As consequências
              sociais da Revolução Industrial são bem conhecidas, mas é
              útil fixar na memória seus traços de maior relevo. Por um lado,
              multiplicou enormemente a riqueza e o poderio econômico da
              burguesia. Por outro, desestruturou o modo tradicional de vida da
              população, tornando-o permanentemente instável, aprofundando
              dramaticamente as desigualdades sociais e fazendo tornarem-se
              familiares duas realidades terríveis: o desemprego e a
              alienação do trabalhador em relação ao seu produto. No antigo
              sistema de corporações de ofícios da época do feudalismo, os
              artesãos, como se sabe, eram donos dos seus instrumentos e
              objetos de trabalho, produziam com habilidade pessoal cada artigo
              em sua casa-oficina, do começo ao fim, para um mercado pequeno e
              estável e colhiam os resultados financeiros de sua atividade. No
              sistema manufatureiro, que havia se desenvolvido na Europa durante
              a fase inicial do capitalismo (mercantilismo, mais ou menos entre
              os séculos XVI e XVIII), essa independência do trabalhador deu o
              primeiro passo em direção ao desaparecimento: os artesãos quase
              sempre ainda eram proprietários de seus instrumentos, mas o
              crescimento e a instabilidade do mercado forçaram-nos a
              trabalharem por encomendas de capitalistas-mercadores, de quem
              passaram, inclusive, a depender para o adiantamento das
              matérias-primas. Havia casos em que a antiga oficina já tendia a
              se expandir, agregando mais empregados e começando a introduzir
              uma divisão de trabalho com especialização de funções entre
              eles. Os artesãos, embora já estivessem se tornando
              tarefeiros-assalariados, ainda executavam pessoalmente quase todas
              as tarefas necessárias à produção de um artigo, mantendo o
              conhecimento do conjunto de seu processo produtivo. Com a
              Revolução Industrial, tudo se transformou: o empresário
              capitalista, dono dos novos meios de produção (máquinas,
              instrumentos, matérias primas e instalações) passou a agrupar
              no seu estabelecimento grande número de assalariados sob seu
              comando e a habilidade individual perdeu importância, pois a
              fábrica mecanizada generalizou e radicalizou a divisão do
              trabalho, fragmentando a produção de cada artigo em etapas
              sucessivas e estanques, cada uma delas exigindo quase só
              movimentos repetitivos do trabalhador. Completava-se, assim, a
              separação do trabalhador em relação a seu produto: não
              possuía mais os meios de produção, perdeu o domínio técnico
              do conjunto do processo produtivo, e deixou de ser senhor dos
              resultados de seu trabalho. Como a produtividade das fábricas
              mecanizadas era muito maior do que a das manufaturas, elas não
              tinham necessidade de absorver toda a imensa força de trabalho
              "liberada", seja pela expulsão dos camponeses das
              áreas rurais, seja pela ruína dos remanescentes urbanos do
              antigo artesanato individual. Em consequência, milhões de
              trabalhadores vieram a compor o que viria a ser chamado de
              "exército industrial de reserva": multidões de
              desempregados que, nos momentos de expansão da economia, eram
              convocados dessa "reserva" e retornavam ao assalariato
              enquanto o "capitão" da indústria deles necessitasse.
              Como essa "reserva" humana nunca se esgotasse, ela logo
              passou a desempenhar a função econômica de manter baixos os
              salários dos que estivessem empregados. À medida em que o
              capitalismo caminhou para o amadurecimento, duas características
              do seu funcionamento foram se tornando evidentes: primeiro, uma
              contradição completa entre o caráter social da produção e a
              natureza individual da apropriação de seus resultados; segundo,
              uma tendência à anarquia na produção. No artesanato feudal,
              como visto, tanto a produção quanto a apropriação de seus
              resultados estavam unidas na pessoa do artesão. No capitalismo
              concorrencial esses dois momentos sofreram cisão vertical: o novo
              modo de produção, com extremada divisão social do trabalho e
              meios de produção mecanizados, demandava o concurso de centenas
              ou de milhares de trabalhadores em cada fábrica, ou em fábricas
              sucessivas, agregando ainda trabalhos desenvolvidos virtualmente
              por toda a sociedade, desde a extração das matérias primas,
              até culminar na mercadoria acabada; mas a apropriação dos
              resultados dessa cadeia produtiva social passava a ser feita
              individualmente pelos proprietários dos novos meios de
              produção, que "redistribuíam" uma parte desses
              resultados sob a forma de salários. A desigualdade, não mais
              pelo privilégio de nascimento, estava instalada no âmago do
              sistema - era inerente à sua lógica. Por outro lado, como a
              única motivação produtiva era a busca do lucro, os capitalistas
              concentravam-se continuamente nos setores que mais favorecem isso
              e concorriam entre si pelo aumento da produção enquanto
              perdurasse a demanda do mercado. Contraditoriamente, quanto mais a
              produção se revestia de rígida disciplina e organização no
              interior da fábrica, mais desorganizada socialmente se tornava.
              Periodicamente, essa corrida sem planejamento social atingiria o
              ponto de saturação e a crise de superprodução se instalaria
              com sua coorte de falências, crescimento do desemprego e da
              miséria. Não que tivesse havido superprodução em relação às
              necessidades de toda a sociedade; a superprodução é relativa
              àquela parcela da população com poder aquisitivo, chamada
              mercado consumidor, à qual a produção capitalista se dirige.
              Malgrado as extraordinárias possibilidades produtivas geradas
              pela ciência e pela tecnologia, a atividade econômica se
              deterá, permanecendo ociosa - nos limites do mercado(100). Assim,
              os efeitos combinados da "Restauração" e da
              "Revolução Industrial" instauraram na Europa, ao longo
              da primeira metade do século XIX, o que pode ser chamado de uma
              primeira grande crise dos Direitos Humanos, desde que haviam sido
              formulados pelos filósofos racionalistas do século XVIII. Ela se
              configurava de duas maneiras: como estagnação e como
              agravamento. Era como estagnação no plano institucional, devido
              à resistência, tanto da reação monárquica como dos liberais,
              em estender os direitos políticos aos trabalhadores. E era como
              agravamento no plano econômico-social pois, além da
              convergência dessas duas forças no propósito de manter a
              igualdade em estado de raquitismo jurídico-formal (recusa em
              ampliá-la ao campo social), a Revolução Industrial havia
              também piorado dramaticamente as condições de vida dos
              trabalhadores. Até medidas instituídas com o propósito exterior
              de aliviar os tormentos dos desvalidos, muitas vezes terminavam
              por agravá-los de outras formas: "O liberalismo econômico
              se propôs a solucionar o problema dos trabalhadores de sua
              maneira usual, brusca e impiedosa, forçando-os a encontrar
              trabalho a um salário vil ou a emigrar. A Nova Lei dos Pobres de
              1814, um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos
              trabalhadores (da Inglaterra) o auxílio-pobreza somente dentro
              das novas workhouses (onde tinham que se separar da mulher e dos
              filhos para desestimular o hábito sentimental e não malthusiano
              de procriação impensada) e retirou a garantia paroquial de uma
              manutenção mínima"(101). Nessas ocasiões em que a
              miséria batesse à porta, sequer vestígios de cidadania se
              preservariam: "...os indigentes abriam mão, na prática, do
              direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento na casa
              de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão de direitos
              políticos que possuíssem. Essa incapacidade permaneceu em
              existência até 1918"(102). Claro, aos que não viam mais
              como sobreviver no Velho Mundo, restava a alternativa de renunciar
              a tudo, cruzar o oceano e ... recomeçar a vida na América. Pelo
              menos na sua grande porção norte, não havia reis e, dizia-se,
              era a terra da liberdade. A Revolução Americana Num certo
              sentido, ainda mais se comparado com a opressiva Europa da época
              da Restauração, o novo país dos Estados Unidos da América era
              mesmo a terra da liberdade - ao menos para os imigrados europeus
              do sexo masculino e seus descendentes, e mais ainda quando
              tivessem amealhado algumas posses (o que não exigiria
              sacrifícios tão imensos quanto na Europa, considerada a grande
              disponibilidade de terras). Os "pele-vermelha", como se
              sabe, não contavam, senão como incômodo a ser removido, e para
              os escravos trazidos da África não fazia qualquer diferença se
              o seu proprietário era um liberal iluminista ou um retrógrado
              renitente. Embora os índios e os escravos constituíssem a
              maioria da população, não podia mesmo fazer parte das
              cogitações dos colonizadores levar até eles o espinhoso debate
              sobre Direitos "naturais" do homem - isso não conviria
              à expansão dos negócios. Mas, exceto por esse
              "detalhe", sob o ponto de vista dos europeus dominantes
              havia realmente, há muito tempo, desde antes da independência,
              mais liberdade individual na América do Norte. Uma razão
              bastante antiga para isso consistia na circunstância de o
              feudalismo, a não ser por algumas manifestações ideológicas
              tardias e diluídas, nunca ter sido transplantado para lá
              enquanto modo de organização da sociedade e da economia, mesmo
              porque, além de outros motivos históricos, a imensidão de
              territórios vazios (isto é, não ocupados por europeus) e a
              população rarefeita tornavam isso completamente desnecessário e
              impraticável. Mais importante ainda: a Inglaterra havia se
              livrado do absolutismo cem anos antes que a França e a Europa em
              geral (desde, pelo menos, a Revolução Gloriosa de 1688) e
              desenvolvido também mais cedo as noções jurídicas de liberdade
              individual e garantias pessoais(103). Essas noções, com as
              restrições à participação que existiam na metrópole (como o
              voto censitário para as assembléias locais), foram estendidas
              aos súditos das treze colônias. No início do século XVIII,
              quando a população inglesa na costa atlântica da América do
              Norte já adquirira certa importância, ela não estava submetida
              a qualquer coisa que se assemelhasse a feudos ou a privilégios
              civis (pelo menos, intoleráveis) decorrentes do nascimento. Mesmo
              o governador e os funcionários administrativos de cada colônia
              sendo nomeados pelo rei, os habitantes que não fossem escravos,
              índios ou pessoas muito pobres já contavam com prerrogativas que
              os europeus continentais só muito depois iriam conquistar
              mediante revoluções e guerras ao som da Marselhesa. A sociedade
              colonial tornava-se mais complexa e fortalecia-se uma classe
              dominante local que se interessava cada vez mais pela vida
              política: "Os prósperos grandes negociantes, advogados,
              proprietários de terras e fazendeiros, que ocupavam elevada
              posição na sociedade colonial, vinham buscando, há muito tempo,
              exercer influência nas instituições políticas que se haviam
              estabelecido em cada colônia, tais como o conselho do governador
              e, especialmente, a assembléia. As assembléias eram eleitas
              pelos próprios colonos, pelo menos por aqueles que tinham
              patrimônio suficiente para votar, os quais eram comumente em
              número muito grande, e com o correr dos anos, as assembléias iam
              obtendo mais poder, à medida que tomavam por modelo a Câmara dos
              Comuns. Embora desejando manter-se leais ao rei, os colonos
              buscavam naturalmente certo grau de autonomia, e as elites que
              tinham assento nas assembléias procuravam transformá-las em
              miniparlamentos, recorrendo amplamente à tradição parlamentar
              inglesa para justificar suas reivindicações"(104). O
              incessante crescimento dessa autonomia levou a que,
              "...quando o Parlamento de Londres, a partir de 1764,
              pretendeu instituir taxas sem o prévio consentimento dos colonos
              subjugados, estes as sentiram como uma violação de seus
              direitos. A agitação e a revolta que se seguiram, foram, no fim
              das contas, a expressão de um civismo britânico. Tratava-se de
              manter, contra o governo e o rei inglês, as liberdades...da
              Inglaterra"(105). Os desentendimentos entre a Inglaterra e
              seus súditos na América, que terminaram conduzindo ao movimento
              pela independência, foram causados por medidas mercantis e
              tributárias adotadas pela metrópole que, a partir da década de
              setenta do século XVIII, passaram a ser consideradas pelos
              colonos como indevidamente lesivas aos seus interesses comerciais
              e financeiros. "Desde meados do século XVII, por exemplo, o
              comércio colonial fora regulado pelas Navigations Laws (Leis da
              Navegação), que exigiam que alguns produtos coloniais fossem
              exportados diretamente para a Inglaterra, e apenas em navios
              ingleses ou coloniais, e poder-se-ia argumentar ser injusto que
              ainda se acrescentassem impostos a tais restrições
              comerciais"(106). Duas tentativas do governo inglês de
              aplicar novos tributos às suas possessões americanas acirraram
              os ânimos dos fazendeiros, comerciantes e profissionais liberais
              lá estabelecidos: em 1764, uma taxa alfandegária denominada
              Sugar Act (Lei do Açúcar) ou Plantation Act (Lei das Fazendas);
              em 1765, o Stamp Act (Lei do Selo), que seria o primeiro imposto
              interno das colônias. "Algumas assembléias coloniais já se
              haviam queixado de que a Lei do Açúcar significava que os
              norte-americanos estavam sendo tributados sem terem dado sua
              anuência. A instituição de um novo imposto interno pelo
              Parlamento levantou, de maneira ainda mais áspera, a polêmica
              sobre se os colonos norte-americanos podiam ser tributados por um
              organismo no qual não eram diretamente representados. (...) A Lei
              do Açúcar havia incomodado sobretudo os habitantes da Nova
              Inglaterra, mas a Lei do Selo causou aborrecimento em todas as
              colônias, pelo menos aos cidadãos influentes, como advogados,
              grandes negociantes, impressores e agricultores, cujas atividades
              comerciais foram diretamente afetadas pelas novas taxas. (...)
              Organizações secretas, conhecidas como Filhos da Liberdade,
              disseminaram-se pelas principais cidades para coordenar a
              resistência e ameaçar os que apoiassem a Lei do Selo. Todos os
              distribuidores de selos foram obrigados a renunciar a seus cargos.
              Grandes negociantes constituíram associações de
              não-importação para boicotar mercadorias britânicas. Em
              outubro de 1765, nove colônias enviaram representantes para um
              Congresso da Lei do Selo, reunido em Nova York, e este, ao mesmo
              tempo que insistiu em sua lealdade ao rei, insistiu também em que
              os colonos gozassem dos mesmos direitos que os ingleses da
              metrópole, e que só pudessem ser tributados por suas respectivas
              assembléias de representantes"(107). O Parlamento britânico
              acabou recuando e, em março de 1766, revogou a Lei do Selo, mas
              aprovou o Declaratory Act (Lei Declaratória), em que firmava seu
              direito de tributar as colônias. Em 1767, o Parlamento voltou à
              carga com o Revenue Act (Lei da Receita), criando tarifas
              alfandegárias sobre o chá e diversos artigos manufaturados que
              as colônias importavam. Os colonos deflagraram novo boicote aos
              produtos da metrópole, começaram a ocorrer agitações e, em
              março de 1770, cinco norte-americanos morreram durante a
              repressão a um protesto, episódio que ficou conhecido como
              "Massacre de Boston". A Inglaterra cedeu novamente, mas,
              para fixar sua autoridade, manteve as tarifas sobre a importação
              de chá. Os colonos contornaram a imposição, passando a comprar
              chá contrabandeado, o que levou a Companhia das Índias Orientais
              a perder quase todo o seu mercado americano. O Parlamento reagiu
              impondo, em 1773, o Tea Act (Lei do Chá), que autorizava aquela
              Companhia a vender seu produto diretamente na América, com
              tarifas reduzidas, o que causou perda de lucros aos comerciantes
              norte-americanos envolvidos com o contrabando de chá. A rebeldia
              aumentou, simbolizada pela Boston Tea Party (Festa do Chá de
              Boston) de dezembro de 1773, em que americanos disfarçados de
              índios jogaram ao mar um carregamento de chá inglês que havia
              chegado ao porto. Em represália, o governo inglês, mediante os
              Coercitive Acts (Leis Coercitivas) ou Intolerable Acts (Leis
              Intoleráveis), de 1774, baixou, dentre outras, as seguintes
              medidas repressivas: fechou o porto de Boston para discipliná-lo,
              reduziu as prerrogativas da Assembléia de Massachusetts, proibiu
              manifestações públicas na cidade e aumentou os poderes do
              governador inglês de interferir na administração, na polícia e
              na magistratura da colônia. Em vez de se intimidarem, os colonos
              intensificaram a resistência: representantes de doze colônias
              reuniram-se na Filadélfia, em setembro de 1774, num primeiro
              Congresso Continental, que recusou a sujeição tributária dos
              norte-americanos à Inglaterra, decretou boicote geral às
              mercadorias inglesas e proclamou os direitos dos norte-americanos
              à vida, à liberdade e à propriedade. Em fevereiro de 1775, o
              Parlamento britânico considerou formalmente que Massachusetts
              estava em sedição contra a metrópole e o governo britânico
              preparou-se para repor a ordem. A partir daí, os acontecimentos
              precipitaram-se para a guerra de independência (abril de 1775 a
              setembro de 1883), durante a qual os norte-americanos obtiveram
              apoio econômico e militar da França (a partir de fevereiro de
              1778) e da Espanha (a partir de 1779), potências rivais da
              Inglaterra. Foram, então, proclamadas as famosas
              "Declarações" americanas de direitos: a
              "Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia"
              (12/01/1776) e a "Declaração de Independência dos Estados
              Unidos da América" (4/7/1776). A "Declaração de
              Direitos do Bom Povo de Virgínia", considerada a primeira
              declaração de direitos dos tempos modernos, enunciava em suas
              dezesseis seções princípios e garantias assim sintetizados:
              igualdade natural de todos os homens e existência de direitos
              inatos de que não podem ser privados, "nomeadamente o gozo
              da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a
              propriedade e procurar e obter felicidade e segurança"
              (seção I); soberania popular (seção II); governo para o bem
              comum, sob pena de mudança e substituição (seção III);
              proibição de proventos ou privilégios que não resultem de
              função pública (seção IV); separação de poderes (seção
              V); sufrágio masculino limitado aos que tiverem
              "consciência suficiente do permanente interesse comum e
              dedicação à comunidade" e proibição de tributação ou
              privação arbitrária da propriedade (seção VI); proibição do
              descumprimento arbitrário de leis pelo governo (seção VII);
              vedação à prisão ilegal e garantia dos direitos de defesa e de
              julgamento pelo júri popular, tanto em causas criminais (seção
              VIII) como em litígios sobre a propriedade (seção XI);
              proporcionalidade entre delitos e penas e proscrição de penas
              cruéis (seção IX); vedação de ordens de busca ou de prisão
              sem acusação específica e baseada em fatos (seção X);
              liberdade de imprensa (seção XII); policiamento por milícias
              civis e subordinação do exército à autoridade civil (seção
              XIII); vedação de existência de governo paralelo dentro do
              território de Virgínia (seção XIV); "firme sentimento de
              justiça, moderação, temperança, frugalidade e virtude" e
              respeito aos "princípios fundamentais" para garantir a
              liberdade e o governo livre (seção XV); e garantia de liberdade
              religiosa (seção XVI).(108) Já a "Declaração de
              Independência dos Estados Unidos da América", adotada na
              Convenção de Filadéfia de julho de 1776, proclamava e
              justificava o desligamento da Grã-Bretanha. Seu segundo
              parágrafo tornou-se célebre(109). Declarações similares foram
              emitidas por várias das colônias que se transformariam em
              Estados federados do novo país. A Constituição americana,
              aprovada na Convenção de Filadélfia de 17 de setembro de 1787,
              no princípio não incorporava uma declaração de direitos
              fundamentais do indivíduo. Contudo, nove das treze ex-colônias
              exigiram que isso fosse providenciado, como condição para
              ratificarem a Constituição e aderirem à federação. A
              reivindicação foi acatada e deu origem às dez primeiras Emendas
              à Constituição, aprovadas em 1791. Acrescidas de outras Emendas
              aprovadas nos séculos XIX e XX, elas configuram o chamado Bill of
              Rights norte-americano. As "Declarações" e a
              Constituição americanas tinham claro fundamento na filosofia
              jusnaturalista da época e na tradição constitucional inglesa.
              Além de limitarem o poder arbitrário dos governantes sobre a
              pessoa (o que já existia nos textos anteriores da ex-metrópole),
              ampliavam a autonomia dos indivíduos em relação ao Estado.
              Tratavam apenas de direitos civis e políticos, nenhuma
              cogitação de direitos sociais (isso não cabia no credo
              liberal). Mesmo os direitos civis e políticos enunciados, teriam
              - malgrado o "universalismo" que perpassava as
              "Declarações" - que percorrer uma longa jornada pela
              frente até começarem a ser estendidos a homens mais pobres, a
              escravos, a índios e a mulheres. Nos Estados do norte, a economia
              baseava-se menos no trabalho escravo - portanto, sua libertação
              incomodaria menos aos negócios - e as primeiras manifestações
              anti-escravagistas do novo país defrontaram-se com menor
              resistência. Em 1780, o Estado da Pensilvânia já planejou a
              abolição gradual da escravatura no seu território e, ao longo
              das décadas subsequentes, outros Estados renderam-se também a
              pressões nessa direção. "Onde ocorreu a emancipação,
              isso não significava, contudo, igualdade, pois até mesmo os mais
              ardorosos dos libertários brancos tinham dificuldade em se livrar
              dos preconceitos acumulados. Às vezes, atribuiu-se aos negros um
              status análogo ao dos índios, de não-escravos mas também não
              integralmente de cidadãos, pois seus direitos civis e políticos
              eram restritos e imprecisos. Em todo caso, a grande maioria dos
              escravos vivia nos Estados atlânticos do sul e, ali, eram por
              demais importantes para a economia agrícola, e por demais
              numerosos para que aquelas sociedades cogitassem seriamente da
              emancipação"(110). Tanto na Declaração de Virgínia, como
              na portentosa Declaração de Independência, afirmava-se que
              todos os homens são livres e iguais. Mas o próprio Thomas
              Jefferson, um dos fundadores da nação americana e redator da
              Declaração de Independência, continuou - após essa
              Declaração - a ser proprietário de quase duas centenas de
              escravos. Ainda se passariam mais noventa anos até que os
              escravos negros fossem legalmente emancipados em toda a extensão
              do país - e, ainda assim, à custa de uma guerra civil
              (1861-1865) que matou mais de 600.000 pessoas. Mesmo em relação
              aos cidadãos livres, a questão da igualdade social ficou como
              antes - sua promoção nada tinha a ver com o liberalismo - e a
              igualdade política deu passos imediatos em poucos Estados(111):
              "A não ser o confisco das propriedades dos legalistas, não
              houve durante aqueles anos qualquer empenho mais sério em
              redistribuir a propriedade ou a riqueza dentro das sociedades
              estaduais. Os patriotas ricos mantiveram sua riqueza e,
              freqüentemente, sua influência. Nenhuma das novas
              constituições estaduais concedeu o direito de voto a todos os
              homens, sem considerar qualquer outra qualificação, nem mesmo a
              todos os homens brancos e, na maioria delas, os grandes
              proprietários de terras mantiveram alguns privilégios. Assim
              sendo, os levantes revolucionários não nivelaram aquelas
              sociedades norte-americanas"(112). Mas a pressão popular
              pela ampliação do direito de voto surtiria efeitos antes do que
              na Europa, obtendo consideráveis progressos nos cinquenta anos
              posteriores à independência, o que colocaria os Estados Unidos,
              por volta de 1830 (no período jacksoniano), na posição de país
              em que o sufrágio mais havia se universalizado (sempre para o
              sexo masculino). Na época, isso foi tido como "...uma
              espantosa inovação, e os pensadores do liberalismo moderado que
              eram realistas o suficiente para saber que, mais cedo ou mais
              tarde, as ampliações do direito de voto seriam inevitáveis,
              examinaram-na de perto e com muita ansiedade, notadamente Alexis
              de Tocqueville, cuja obra 'Democracia na América', de 1835,
              chegou a melancólicas conclusões sobre ela"(113). Nos anos
              que antecederam a guerra de independência, à medida em que a
              temperatura política foi subindo, numerosos artesãos urbanos, e
              até os brancos mais pobres, foram sendo tomados pelo sentimento
              anti-britânico, o decorria tanto do temor, largamente difundido
              pela propaganda patriótica, de a metrópole reduzi-los todos à
              escravidão, como da percepção de que o aumento da autonomia
              econômica - inclusive com a liberdade de criação de manufaturas
              locais - ampliaria o reduzido mercado de trabalho, o que,
              obviamente, interessava de perto a quem não fosse membro da elite
              abastada. Outra importante base social para a luta de libertação
              nacional foi a grande classe de pequenos proprietários rurais:
              além de motivações econômicas, eles também "...haviam
              sido atingidos pelo grande despertar religioso de meados do
              século XVIII, o que os levava a voltarem-se contra as hierarquias
              eclesiásticas tradicionais. Esse protestantismo igualitário
              constituía ainda uma poderosa força à época da Guerra da
              Independência, alimentando desconfiança contra todo tipo de
              pompa, ostentação e hierarquia". A incorporação de
              classes populares ao movimento pela independência, embora de modo
              politicamente subalterno, favoreceu o florescimento de uma
              corrente democrática mais radical, que inclinou-se para o
              igualitarismo político. Seu porta-voz mais célebre talvez tenha
              sido Tom Paine, jornalista inglês de origem pobre e polemista
              notável, que fixou-se na Filadélfia em 1774 e logo passou a
              fazer apaixonada pregação republicana, não poupando a elite
              local: em 1775 já vituperava a incoerência de os ricos
              "...queixarem-se em tão alto e bom som das tentativas de
              escravizá-los, quando mantêm como escravos tantas centenas de
              milhares"(114). Em 1776, publicou o célebre livro-panfleto
              "Bom Senso", que causou forte impacto na opinião
              pública: no mesmo ano, vendeu mais de cem mil exemplares(115) - o
              que ainda é bastante para os dias de hoje, foi espantoso para a
              reduzida população alfabetizada das colônias. Mas esse
              radicalismo republicano de matriz popular (muito moderado, se
              comparado com o subsequente jacobinismo francês), embora
              cumprisse papel mobilizador enquanto duraram os combates, nunca
              conseguiu prevalecer - o que explica o rumo político do país
              após a guerra de independência. Enfim, as características do
              processo de surgimento dos Estados Unidos como nação
              independente chamaram a atenção dos historiadores para esta
              distinção importante: devido a condições internas
              completamente diferentes das que existiam na França de 1789, a
              Revolução Americana não revolucionou a sociedade americana
              colonial, isto é, não transformou a estrutura econômico-social
              já estabelecida internamente - nunca pretendeu isto - nem alterou
              o modo de viver, produzir e se relacionar a que estavam habituados
              os colonos. O que lá se derrubou não foi o feudalismo e o
              absolutismo - isto, a burguesia inglesa já havia feito - mas os
              laços coloniais externos. Por isso, "...o período da
              Independência Americana, dito período revolucionário, não
              questionava realmente o modo de vida dos habitantes das colônias,
              suas relações mútuas ou seus interesses imediatos. Fora da zona
              limitada das operações e das desordens passageiras suscitadas
              pelas manobras militares, prosseguia e prosseguiria a mesma
              existência, sem que se modificassem os equilíbrios fundamentais.
              A República federal americana continuou, sem grandes
              alterações, um movimento que adquirira no curso do tempo seus
              equilíbrios específicos. Pôs-se um presidente no lugar do
              monarca constitucional da Inglaterra; o Congresso de Washington
              substituiu o distante Parlamento de Londres. Alguns intelectuais
              entraram em polêmica, de modo cortês, quanto a essa
              transformação dos poderes, que influiu fracamente na vida
              cotidiana de uma população habituada ao funcionamento de
              órgãos representativos. Os insurretos americanos lançaram mão
              das armas para garantir uma liberdade que já possuíam. Qualquer
              que tenha sido a emoção dos momentos de crise, a violência dos
              sobressaltos populares e a coragem dos combatentes, a liberdade
              não se iniciou nos Estados Unidos em 1776-1777, em 1783 ou 1787;
              não foi arrancada das mãos do 'tirano' de Londres; não deu
              origem a uma nova ordem de coisas. Ela é contemporânea do
              estabelecimento das primeiras colônias. Os colonos se revoltaram
              porque tiveram o sentimento de que se queria despojá-los das
              prerrogativas de que sempre haviam usufruído. Vê-se aqui, sem
              dúvida, uma diferença fundamental entre os acontecimentos da
              América e os da França. O que estava em jogo na Revolução
              Francesa era uma total mutação da existência comunitária, uma
              transformação pela raiz da ordem social, das hierarquias
              tradicionais, das estruturas políticas e econômicas, uma
              redistribuição da propriedade, uma renovação dos valores
              psicológicos e morais, que também se afirmou na ordem da moral,
              da língua, do costume. Nada seria como antes, enquanto nos
              Estados Unidos tudo continuou como antes, com exceção de certas
              estruturas políticas. A despeito de alguns violentos safanões,
              as colônias da América não foram submersas por um cataclisma; o
              abalo permaneceu superficial, e a continuidade sobrepujou a
              ruptura. Antes, como depois, habeas corpus é a lei do país, e os
              cidadãos votavam para eleger seus representantes nas assembléias
              locais"(116). Essa diferença essencial entre o que aconteceu
              na França e na América do Norte transparece no diagnóstico do
              historiador liberal Alexis de Tocqueville que, no seu clássico
              "O Antigo Regime e a Revolução", escreveu o seguinte:
              "Como a Revolução Francesa não teve apenas por objeto
              mudar um governo antigo, mas abolir a forma antiga da sociedade,
              ela teve de ver-se a braços a um só tempo com todos os poderes
              estabelecidos, arruinar todas as influências reconhecidas, apagar
              as tradições, renovar os costumes e os usos e, de alguma
              maneira, esvaziar o espírito humano de todas as idéias sobre as
              quais se tinham fundado até então o respeito e a
              obediência"(117). Aliás, o fato de a Revolução Americana
              ter acontecido na década que precedeu a Revolução Francesa e,
              portanto, ter também produzido antes suas
              "Declarações" de direitos, suscitou, durante algum
              tempo, certa polêmica - hoje mera curiosidade acadêmica - quanto
              a ter sido a "referência inspiradora" dos
              revolucionários franceses. Os que se ocuparam dessa hipótese
              chamaram a atenção para a circunstância de Benjamin Franklin e
              Thomas Jefferson terem sido embaixadores dos Estados Unidos na
              França entre 1776 e 1789. "Na verdade, não foi assim, pois
              os revolucionários franceses já vinham preparando o advento do
              Estado Li-beral ao longo de todo o século XVIII. As fontes
              filosóficas e ideológicas das declarações de direitos
              americanas, como da francesa, são européias, como bem assinalou
              Mirkine-Guetzévitch, admitindo que os franceses de 1789 somente
              tomaram de empréstimo a técnica das declarações americanas,
              'mas estas não eram, por seu turno, senão reflexo do pensamento
              político europeu e internacional do século XVIII - dessa
              corrente da filosofia humanitária cujo objetivo era a Iiberação
              do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime
              feudal. E porque essa corrente era geral, comum a todas as
              Nações, aos pensadores de todos os países, a discussão sobre
              as origens intelectuais das Declarações de Direito americanas e
              francesas não tem, a bem da verdade, objeto. Não se trata de
              demonstrar que as primeiras Declarações 'provêm' de Locke ou de
              Rousseau. Elas provêm de Rousseau, e de Locke, e de Montesquieu,
              de todos os teóricos e de todos os filósofos. As Declarações
              são obra do pensamento político, moral e social de todo o
              século XVIII"(118). De maior relevância para a compreensão
              do processo histórico que se seguiu foi que, malgrado a
              Revolução Americana e suas "Declarações" detenham a
              precedência cronológica, elas surgiram e produziram efeitos
              práticos num país que, à época, não ocupava a primeira cena
              mundial. De outro lado, seja pela profundidade das
              transformações sociais e políticas que provocaram no país de
              origem, seja pelas dramáticas e imediatas conseqüências
              internacionais - diretamente, em toda a Europa; indiretamente,
              até na América ibérica - foram a Revolução Francesa de 1789 e
              sua "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão"
              que terminaram exercendo maior influência no mundo e galvanizando
              o imaginário de várias gerações de revolucionários. Pensadores da nova ordem Como o
              modo de produção capitalista triunfasse em toda parte - ele não
              se embaraçava com a crise européia dos Direitos Humanos da
              primeira metade do século XIX - os intelectuais do liberalismo,
              mesmo quando compungidos com o sofrimento dos pobres, produziam os
              argumentos necessários para "demonstrar" que a
              desigualdade social, não só inevitável, era também justa. Eis
              o que um desses humanitaristas, o senhor Patrick Colquhoun, havia
              escrito, já em 1806, em seu A Treatise on Indigence: "Sem
              uma grande proporção de pobres não poderia haver ricos, já que
              os ricos são produto do trabalho, ao passo que o trabalho pode
              resultar somente de um estado de pobreza... A pobreza, portanto,
              é um ingrediente indispensável e por demais necessário da
              sociedade, sem o qual as nações e comunidades não poderiam
              existir num estado de civilização"(119). Acima de tudo, a
              disciplina que estudava e justificava "racionalmente" o
              capitalismo - a economia política clássica - vivia seu momento
              de glória e respeitabilidade. Mas, ao contrário do futuro
              idílico profetizado em 1776 por Adam Smith na sua "A Riqueza
              das Nações: Investigação Sobre sua Natureza e suas
              Causas", dois autores liberais que exerceram grande
              influência na primeira metade do século XIX trouxeram ao debate
              noções "perturbadoras": Malthus e David Ricardo. O
              senhor Thomas Robert Malthus, a julgar pelas idéias rabugentas
              que defendia, devia ser um cavalheiro muito mal-humorado. Pastor
              anglicano nascido em família proprietária de terras, esse sisudo
              inglês havia, dentre outros escritos, publicado em 1798 seu
              famoso "Ensaio Sobre a População". Observando os
              estragos sociais que o capitalismo triunfante alastrava, chegou à
              famosa conclusão "explicativa" da causa da miséria:
              "a população, quando não controlada, cresce numa
              progressão geométrica, e os meios de subsistência crescem
              apenas numa progressão aritmética"(120), instalando-se na
              sociedade grave desproporção. Por consequência, a miséria dos
              trabalhadores existiria por culpa dos próprios trabalhadores,
              porque insistem em casar cedo e ter muitos filhos. Para resolver
              esse impasse, Malthus enxergava duas possibilidades: na sua
              própria linguagem, freios "positivos" e freios
              "preventivos" à explosão demográfica. Sempre que
              aquela desproporção se tornasse aguda, os freios
              "positivos" seriam as periódicas guerras, as ondas de
              fome e as inevitáveis epidemias que, ao dizimar principalmente a
              população trabalhadora, reequilibrariam por algum tempo a
              situação. Os freios "preventivos" consistiriam, pura e
              simplesmente, em os pobres retardarem seu casamento até poderem
              sustentar adequadamente uma família, devendo manter abstinência
              sexual enquanto fossem solteiros - ou por toda a vida, se a
              "fortuna" não chegasse um dia a favorecê-los... Todas
              as formas de assistência social seriam inúteis e até
              perniciosas, tanto porque estimulariam os miseráveis a "se
              acomodarem" e casarem sem condições de sustentar a prole,
              como porque, retendo os trabalhadores nas paróquias beneficentes,
              restringiriam a conveniente mobilidade da mão de obra(121). Na
              realidade, como logo se veria, Malthus partia de bases erradas,
              porque estabelecia uma comparação entre o crescimento da
              população dos Estados Unidos (muito rápido, na época) e o
              lento aumento da produção agrícola da Inglaterra. Além disso,
              "as estatísticas não confirmaram as idéias de Malthus,
              quer quanto à taxa de crescimento da população, quer quanto à
              produção de alimentos. Alguns progressos científicos
              importantes, como as descobertas de adubos químicos e de grãos
              híbridos, além de técnicas mais refinadas de cultivo e
              tratamento do solo, permitiram notável aumento da produtividade
              agrícola. É de se notar que algumas dessas descobertas ocorreram
              antes do lançamento da sexta e última edição do 'Ensaio', em
              1826, sem que Malthus se abalasse em modificar suas conclusões.
              No tocante à população, a utilização de métodos
              anticoncepcionais, que Malthus consideraria "vicio", já
              consagrados por volta de 1900, fez com que a população crescesse
              bem menos do que Malthus esperava"(122). As idéias de
              Malthus eram de um pessimismo atroz quanto ao futuro da humanidade
              e, nessa medida, chocaram a crença no progresso disseminada pelos
              filósofos e economistas do século XVIII. Mas introduziam no
              pensamento liberal um modo cínico e aparentemente
              "científico" de transformar as vítimas em culpadas,
              absolvendo o capitalismo da impiedosa desigualdade social. Apesar
              de sua falta de fundamentos e do sentimento de decepção que
              adicionou ao otimismo racionalista da época, essas idéias
              acabaram desempenhando papel nada desprezível, pois encaixavam-se
              como mão e luva nos preconceitos antioperários das classes
              dominantes (de liberais a aristocratas), desviavam a atenção da
              maior causa da pobreza (a desigualdade social) e, portanto,
              contribuíam para justificar a intolerância patronal e
              governamental frente às reivindicações dos trabalhadores(123).
              Diferentemente de Malthus, que marcou sua obra muito mais pelo
              empenho apologético do capitalismo, David Ricardo, adepto também
              do liberalismo econômico, dedicou-se ao estudo do funcionamento
              da economia com esforço investigativo reconhecidamente de maior
              consistência. O mais famoso desses estudos foi "Princípios
              de Economia Política e Tributação", publicado em 1817, que
              teve várias edições ainda durante a vida de seu autor e trazia,
              no mínimo, duas idéias igualmente "perturbadoras" para
              a autoconfiança dos liberais. Primeiro, sua teoria do
              "valor-trabalho". Aprofundando e retificando conceitos
              de Adam Smith, Ricardo demonstrou que o valor de troca de cada
              mercadoria em relação às demais mercadorias produzidas na
              sociedade, expresso monetariamente por seu preço, é determinado
              pela quantidade total de trabalho humano socialmente necessário
              à sua produção e nelas incorporado, e não por seu valor de uso
              (utilidade intrínseca) ou por sua eventual escassez. A utilidade
              não pode ser a medida do valor de troca porque os bens sem
              utilidade, por mais escassos que sejam, não chegam sequer a se
              tornar mercadorias, isto é, mesmo que produzidos, são recusados
              pelo mercado. Já a escassez de um bem só determinará seu valor
              nos casos muito específicos em que seja impossível produzí-los
              em grande quantidade - Ricardo exemplificava com estátuas e
              quadros famosos, moedas ou livros raros e vinhos especiais - mas
              estes bens ocupam fração mínima dos artigos demandados no
              mercado. Portanto, somente o trabalho "...é realmente o
              fundamento do valor de troca de todas as coisas, à exceção
              daquelas que não podem ser multiplicadas pela atividade
              humana"(124). Contudo, essa constatação permitia que dela
              se extraísse uma conclusão óbvia: "se, como argumentava a
              economia política, o trabalho representava a fonte de todo o
              valor, então por que a maior parte de seus produtores vivia à
              beira da privação? Porque, como demonstrava Ricardo - embora ele
              se sentisse constrangido em relação às conclusões de sua
              teoria - o capitalista se apropriava, em forma de lucro, do
              excedente que o trabalhador produzia além daquilo que ele recebia
              de volta sob a forma de salário. (...)De fato, o capitalista
              explorava o trabalhador. Era necessário eliminar os capitalistas
              para que fosse abolida a exploração. Um grupo de 'economistas do
              trabalho' ricardianos logo surgiu na Grã-Bretanha para fazer a
              análise e concluir a moral da historia"(125). Outra idéia
              alarmante contida nesse livro era de que o capitalismo teria a
              tendência natural de caminhar para a estagnação (estado
              estacionário). O aumento da demanda de alimentos causado pelo
              crescimento da população elevaria os preços dos produtos
              agrícolas, estimulando, num primeiro momento, a ocupação de
              terras de segunda qualidade quanto à fertilidade, apesar da
              produtividade menor ou dos custos de produção maiores. Como a
              concorrência entre os capitalistas imporia um preço de venda
              único para os produtos das duas terras, subiria a taxa de lucros
              dos capitalistas instalados nas glebas mais férteis e, na mesma
              proporção, aumentaria também a renda a ser paga aos
              proprietários das terras. A esse rendimento suplementar dos
              proprietários, Ricardo chamou de renda diferencial da terra.
              Aumentando a pressão populacional, o processo se repetiria: nova
              elevação dos preços agrícolas, ocupação de terras de
              terceira categoria, crescimento ainda maior da renda diferencial
              dos proprietários das glebas de primeira qualidade, surgimento de
              alguma renda diferencial nas terras de segunda, mas redução
              crescente dos lucros dos novos capitalistas que investissem nas
              terras piores. Chegaria um ponto em que o processo se esgotaria: a
              pressão demográfica continuaria aumentando os preços, os
              ociosos proprietários de terras boas se apropriariam de renda
              diferencial exorbitante, mas as terras remanescentes, de
              fertilidade muito baixa, não atrairiam mais investidores, pois
              nelas a perspectiva de lucro seria zero ou próxima a zero. A
              atividade agrícola se deteria num estado estacionário, afetando
              negativamente o dinamismo geral da economia. Esse diagnóstico, ao
              associar pela primeira vez a idéia de crise como imanente ao
              capitalismo, deitava por terra as idealizações anteriores de
              desenvolvimento harmônico e ininterrupto desse modo de
              produção. Isso semeou inquietação entre os liberais - ainda
              mais por emanar de um cérebro devotadamente liberal(126).
              Percebia-se que "a economia política clássica em sua forma
              ricardiana, podia virar-se contra o capitalismo, fato este que
              levou os economistas da classe média posteriores a 1830 a ver
              Ricardo com alarme, e até mesmo a considerá-lo, como o fez o
              americano Carreei (1793-1879), como fonte de inspiração de
              agitadores e destruidores da sociedade"(127). Adicionando-se
              a esse novo "clima" cultural, no campo filosófico
              começava a granjear prestígio o Positivismo, doutrina
              sistematizada por Auguste Comte, Herbert Spencer e outros, cuja
              característica mais geral e aparente parecia ser o propósito de
              substituir as especulações religiosas e metafísicas pela busca
              de compreensão científica dos fenômenos. Neste sentido, o
              Positivismo poderia, à primeira vista, ser tomado apenas como
              mais um desdobramento do racionalismo do século XVIII - como, de
              fato, o era. Contudo, portava pelo menos um elemento de novidade
              em relação ao racionalismo anterior: mediante o esforço de
              transposição sistemática da ótica e dos métodos das ciências
              da natureza para a análise social, pretendia imprimir uma
              neutralidade axiológica - completa abstenção de juízos de
              valor - ao estudo da sociedade, que cedo mostraria adequação
              para uso politicamente conservador. "Entendo por 'Física
              Social' a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos
              fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito que os
              fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos,
              isto é, como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja
              descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas. (...)
              Considerando sempre os fatos sociais, não como objetos de
              admiração ou de critica, mas como objetos de observação,
              ocupa-se ela unicamente em estabelecer suas relações mútuas e
              apreender a influência que cada um exerce sobre o conjunto do
              desenvolvimento humano. Em suas relações com a prática,
              afastando das diversas instituições qualquer idéia absoluta de
              bem ou de mal, encara-as como constantemente relativas ao estado
              determinado da sociedade, e com ele variáveis, ao mesmo tempo que
              as concebe como podendo se estabelecer espontaneamente pela única
              força dos antecedentes, independente de qualquer intervenção
              política direta. Reduzem-se, pois, suas pesquisas de aplicação,
              a colocar em evidência, segundo as leis naturais da
              civilização, combinadas com a observação imediata, as diversas
              tendências próprias de cada época"(128). É bem verdade
              que formulações no sentido de que a sociedade também se rege
              por leis naturais, suscetíveis de serem descobertas pela
              investigação "desapaixonada" e estudadas com os
              métodos das ciências da natureza, já haviam sido mais ou menos
              disseminadas pelo espírito geral do approach
              iluminista-jusnaturalista (em especial, pelo enciclopedista
              Condorcet, de quem Comte se dizia continuador), pelos fisiocratas,
              pelos economistas políticos, assim como pelo discípulo de
              Condorcet, o futuro socialista utópico Saint Simon (de quem Comte
              fora secretário na juventude). Contudo, nessa primeira gestação
              - de modo muito visível nos jusnaturalistas e em Saint Simon - a
              busca de uma ciência social neutra era motivada por (e portadora
              de) inequívoca inflexão utópico-crítica: "...instrumento
              de luta contra o obscurantismo clerical, as doutrinas teológicas,
              os argumentos de autoridade, os axiomas a priori da Igreja, os
              dogmas imutáveis da doutrina social e política feudal. (...) O
              combate da ciência social livre de 'paixões' é, portanto,
              inseparável da luta revolucionária dos Enciclopedistas e de toda
              a filosofia do Iluminismo contra os 'preconceitos', isto é,
              contra a ideologia tradicionalista (principalmente clerical) do
              Antigo Regime"(129). Ou seja, os iluministas reivindicavam
              neutralidade no estudo da sociedade precisamente porque, então,
              não havia qualquer neutralidade na representação de sociedade
              produzida pela nobreza e pelo clero - ao contrário, tratava-se de
              uma imagem deformada por "paixões" interessadas na
              conservação social (o poder tem origem divina, os privilégios
              são naturais, etc.). Neste sentido, a proposição iluminista de
              neutralidade na análise dos fenômenos da sociedade - mesmo sem
              colocarmos em discussão sua real possibilidade de existência -
              desempenhava função social evidentemente transformadora. Ocorre
              que o contexto histórico da maturidade de Comte era outro: já se
              estava consumando (ao menos na Europa ocidental) a transição do
              feudalismo para o capitalismo, e do absolutismo para o
              constitucionalismo (não democrático), seja por revoluções
              sociais "quentes", como a francesa, seja pela
              revolução industrial "à inglesa". Se, como propunha
              Comte, essa nova realidade fosse adotada apenas como "objeto
              de observação", sem "admiração ou crítica",
              produto espontâneo do "estado da sociedade", não
              restaria mais o que se fazer senão estudá-la com aquela
              "neutralidade", favorável a seu progresso natural, o
              que exigia a restauração da ordem. Pois, com efeito, a
              transformação exigida pela "força dos antecedentes"
              já estava completada: se o feudalismo fora destruído porque
              contrariava as "leis naturais invariáveis", impunha-se
              a conclusão de que o capitalismo seria a realização concreta
              dessas leis. Portanto, a rebeldia - antes recomendável - agora
              deve ser afastada, já não se justifica, malgrado certos males do
              capitalismo, que serão corrigidos com o triunfo da filosofia
              positivista. "Construamos diretamente o sistema de idéias
              gerais que esta filosofia, de agora em diante, está destinada a
              fazer prevalecer na espécie humana, e a crise revolucionária,
              que atormenta os povos civilizados, estará essencialmente
              terminada"(130). Comte proclama no positivismo "sua
              aptidão exclusiva para dissipar radicalmente as diversas utopias
              anárquicas que, cada vez mais, ameaçam toda existência
              doméstica e social"(131), e denuncia que "os hábitos
              insurreicionais da razão moderna não lhe autorizam supor um
              caráter indefinidamente revolucionário, uma vez que suas
              legítimas reclamações se encontrem largamente satisfeitas.
              Além do mais, conforme as necessidades, meios não faltariam ao
              novo regime para reprimir de modo suficiente as pretensões
              subversivas..."(132). O modelo de sociedade imaginado
              refletia os traços do capitalismo oligárquico: "Vimos,
              pois, abertamente, libertar o Ocidente de uma democracia
              anárquica e de uma aristocracia retrógrada..."(133). Comte
              não esconde suas preferências e antipatias: "Desde, porém,
              que a reconstrução está na ordem do dia, a atenção pública
              volta-se cada vez mais para a grande e imortal escola de Diderot e
              Hume (...) Pelo contrário, nunca esperei senão óbices
              espontâneos ou propositais, por parte dos atrasados destroços
              das seitas superficiais e imorais oriundas de Voltaire e de
              Rousseau"(134). Quando à bondade, Comte avalia que "ela
              indica mais o ódio contra os ricos do que o amor pelos
              pobres...", mas o instinto social da veneração preserva a
              esperança, pois "contitui hoje o sinal decisivo que
              caracteriza os revolucionários suscetíveis de uma verdadeira
              regeneração, por mais atrasada que ainda tenham a inteligência,
              sobretudo entre os comunistas iletrados" - exceto no caso da
              maioria de seus chefes, pois esses "homens verdadeiramente
              indisciplináveis, exercem uma vasta influência, que predispõe
              à fermentação subversiva todos os cérebros desprovidos de
              convicções inabaláveis"(135). Os destinatários principais
              da pregação positivista deveriam ser as mulheres e o
              proletariado, com um propósito claro: "A revolução
              feminina deve agora completar a revolução proletária, como esta
              consolidou a revolução burguesa, dimanada a princípio da
              revolução filosófica. (...) O homem deve sustentar a mulher.
              (...) Sob a santa reação feminina, a revolução proletária
              purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que
              até aqui a têm neutralizado"(136). Comte recomendou em
              várias passagens de sua vasta obra a necessidade de a propriedade
              exercer uma função social, assim como deixou clara sua posição
              quanto à igualdade: "A despeito de algumas vãs noções que
              se formam hoje sobre a igualdade social, qualquer sociedade, até
              a mais restrita, supõe, por evidente necessidade, não somente
              diversidades, mas também certas desigualdades; porque não
              poderia haver sociedade sem o concurso permanente para uma
              operação geral, perseguida por meios distintos, convenientemente
              subordinados uns aos outros"(137). Por fim, advertindo contra
              o aguçamento dos conflitos entre proletários e industriais, que
              Comte atribuía ao "cego egoísmo dos empresários", ele
              indicava o curioso papel pacificador do Positivismo "não
              somente nas classes inferiores, onde a educação positiva deve
              ser especialmente acolhida, mas também nas classes dirigentes,
              que se sentirão talvez bastante felizes de que a racionalidade
              positiva lhes queira bem prestar, contra as utopias subversivas de
              qualquer sociabilidade, um socorro indispensável. (...) Numa
              palavra, a positividade será, talvez logo, invocada em socorro da
              ordem, a qual só ela pode hoje proteger suficientemente, pelo
              menos tanto quanto a favor do progresso..."(138). Portanto,
              um método possivelmente útil na investigação de fenômenos da
              natureza, ao ser transposto para a análise social não demorou
              para manifestar, em nome da "neutralidade" científica,
              função política conservadora. O método positivista também
              seria depois empregado para a concepção e estudo do Direito,
              descartando os suportes anteriores num direito natural, tantos os
              derivados da natureza externa ao homem, quanto da natureza humana
              ou da razão. A mesma demanda de neutralidade axiológica
              conduziria os juristas positivistas a circunscreverem esse estudo
              à investigação metódica do direito positivo (objetivamente
              existente em cada sociedade), suas normas e a forma prescrita pelo
              próprio ordenamento jurídico para sua produção - sempre sem
              manifestação de juízos de valor. A norma jurídica, portanto,
              também se converte em "objeto de observação" ao qual
              o jurista deve se debruçar sem "admiração ou
              crítica". A tarefa do jurista "científico"
              consistiria em explicar - pelas regras da própria lógica
              jurídica - e aplicar o Direito existente, sem indagações
              "extra-jurídicas" quanto à sua legitimidade social.
              Iniciava-se, a partir daí, um duradouro divórcio entre Direito e
              Moral. Certamente o Positivismo dedicou-se a uma diversidade de
              temas e questões muito mais amplas do que as até agora indicadas
              e desdobrou-se em "escolas" e correntes ao longo das
              décadas, sofisticando-se e diversificando-se - aprofundar sua
              compreensão não caberia neste trabalho. É, porém, necessário
              registrar que, assim como no século XVIII a burguesia em
              ascensão havia se servido do Jusnaturalismo como arma de combate
              contra o feudalismo e o absolutismo, no século XIX essa classe,
              tornada dominante, mudou-se de armas e bagagens para o
              Positivismo. A bandeira muda de mãos Enquanto
              esses pensadores se ocupavam desses e de outros assuntos, um fato
              novo começava a acontecer: a bandeira dos Direitos Humanos, aos
              poucos, na prática, mudava de mãos - e isso a faria também
              mudar de caráter. Os liberais haviam se tornado cada vez mais
              conservadores nesse campo: detiveram a caminhada dos Direitos
              Humanos no patamar da primeira fase da Revolução Francesa
              porque, de fato, isso lhes bastava. A liberdade conquistada estava
              quase na medida das suas conveniências, isto é: liberdade
              econômica para os empresários e liberdade de assalariamento para
              os trabalhadores. Faltava ainda restabelecer na maior parte da
              Europa a liberdade de expressão, particularmente a de imprensa.
              Mas isso, por mais que incomodasse, não representava empecilho
              grave para o desenvolvimento dos negócios. Os que mais se
              ressentiam da falta dessa liberdade - os trabalhadores, para
              proclamar suas reivindicações - não dispunham dos meios para
              praticá-la, além de estarem ocupados demais com necessidades
              muito prementes, tais como...sobreviver. Quando à igualdade, esta
              sim, estava no ponto certo: igualdade perante a lei. O fim dos
              privilégios legais de nascimento era o suficiente para os que se
              defendiam muito bem com os novos privilégios de fortuna. O voto
              censitário, mais que uma necessidade de sobrevivência política,
              era sintoma do atraso elitista da burguesia oligárquica: afinal
              de contas, retendo para si o poder econômico e mantendo a
              hegemonia ideológica na sociedade, ela dificilmente teria motivos
              para temer os trabalhadores mesmo quando, sob pressão, viesse a
              estender-lhes o direito de voto - como a história viria a
              demonstrar. Se, eventualmente, o sufrágio universal ameaçasse
              causar-lhe inconvenientes de maior monta, sempre restaria a
              possibilidade de abolir por algum tempo qualquer sufrágio - como
              a história também viria a demonstrar. O que não poderia ser
              assimilado mesmo era ampliar a igualdade ao plano
              econômico-social, isto é, transformar a igualdade formal em
              igualdade real, pois isto seguramente mexeria com os lucros - quem
              sabe até onde mais poderia ir? "Havia mais do que um mero
              preconceito político na insistência sobre a livre propriedade
              que caracterizava os governos liberais moderados de 1830; o homem
              que não tivesse demonstrado a habilidade de chegar a
              proprietário não era um homem completo e, portanto, dificilmente
              poderia ser um cidadão completo (...)O período que culminou por
              volta da metade do século foi, portanto, uma época de
              insensibilidade sem igual, não só porque a pobreza que rodeava
              respeitabilidade da classe média era tão chocante que o homem
              rico preferia não vê-la, deixando que seus horrores provocassem
              impacto apenas sobre os visitantes estrangeiros (como é o caso
              hoje em dia das favelas da Índia), mas também porque os pobres,
              como os bárbaros do exterior, eram tratados como se não fossem
              seres humanos. Se seu destino era o de se tornarem trabalhadores
              industriais, eles eram simplesmente massa que deveria ser modelada
              pela disciplina através da pura coerção, sendo a draconiana
              disciplina fabril suplementada com a ajuda do Estado. (É bastante
              característico que a opinião da classe média contemporânea
              não perceba qualquer incompatibilidade entre o princípio de
              igualdade perante a lei e os códigos trabalhistas deliberadamente
              discriminatórios que, como no caso do Código Britânico de
              Patrões e Empregados, de 1823, puniam os trabalhadores com a
              prisão por quebra de contrato e os empregadores com modesta
              multa, se tanto.) Eles deveriam estar constantemente à beira da
              indigência porque, caso contrário, não trabalhariam, sendo
              inacessíveis às motivações 'humanas'. 'É no próprio
              interesse do trabalhador', disseram os empregadores a VilIermé no
              final da década de 1830, 'que ele deve estar sempre fustigado
              pela necessidade, pois assim ele não dará a seus filhos um mau
              exemplo, e sua pobreza será uma garantia de sua boa conduta'.
              (...) Era pequeno o passo a ser dado desta atitude para o
              reconhecimento formal da desigualdade que, como afirmou Henri
              Baudrillart em sua conferência inaugural no Collêge de France
              em, 1835, era um dos três pilares da sociedade humana, sendo que
              os outros dois eram a propriedade e a herança. A sociedade
              hierárquica era, assim, reconstruída sobre os princípios da
              igualdade formal"(139). De certa forma, essa situação nova
              criou condições para que começasse a ser levantada a ponta do
              véu: o discurso dos Direitos Humanos, de plataforma generosa e
              universal, como a burguesia o apresentara quando necessitara
              mobilizar o entusiasmo e a energia do povo, muito rapidamente se
              convertera em ideologia legitimadora de uma nova dominação
              social. Na medida em que passara de revolucionária a
              conservadora, a burguesia impusera, desde o triunfo em 1789, sua
              versão de classe dos Direitos Humanos. Essa versão embutia a
              contradição óbvia entre liberdade (burguesa) e igualdade,
              conferindo aos Direitos Humanos a função social de preservação
              do novo domínio. Não tardaria para que isso fosse percebido e
              formulado no plano conceitual. Mas, primeiramente, essa
              inquietação se manifestou no terreno da prática social: de modo
              confuso, movidos mais pelo desespero do que por uma consciência
              socialmente organizada, o proletariado emergente da Revolução
              Industrial e as camadas sociais que lhe eram próximas começaram
              a engendrar caminhos próprios de auto-defesa. Aprendizado
              difícil, pois o que lhes sobrava em desencanto e frustração com
              a nova ordem faltava-lhes em compreensão teórica e experiência
              política - pois, até então, só haviam feito seguir as
              consignas que lhes apontavam os ex-revolucionários de anteontem.
              Uma das formas mais rudimentares de resistência trabalhista
              durante esse período de transição foram as recorrentes ondas de
              destruição de máquinas, principalmente nas florescentes
              indústrias têxteis, promovidas no início do século por
              multidões de desempregados, que lhes atribuíam, de modo um tanto
              instintivo, a responsabilidade por sua situação de miséria.
              Esses movimentos "luditas"(140) expressavam a revolta
              contra a mecanização e o desejo a um impossível retorno ao
              antigo trabalho artesanal. Foram severamente punidos com prisão,
              deportações e, desde uma lei inglesa de 1812, também com pena
              de morte. Aos poucos, começaram também a surgir por toda a
              Europa os primeiros fundos operários de ajuda mútua, as
              sociedades cooperativas e, apesar da feroz repressão,
              desenvolveram-se também os primeiros sindicatos. As greves, quase
              sempre seguidas de muita violência policial, tornaram-se uma
              forma de luta largamente empregada pelos trabalhadores. Na
              Inglaterra, onde a Revolução Industrial, com seus efeitos
              sociais drásticos, chegara mais longe, o movimento trabalhista
              também organizou-se mais rapidamente. Já em 1824, conseguiu
              forçar o Parlamento a revogar certas leis contra a liberdade de
              associação. Nas décadas de 1830-40, o trabalhismo britânico
              alcançou grande expressão social com o cartismo, movimento que
              fez vigorosas denúncias da situação em que se encontrava a
              classe trabalhadora e, dentre outras reivindicações, lutou pela
              jornada de trabalho de dez horas, pela liberdade sindical e pelo
              direito de representação parlamentar dos operários. O nome
              desse movimento derivava da Carta do Povo, documento de
              reivindicações apresentado em 1.838 ao Parlamento após anos de
              mobilização operária. O Programa de Seis Pontos(141) dessa
              Carta demonstrava que a bandeira dos Direitos Humanos passara
              efetivamente para as mãos dos trabalhadores. Os cartistas, como o
              movimento popular do restante da Europa, ainda precisavam lutar
              por direitos políticos para os trabalhadores (mas até eles se
              esqueciam desses direitos para as trabalhadoras) e já começavam
              a lutar por direitos econômicos e sociais. Além desses
              movimentos reivindicatórios, uma nova palavra, criada na década
              de 1820, começava a ser ouvida: socialismo. Uma noção mais ou
              menos genérica de um modo comunista - isto é, igualitário - de
              organização social já existia há muito tempo. Eram comuns as
              referências a uma perdida e paradisíaca "idade de
              ouro", anterior ao surgimento da divisão das sociedades em
              classes sociais. Platão, na sua obra "A República" já
              defendia que uma reorganização da sociedade em bases racionais
              deveria implicar na abolição da propriedade privada - embora só
              entre os responsáveis pelas decisões da comunidade(142). Na
              antiga Esparta, o legendário rei Licurgo havia conseguido criar
              um bem sucedido estado "militar-comunista de elite":
              arrecadou todas as terras, redistribuiu-as entre os cidadãos e
              introduziu outras reformas no sentido de estabelecer um modo de
              vida austero e disciplinado. Foi, assim, eliminada a grande
              desigualdade de bens que antes existia entre os cidadãos,
              sobreveio prosperidade, e Esparta alcançou hegemonia em toda a
              antiga Grécia após a vitória na guerra do Peloponeso, que
              travou contra Atenas. Mas esse curioso proto-comunismo foi uma
              experiência de curta duração - e tinha pés de barro: a
              igualdade limitava-se aos cidadãos espartanos, isto é, à classe
              dominante, enquanto a grande massa da população continuou
              escrava (os "ilotas", periodicamente rebelados e
              periodicamente submetidos a matanças coletivas que lhes
              inflingiam os espartanos) ou subalterna (os "periecos",
              trabalhadores sem cidadania, obrigados a pesados tributos). As
              primeiras comunidades cristãs da Ásia Menor, antes de o
              cristianismo tornar-se religião oficial do Império Romano,
              também praticavam uma vida igualitária - afinal de contas, o
              próprio filho de Deus não dera o exemplo de uma vida em completo
              "comunismo" com seus apóstolos e discípulos, sem
              qualquer privilégio ou distinção especial? Esse ideal de
              igualdade social do cristianismo primitivo reapareceu em vários
              momentos durante a Idade Média, no mais das vezes ligado a lutas
              camponesas. Durante a primeira revolução burguesa da Inglaterra,
              em 1.648, também aflorou uma corrente de plebeus radicais - os
              levellers (niveladores) - que tendia para propostas sociais
              igualitárias. Desde o século XVI, diversos pensadores vinham
              escrevendo idealizações utópicas, às vezes muito minuciosas,
              de imaginárias sociedades que viveriam felizes sem propriedade
              privada, o que expressava indiretamente o desejo de reforma social
              na própria Europa. A mais célebre dessas ficções com mensagem
              reformadora foi certamente o livro de Thomas Morus, "A
              Utopia", publicado em 1516. Reunindo elementos do epicurismo
              e do estoicismo gregos com a moral cristã e o humanismo
              renascentista, seu autor imaginou uma ilha "comunista"
              muito organizada e pacífica (mas, estranhamente, onde ainda
              existiriam escravos). Logo se seguiram idealizações semelhantes:
              dentre outras, "A Cidade do Sol ", de Tomaso Campanella,
              "A Nova Atlântida", de Francis Bacon,
              "Oceana", de Harrington e "Voyage dans l'île des
              Plaisirs", de Fénélon. A revelação de que povos antigos
              da América não estavam divididos em classes sociais,
              desconheciam a propriedade privada da terra e, no entanto,
              desfrutavam de convivência mais equilibrada e feliz que os
              europeus, também contribuiu para inflamar algumas imaginações.
              Críticas, às vezes muito corrosivas, aos males morais e sociais
              produzidos pela desigualdade decorrente da propriedade privada
              tiveram papel importante no pensamento de alguns filósofos do
              Iluminismo. Em 1755, na França, Morelly publicou o "Code de
              la Nature", onde pregava a propriedade coletiva do solo como
              condição para resolver os males sociais. As idéias expostas
              nesse livro, aliás, exerceram grande influência sobre Babeuf. Na
              mesma época, o abade francês Gabriel Bonnot de Mably criticava
              severamente a propriedade privada como fonte da desigualdade. Para
              não nos alongarmos em demasia, basta um último exemplo. Eis como
              Jean-Jacques Rousseau se referia à ambição de riquezas e à
              propriedade privada: "...a ambição devoradora, o ardor de
              elevar sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do
              que para colocar-se acima dos outros, inspira a todos os homens
              uma negra tendência a prejudicarem-se mutuamente, uma inveja
              secreta tanto mais perigosa quanto, para dar seu golpe com maior
              segurança, freqüentemente usa a máscara da bondade; em uma
              palavra, há, de um lado, concorrência e rivalidade, de outro,
              oposição de interesses e, de ambos, o desejo oculto de alcançar
              lucros a expensas de outrem. Todos esses males constituem o
              primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da
              desigualdade nascente" (143). Evidentemente, nenhuma dessas
              idéias foi aproveitada pelos revolucionários triunfantes de
              1789. A burguesia recolheu do Jusnaturalismo a indignação
              racional e moral contra o feudalismo e o absolutismo e desviou-se,
              habilidosamente, de outras consequências igualmente lógicas
              (isto é, compatíveis com a Razão) que poderiam ser desdobradas
              a partir daquela filosofia - porque não lhe convinha fazê-lo.
              Porém, assim como no terreno prático da luta social os Direitos
              Humanos haviam passado para outras mãos, o mesmo aconteceria no
              plano das idéias. Aquelas fantasias de um "comunismo"
              cerebrino e mais ou menos ascético dos séculos XVI a XVIII
              tiveram continuadores após a Revolução Francesa, que as
              adaptaram para os tempos da indústria moderna, agora com o
              propósito declarado de reforma social. Durante a primeira metade
              do século XIX, diversos projetos aparentados àquele comunismo
              ideal, misturados com cooperativismo operário e radicalização
              da democracia, foram produzidos sob a designação genérica de
              socialismo (que, depois, seria qualificado de utópico ou
              romântico). Foram três os grandes socialistas utópicos desse
              período: Saint-Simon e Fourier na França, e Owen na Inglaterra.
              Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825), havia
              lutado na guerra de independência dos Estados Unidos e, de volta
              à França, apoiou a Revolução e renunciou a seu título de
              nobreza, o que não o impediu de sofrer uma prisão durante o
              período do Terror. Logo percebeu que a Revolução não
              significou o triunfo de todo o Terceiro Estado, mas apenas de uma
              fração - e que, entre os vitoriosos, fortalecera-se um segmento
              que não era produtivo: a parcela da burguesia que vivia de
              especulação, rendas e aluguéis. Portanto, a antiga
              contradição entre pessoas ociosas (nobreza e clero) e pessoas
              ativas (produtivas) foi "atualizada" por Saint-Simon: o
              novo corte social oporia, de um lado, todos os "ociosos"
              (antigos e novos) e, de outro lado, os "industrialistas"
              - nesta categoria incluídos não só os operários, como também
              os empresários industriais, comerciantes e banqueiros, que
              deveriam unir-se para a reorganização racional da sociedade.
              Como os ociosos haviam perdido a capacidade de governar no
              interesse comum, e os operários ainda não a haviam adquirido, a
              direção da sociedade deveria ser entregue à ciência (sábios
              acadêmicos), aos industriais e aos banqueiros, que se
              transformariam numa espécie de tecnocratas do bem público. Nesse
              sistema, que chamou de "industrialismo", seria promovida
              a emancipação feminina, o trabalho seria obrigatório para todos
              e, embora continuasse a existir o direito de propriedade, seria
              abolido o direito de herança(144). "Esse modo de conceber
              correspondia perfeitamente a uma época em que a grande
              indústria, e com ela o antagonismo entre a burguesia e o
              proletariado, mal começava a despontar na França. Mas
              Saint-Simon insiste muito especialmente neste ponto: o que o
              preocupa, sempre e em primeiro lugar, é a sorte da 'classe mais
              numerosa e mais pobre' da sociedade. (...) Em 1816, Saint-Simon
              declara que a política é a ciência da produção e prediz já a
              total absorção da política pela economia. E se aqui não faz
              senão aparecer em germe a idéia de que a situação econômica
              é a base das instituições políticas, proclama já claramente a
              transformação do governo político sobre os homens numa
              administração das coisas e dos processos da produção, que não
              é senão a idéia da 'abolição do Estado'"(145). Quanto a
              François-Marie Charles Fourier (1772-1837), era um comerciante
              malsucedido que se tornou escritor talentoso e, impressionado
              pelas idéias de Rousseau, interessou-se pelos problemas sociais
              de seu tempo. Já começou colocando o dedo diretamente na ferida:
              comparou as fascinantes possibilidades de harmonia social
              aventadas pelos filósofos do século anterior com a realidade de
              miséria material e moral efetivamente criada pelo capitalismo
              triunfante. A partir daí, "desmascara as brilhantes frases
              dos ideólogos burgueses da época, demonstra como a essas frases
              grandiloqüentes corresponde, por toda a parte, a mais cruel das
              realidades e derrama a sua sátira mordaz sobre esse ruidoso
              fracasso da fraseologia. (...) Mas é ainda mais magistral nele a
              crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na
              sociedade burguesa. É ele o primeiro a proclamar que o grau de
              emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural
              pelo qual se mede a emancipação geral"(146). Além disso,
              concebendo o desenvolvimento da sociedade de modo dialético, em
              fases alternadas, entreviu não só a historicidade do capitalismo
              - à diferença da ilusão que o entendia como modelo definitivo
              de organização social - como também a possibilidade de futuro
              desaparecimento da própria humanidade. Na tentativa de levar à
              prática suas teorias, imaginou a criação de "falanstérios":
              prédios que abrigariam comunidades cooperativas livres,
              minuciosamente planejados - espécies de ilhas de comunismo que,
              pela força do exemplo e da superioridade moral, se imporiam
              gradativamente ao circundante "mar" capitalista,
              tornando-se bases de uma reorganização social. Já Robert Owen
              (1771-1858) era um industrial inglês muito prático. Movido
              inicialmente por espírito de filantropia, planejou e desenvolveu
              durante quase trinta anos um projeto de enorme êxito: na sua
              grande fábrica de fios de algodão instalada na comunidade
              miserável de New Lanark, na Escócia (que chegou a ter 2.500
              operários), reduziu a jornada de trabalho dos operários para dez
              horas e meia (a jornada comum na época era de 13, 14, até 18
              horas...), recusou-se a empregar menores de dez anos, criou
              jardins de infância e escolas para os filhos dos trabalhadores,
              serviços de saúde para a comunidade, e implantou armazéns para
              a venda de gêneros alimentícios e outros bens a preço de custo,
              nos quais o dinheiro foi substituído por bônus representativos
              de horas trabalhadas. Os resultados foram surpreendentes: a
              fábrica converteu-se numa colônia exemplar auto-gerida, de onde
              desapareceram o alcoolismo e as brigas, sem necessidade de
              policiamento, de asilo para os pobres ou de instituições de
              caridade e - inesperadamente, para a mentalidade da época - os
              lucros cresceram como nunca visto! "Quando uma crise
              algodoeira obrigou o encerramento da fábrica por quatro meses, os
              operários de New Lanark que ficaram sem trabalho continuaram
              recebendo as suas diárias integrais. E, contudo, a empresa
              incrementara para o dobro o seu valor e rendeu aos seus
              proprietários, até ao último dia, enormes lucros"(147).
              Estupefato, Owen analisou a tecnologia da fábrica, estabeleceu
              comparações, fez e refez os cálculos, chegando a este
              resultado: "...a parte produtora daquela população de 2.500
              almas dava à sociedade uma soma de riqueza real que, apenas meio
              século antes, teria exigido o trabalho de 600.000 homens juntos.
              Perguntava-me: onde vai parar a diferença entre a riqueza
              consumida por essas 2.500 pessoas e a que precisaria ser consumida
              pelas 600.000?"(148). Com honestidade intelectual, concluiu:
              essa diferença era apropriada individualmente pelos capitalistas.
              Daí, para chegar a propor que os modernos meios de produção
              poderiam servir ao bem estar social se fossem tornados propriedade
              coletiva de toda a sociedade foi um passo - e esse passo foi sua
              ruína. Enquanto se comportara como rico de "alma
              nobre", que sente dó dos pobres e lhes faz concessões por
              espírito de caridade, Owen fora adulado como celebridade nos
              salões da Europa. Quando deu o passo fatal, tornou-se execrado
              como homem de idéias perigosas, perdeu todo apoio e a imprensa
              ergueu-lhe um muro de silêncio. Então, Owen revelou-se pessoa de
              extraordinária integridade: não só manteve suas novas
              convicções, como estendeu suas críticas à função social
              conformista desempenhada pela religião e pela forma atual de
              casamento. Em completo isolamento dentro de sua classe, gastou sua
              fortuna tentando criar colônias cooperativas, auto-geridas e
              igualitárias no México e nos Estados Unidos, na esperança, como
              Fourier, de que a simples força moral do exemplo pudesse
              fazê-las triunfar. Suas "ilhas de comunismo" também
              terminaram por naufragar em poucos anos. Voltou à Inglaterra
              arruinado, mas já havia feito a opção, para sempre, pelo lado
              dos trabalhadores: durante outros trinta anos, continuou a
              dedicar-se às suas causas e às suas lutas. "Assim, em 1819,
              depois de cinco anos de grandes esforços, conseguiu que fosse
              votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e da criança
              nas fábricas. Foi ele quem presidiu ao primeiro congresso em que
              as trade-unions de toda a Inglaterra se fundiram numa grande
              organização sindical única"(149). Como se pode ver, os
              socialistas utópicos combinavam sensibilidade social, algumas
              percepções teóricas relevantes e projetos impraticáveis.
              Reformadores românticos, nunca chegaram a conceber uma solução
              propriamente política de transformação geral da sociedade pois
              acreditavam sinceramente que a grandeza moral de suas propostas,
              os chamamentos à Razão e alguns exemplos práticos bem
              conduzidos seriam suficientes para que idéias justas e generosas
              conquistassem todas as mentes para a reorganização racional da
              sociedade. Essa convicção - magnânima e ingênua - não lhes
              deixou perceber dois aspectos cruciais. Primeiro: suas
              experiências isoladas, projetadas como "exemplos" para
              uma nova sociedade, não conseguiriam sequer produzir o efeito de
              demonstração prática por muito tempo, porque não é possível
              ilhas de "comunismo" perdurarem cercadas de capitalismo
              por todos os lados. Segundo: mesmo que, por hipótese, essas
              colônias dessem certo, isso não bastaria para
              "convencer" capitalistas a abrirem mão de... lucros.
              Salvo exceções individuais, a razão burguesa guia-se, não por
              princípios morais ou racionais, mas por outro critério: seu algo
              mais concreto interesse de classe. Isto já parecia estar
              demonstrado desde, pelo menos, 1789. Seja como for, mesmo
              fracassando nos propósitos de reformar o mundo, o socialismo
              utópico cumpriu função inestimável: ao inaugurar a crítica
              moral ao capitalismo, propiciou os primeiros argumentos teóricos
              às lutas concretas que os trabalhadores, até então isolados,
              encetavam por seus Direitos Humanos. O "perigo" operário A
              temporada de revoluções no mundo ocidental, inaugurada e
              inspirada pela Revolução Francesa, mas assumindo feições
              próprias em cada país, tomaria novo fôlego na década de 1820:
              Espanha, Nápoles, Grécia, Bélgica, Polônia, Portugal, Irlanda
              e, novamente, a França em 1830. Neste ano, uma revolução
              popular derrubou o último rei da dinastia Bourbon, Carlos X, e
              colocou no trono da França Luís Felipe I, da dinastia Orleans, o
              "rei burguês". Por assim dizer, 1830
              "completa" e "repete" 1789. Completa porque,
              mais que uma simples troca de reis, essa e outras revoluções da
              década de 1830 recolocaram na ordem do dia por toda a Europa a
              vitória da burguesia sobre a aristocracia, após o recuo do
              período da Restauração. E repete 1789 porque, como antes, foram
              revoluções feitas pelo povo(150), mas novamente sob direção
              burguesa. O regime político em consolidação (caso da
              Inglaterra) ou que emerge (França, Bélgica etc.) afasta
              novamente as esperanças de implantação do sufrágio universal e
              assegura "... instituições liberais salvaguardadas contra a
              democracia por qualificações educacionais ou de propriedade para
              os eleitores - havia inicialmente só l68 mil eleitores na França
              - sob uma monarquia constitucional; de fato, algo muito semelhante
              à primeira fase burguesa mais moderada da Revolução Francesa, a
              da Constituição de 1791 (só que, na prática, com um direito de
              voto muito mais restrito)"(151). O impulso revolucionário
              produziria nova e mais formidável vaga em 1848: a "Primavera
              dos povos", como ficou conhecida, devido a seu
              internacionalismo e forte presença popular. Uma crise econômica
              fizera recrudescer o desemprego desde o início da década e as
              classes populares voltaram a se agitar. No primeiro semestre desse
              ano, a maioria das regiões da Europa central e ocidental - dentre
              outras, a França, Alemanha, Itália, Áustria, Hungria, Polônia
              e Bálcãs - foram tomadas por insurreições de conteúdo
              nacionalista, anti-monárquico, democrático ou operário (às
              vezes tudo isso junto). Todas foram vitoriosas a princípio e,
              logo a seguir, todas foram esmagadas com muito sangue(152). A
              grande novidade da "Primavera dos Povos", destacadamente
              na França, foi a emergência dos operários reivindicando uma
              "república democrática e social" - muito além do que
              estavam dispostos a ir os liberais das revoluções anteriores. O
              medo da revolução social uniu daí por diante os liberais às
              forças mais retrógradas da Europa num vasto "partido da
              ordem"(153) e essas revoltas populares foram isoladas e
              reprimidas com truculência exemplar. Na França, a nova
              revolução abriu caminho para a proclamação da segunda
              República, em 24 de fevereiro de 1848 (a primeira fora em 1792) e
              formou-se um governo provisório. Mas quando, em junho desse ano,
              os operários parisienses tentaram aprofundar as transformações,
              o "partido da ordem" sufocou a rebelião, deixando claro
              de modo fulminante que os "limites" não seriam mais
              ultrapassados. "É característico da ferocidade do ódio que
              os ricos nutrem pelos pobres o fato de que uns três mil
              (trabalhadores) foram trucidados depois da derrota, enquanto
              outros 12 mil foram aprisionados, a maioria para serem deportados
              para campos de trabalho na Argélia"(154). Após a derrota
              operária, realizaram-se as primeiras eleições presidenciais com
              sufrágio universal (masculino), em novembro de 1848, sendo eleito
              presidente Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. A República
              teria vida curta: em 2 de dezembro de 1851, com apoio da
              burguesia, do exército e de contingentes manipulados de
              desempregados, o presidente deu um golpe de Estado, suspendeu as
              liberdades políticas, reinstaurou a monarquia hereditária e
              proclamou-se a si mesmo "imperador Napoleão III"(155).
              Retrocessos semelhantes aconteceram em todos os países por onde
              havia sido derrotada a efêmera "Primavera dos Povos". A
              democracia estava longe de ser uma prioridade para as classes
              dominantes. Na verdade, outra coisa já as preocupava, guiando
              daí por diante todos os seus movimentos: o temor da classe
              operária, classe que se tornava cada dia mais numerosa com a
              industrialização e que começava a agitar um programa de
              transformações sociais muito mais profundo do que havia sonhado
              em 1789. A questão que essa classe começava a se colocar era
              esta: há pelo menos cinquenta anos, a burguesia vinha ensinando
              continuamente que era legítimo fazer revoluções contra a
              opressão. Ora, por quê então não levar à prática essa
              lição até o fim, isto é, até o fim de todas as formas de
              opressão social, em vez de parar a meio caminho? Nos anos
              anteriores, o movimento operário de alguns países da Europa não
              só crescera e começara a se organizar de forma autônoma, como
              também passara a elaborar programas políticos que apontavam de
              modo crescente, embora ainda confuso, para transformações
              sociais de sentido anticapitalista. Nas insurreições de 1848 a
              burguesia tomara consciência do risco muito real de perder o
              controle dessas revoluções populares. Além disso, o discurso
              liberal dos Direitos Humanos, petrificado desde 1789, esvaía
              continuamente seu poder de sedução sobre os pobres. Para a
              imensa maioria dos habitantes do planeta, ele não passava de eco
              longínquo vindo de alguns países da Europa Ocidental ou da
              América - e, mesmo nessas regiões, representava, de fato, pouco
              mais que ficção jurídica para a maioria dos humanos. É verdade
              que a progressiva universalização da igualdade civil, não só
              colocara um contingente enorme de força de trabalho à
              disposição da indústria, como também removera as antigas
              restrições jurídicas às relações contratuais - a burguesia
              tirava bom partido disso. Mas, para os pobres, a igualdade civil
              fora de muito pouco proveito prático - a não ser a de
              colocá-los "em pé de igualdade" para travar relações
              contratuais de trabalho com seus patrões. Quanto à liberdade
              individual, não restava mais dúvida de que seu exercício
              efetivo estava poderosamente condicionado pelas muito desiguais
              possibilidades sociais de cada indivíduo - mais precisamente, de
              cada classe. Os direitos políticos continuavam interditados aos
              trabalhadores por limitações censitárias ou de outra natureza.
              Sob este aspecto particular, os Estados Unidos, onde o movimento
              democrático jacksoniano implantara o sufrágio
              "universal", pareciam uma exceção - mas, efetivamente,
              estavam longe disso, pois milhões de africanos levados à força
              para esse novo país continuavam a ferros e sob chibata, e as
              populações indígenas iam sendo metodicamente massacradas pelo
              exército, escalpeladas(156) pelos colonos e empurradas sempre
              para mais adentro do continente. No que se refere aos direitos
              econômicos, sociais e culturais, eram aspirações que mal
              começavam a ganhar terreno - palmo a palmo, contra feroz
              resistência patronal, e sempre sob repressão sangrenta das
              polícias de todos os países. Por fim, nem pensar em igualdade
              entre homens e mulheres em nenhum país do mundo - nem mesmo
              jurídica. Em todos os lugares onde a burguesia já havia
              alcançado o poder político e, diretamente ou por representantes,
              fazia as leis, os Direitos Humanos reduziam-se a isto: uma
              ideologia, no sentido de discurso legitimador da nova dominação
              de classe. Muitos já percebiam que, na falta de igualdade social,
              a "liberdade" jurídico-formal reduz-se a uma
              caricatura. Hegel já denunciara que quem se encontra em carência
              aguda de meios de subsistência está em condição de "total
              falta de direitos", numa posição que, de fato, pouca
              distância guarda da falta de liberdade dos escravos(157). Mas
              caberia a um jovem intelectual alemão, à época com 25 anos,
              cujas reflexões estavam transitando do Direito para a Filosofia e
              para a Economia, esboçar a primeira crítica filosófica e
              política mais sistemática a isso que, no campo legal e na
              realidade social, concretamente se apresentava como "Direitos
              Humanos" em meados do século XIX. Seu nome: Karl Marx. Num
              artigo intitulado "A Questão Judaica"(158), observou
              que "a emancipação política não implica em emancipação
              humana" e que o "homem" contemplado nos estatutos
              oriundos da Revolução Francesa não é o ser humano
              universalmente considerado, mas o "membro da sociedade
              burguesa", o "homem egoísta", "separado dos
              outros homens e da comunidade"(159). A desigualdade real
              operante na sociedade é o critério delimitador, que atribui e
              restringe o significado prático aos demais direitos: "O
              Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status
              social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o
              status social, a cultura e a ocupação do homem como diferenças
              não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a
              estas diferenças, co-participante da soberania popular em base de
              igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do
              ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a
              propriedade privada, a cultura e a ocupação 'atuem a seu modo',
              isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação,
              e façam valer sua natureza 'especial'. Longe de acabar com estas
              diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas.
              (...) Todas as premissas desta vida egoísta permanecem de pé 'à
              margem' da esfera estatal, na 'sociedade civil', porém, como
              qualidade desta. Onde o Estado político já atingiu seu
              verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no plano do
              pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da
              vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na
              'comunidade política', na qual ele se considera um 'ser
              coletivo', e na 'sociedade civil', em que atua como 'particular' ;
              considera os outros homens como meios, degrada-se a si próprio
              como meio e converte-se em joguete de poderes estranhos. O Estado
              político conduz-se em relação à sociedade de modo tão
              espiritualista como o céu em relação à terra (...) o homem é
              considerado um ser genérico, ele é o membro imaginário de uma
              soberania imaginária, acha-se despojado de sua vida individual
              real e dotado de uma generalidade irreal"(160). A
              diferenciação entre direitos "do homem" e direitos
              "do cidadão" expressa a existência humana
              auto-dividida na sociedade burguesa, diferenciação que
              "marca de fato a oposição total de seus conteúdos
              respectivos. Os direitos do homem como tal consagram uma
              existência dedicada à particulariedade, que se privatiza e se
              fixa, afastada e em choque com os outros, na privatização,
              enquanto os direitos do cidadão consagram uma existência que,
              fazendo abstração de sua particularização multiforme,
              dirige-se aos assuntos gerais, abre-se a uma preocupação
              universal"(161). A liberdade(162), conceituada por um
              critério negativo nas Constituições pós-revolucionárias
              (poder fazer tudo o que não prejudique aos outros), expressa o
              "limite dentro do qual todo homem pode mover-se 'inocuamente'
              em direção ao outro (...), assim como as estacas marcam o limite
              ou a linha divisória entre duas terras", reduzindo-se essa
              liberdade a uma "mônada isolada, dobrada sobre si
              mesma", que "não se baseia na união do homem com o
              homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação
              a seu semelhante. A liberdade é o 'direito' a esta dissociação,
              o direito do indivíduo 'delimitado', limitado a si mesmo. A
              aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito
              humano à propriedade privada." Este, por sua vez, é o
              direito do homem de "de desfrutar de seu patrimônio e dele
              dispor arbitrariamente à son gré, sem atender aos demais homens,
              independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal.
              A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o
              fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo
              homem encontre noutros homens não a 'realização' de sua
              liberdade, mas, pelo contrário, a 'limitação' desta." A
              igualdade civil "nada mais é senão a igualdade da
              'liberdade' acima descrita", e a segurança é o
              "conceito social supremo da sociedade burguesa, conceito de
              polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para
              garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa,
              de seus direitos e de sua propriedade", o que impede a
              superação do egoísmo. "A segurança, pelo contrário, é a
              preservação deste". Após essas primeiras formulações, a
              crítica de Marx aos Direitos Humanos da época da Revolução
              Industrial, mesmo sem ocupar mais posição de centralidade em seu
              pensamento, reapareceria em obras posteriores(163), ora
              enfatizando sua função social ilusória, ora embutida numa
              ruptura radical com a compreensão liberal de mundo(164) -
              localizando sempre na exploração dos trabalhadores o suporte
              dinâmico do modo de produção capitalista e na propriedade
              privada dos meios de produção o fundamento da desigualdade
              social: "Horrorizai-vos por querermos suprimir a propriedade
              privada. Mas na sociedade existente, a vossa, a propriedade
              privada já está suprimida para nove décimos dos seus membros;
              ela existe precisamente pelo fato de não existir para nove
              décimos. Censurai-nos, portanto, por querermos suprimir uma
              propriedade que pressupõe como condição necessária que a
              imensa maioria da sociedade não possua propriedade"(165).
              Captando no movimento real dos trabalhadores a potência capaz de
              abrir caminhos para a superação dialética dessa situação,
              Marx diria: "No lugar do pomposo catálogo dos 'direitos
              inalienáveis do homem' entra a modesta Magna Charta de uma
              jornada de trabalho legalmente limitada"(166). O papel dos
              trabalhadores como novos sujeitos ativos da transformação social
              seria enfatizado reiteradamente, deslocando o socialismo do plano
              da utopia para o terreno da luta política. As idéias
              desenvolvidas por Marx abarcaram temáticas muito mais amplas e
              complexas do que as indicadas aqui. E, certamente, não
              conquistaram terreno com facilidade no movimento operário.
              Tiveram que abrir caminho num emaranhado de tendências que
              misturava anarquismo de vários matizes e remanescentes utópicos,
              para não falar da feroz repressão dos governos que,
              periodicamente, produzia chacinas, como o massacre da Comuna de
              Paris de 1871.(167) Mas, para o objeto deste estudo, o que importa
              ressaltar é que, ao longo da segunda metade do século XIX, elas
              foram imprimindo às lutas sociais uma dinâmica dupla de, a um
              só tempo, continuidade e ruptura: retomavam a indignação moral
              e a insatisfação social dos socialistas utópicos e dos
              movimentos espontâneos dos operários; mas afastavam-se daquelas
              idealizações voluntaristas de um imaginário mundo
              "perfeito" para, em seu lugar, promover a análise e a
              crítica concretas da sociedade real, em conexão com uma práxis
              social transformadora sob a perspectiva dos explorados e
              oprimidos. No final daquele século, após a morte de Marx, o
              marxismo já cumpria no movimento operário (na Europa e, em menor
              grau, na América do Norte) uma função similar à que, um
              século antes, o jusnaturalismo desempenhara em relação à
              burguesia revolucionária: método de análise, de compreensão e
              de crítica da sociedade, instrumento teórico para sua
              transformação e suporte programático para essa luta. Luta pelos Direitos Sociais: a
              prática transforma a teoria Derrotada a "Primavera dos
              Povos", o capitalismo ingressou no seu período de
              consolidação econômica e, até o final do século, expandiria
              seu domínio colonial aos últimos recantos do planeta onde ainda
              não houvera penetrado. Claro, desenvolvendo-se de modo desigual e
              combinado, no seu ritmo anárquico de crises cíclicas que, como
              lei tendencial, passaria a acompanhá-lo daí por diante:
              expansão na década de cinquenta, depressão em 1857-58,
              expansão por mais dez anos, crise entre 1866 e 1868, novo
              período de expansão, seguida então da primeira longa
              depressão, entre meados da década de setenta e meados da década
              de noventa daquele século. Configurava-se um padrão espasmódico
              que, bem mais tarde, entre as décadas de quarenta e setenta do
              século seguinte, seria transitoriamente atenuado pela
              intervenção de políticas econômicas (mas, com o aumento da
              internacionalização do capital e dos mercados, retornaria mais
              complexo e igualmente danoso). "Na verdade, o processo de
              expansão era, como todos agora reconhecem, curiosamente
              catastrófico. Violentas quedas, algumas vezes drásticas e
              crescentemente globais, sucediam-se a expansões estratosféricas,
              até que os preços caíssem o suficiente para dissipar os
              mercados retraídos e limpar o campo de empresas falidas, para
              que, então, os homens de negócios começassem a investir e
              expandir-se, renovando dessa forma o ciclo. Foi em 1860, depois da
              primeira dessas genuínas quedas mundiais, que os economistas
              acadêmicos, na pessoa de um brilhante francês, Clément Juglar
              (1819-1905), reconheceram e mediram a periodicidade desse 'ciclo
              do comércio' até então considerado apenas por socialistas e
              outros elementos heterodoxos"(168). Se a questão se
              reduzisse a exercício de econometria, tudo estaria bem. Mas, a
              cada crise, milhões de homens e mulheres perdem trabalho,
              transformam-se em "superpopulação relativa", e são
              lançados à alternativa entre miséria ou emigração para os
              territórios vastos do continente americano - esta alternativa de
              fuga se esgotaria nas primeiras décadas do século vinte. Nesses
              momentos, falar em Direitos Humanos para a população não passa
              de pilhéria atroz. Em meio a essa gangorra recorrente, aqueles
              foram tempos de triunfo do liberalismo econômico: aumento
              internacional do intercâmbio comercial, queda de barreiras
              alfandegárias, abertura de mercados à livre concorrência
              (exceto nos Estados Unidos, que prudentemente preservaram sua
              indústria da competição européia), conquista de novos
              mercados, ascendente competição entre as empresas. A euforia
              competitiva não duraria muito tempo: antes de aquele século
              terminar, a feroz luta econômica entre as maiores empresas
              conduziria à massiva centralização e concentração de
              capitais, engendrando a progressiva transformação daquele
              capitalismo de concorrência generalizada no capitalismo conhecido
              no século XX, comandado por gigantescos monopólios dominadores
              do mercado. A segunda metade do século XIX foi também a época
              em que, nos países e nas regiões de cada país onde o
              capitalismo estava mais desenvolvido, as classes dominantes
              convenceram-se definitivamente da conveniência de substituir a
              mão de obra escrava da América por trabalhadores livres. A
              experiência européia ocidental já demonstrara que isso saía
              mais barato (limitava a responsabilidade patronal ao pagamento de
              salários), os operários produziam mais (receosos do desemprego)
              e favorecia a criação de mercados para os produtos das
              indústrias. Além disso, intermináveis rebeliões rurais e
              urbanas de escravos e a pressão de movimentos humanitários
              deixavam os escravagistas acuados e sem argumentos. Essa
              combinação de conveniências burguesas, insubordinação escrava
              e agitação abolicionista levou a Inglaterra, desde meados
              daquele século, a forçar os países americanos a celebrarem
              sucessivos tratados internacionais e a adotarem leis internas para
              restrição ou supressão do comércio internacional de escravos,
              libertação dos cativos recém-nascidos ou muito idosos, até a
              abolição da escravatura. Nos Estados Unidos, foi preciso a
              Guerra Civil (1861-1865) para completar esse processo nos Estados
              do sul. E caberia ao Brasil o troféu de ter sido o último país
              do hemisfério ocidental a abolir a escravatura, em 1888. Mas era
              cedo para comemorações: os negros libertos seriam imediatamente
              lançados ao último escalão da sociedade e discriminados de
              todos os modos - quando não enclausurados socialmente por
              legislações segregacionistas (Estados Unidos, mais tarde
              Rodésia e Africa do Sul). De sua parte, o movimento operário
              defendia-se como podia. Nos países de maior concentração
              industrial começavam a brotar partidos socialistas e
              organizavam-se sindicatos e outros instrumentos de auto-defesa
              operária, abrindo lentamente fissuras na muralha da resistência
              patronal-governamental. Na Europa - começando pela Inglaterra, em
              seguida na França, depois na Bélgica, Alemanha, Itália e outros
              países - os trabalhadores, como visto, já vinham há décadas
              num lento acúmulo de forças. Em 1864, foi fundada a Associação
              Internacional dos Trabalhadores, mais tarde conhecida como
              Primeira Internacional (para discerni-la de outras Internacionais
              criadas depois). Agrupou as organizações da classe trabalhadora
              de países da Europa Ocidental e Central. Essa federação, que
              começou atuando na unificação das lutas econômicas dos
              trabalhadores dos diversos países, progressivamente apontou para
              a necessidade de sua ação política: desenvolveu campanhas pelo
              direito de voto dos trabalhadores, inclinou-se para uma plataforma
              socialista, chegando a defender, em 1871, a criação de partidos
              operários independentes das agremiações políticas burguesas.
              Essa Primeira Internacional dissolveu-se em 1876, em meio a
              divergências internas, mas o debate político que gerou favoreceu
              a fundação de diversos partidos nacionais de trabalhadores na
              Europa entre as décadas de 1870 e 1880, a maior parte de
              inspiração declaradamente marxista. Nos Estados Unidos,
              manifestações espontâneas pela jornada de trabalho de oito
              horas haviam acontecido em Nova Iorque já em 1829, e essa
              reivindicação começou a expandir-se pelos principais centros
              manufatureiros do nordeste do país a partir de 1850, com a
              criação das Grandes Ligas de Oito Horas. Mas esses movimentos
              precursores, embora importantes, demoraram para adquirir
              intensidade e expressão nacional enquanto a escravatura perdurou
              como principal questão social daquele país. Contudo, mal
              terminou a Guerra Civil, o movimento operário norte-americano
              imediatamente ganhou vitalidade: em agosto de 1866, reuniram-se em
              Baltimore os delegados do primeiro congresso de trabalhadores de
              todo o país, desfraldando a bandeira da jornada legal de oito
              horas e debatendo questões organizativas da classe operária.
              Levas sucessivas de imigrantes europeus - muitos deles expulsos de
              seus países por participarem de lutas operárias do Velho Mundo -
              contribuíram para conferir ímpeto à organização dos
              trabalhadores americanos. Vitórias significativas começaram a
              ser conquistadas: em meados da década de oitenta do século XIX,
              a pressão operária já havia conseguido impor à legislação de
              dezenove Estados norte-americanos jornadas que variavam até o
              máximo de dez horas de trabalho. O ódio das classes dominantes
              também crescia(169). Tanto na Europa, como na América do Norte,
              no que mais os trabalhadores conseguiram avançar ao longo daquele
              período foi em relação aos direitos de associação e de greve
              - praticados sempre contra as leis vigentes, antes que, no final
              do século, começassem a ser tolerados institucionalmente em
              alguns países. Além disso, obtiveram progressos significativos,
              ainda que com grande lentidão, na ampliação dos seus direitos
              políticos, mediante leis de reforma eleitoral que atenuavam ou
              removiam restrições econômicas diretas ou indiretas ao direito
              de voto (principalmente na Europa, onde essas restrições eram
              maiores), já apontando para o sufrágio universal - entenda-se
              bem: "universal" para os homens. Os direitos políticos
              das mulheres ainda teriam de aguardar até que, no início do novo
              século, as lutas das "sufragistas" européias e
              norte-americanas adquirissem dimensão de massas(170). Então, a
              cidadania política feminina começaria a conseguir reconhecimento
              legal - ainda assim, vagarosamente. Ao terminar o século, ficava
              claro também que o movimento dos trabalhadores dava passos
              concretos - e alcançavam as primeiras vitórias, tímidas ainda -
              na organização das lutas pelo que, mais tarde, seria conhecido
              como direitos econômico-sociais (jornada regulamentada, salário
              mínimo, repouso semanal remunerado, férias, aposentadoria,
              acesso à educação e a serviços públicos de saúde e
              assistência social, etc.). Que se afaste, todavia, qualquer
              equívoco de assimilação edulcorada desse processo histórico:
              todas essas vastas demandas sociais só avançaram mediante
              combate aguerrido, sacrifício, vertendo - continuaria a verter -
              muito sangue dos trabalhadores e das trabalhadoras de todos os
              países. A menção constante - talvez até por sua força
              emblemática - de alguns marcos mais conhecidos, como o massacre
              das operárias de Nova Iorque, em 8 de março de 1857(171), ou o
              episódio dos "oito mártires de Chicago"(172), poderia
              induzir à tranquilizadora ilusão de que foram casos isolados.
              Não foram: as décadas de passagem para o século XX foram palco
              de incruenta e só parcialmente bem sucedida luta pela conquista
              de direitos - assim mesmo, praticamente só na Europa ocidental e
              na América do Norte. Cada conquista - civil, política,
              econômica, social ou cultural - por mínima que fosse, teve
              atrás de si histórias de repressão estatal incruenta,
              intolerância patronal, defesa encarniçada de privilégios por
              parte das classes dominantes, prisões odiosas, enforcamentos,
              extradição de sindicalistas, degredo, mortes e mais mortes de
              trabalhadores e de trabalhadoras. É longo e arrepiante
              (convenientemente esquecido), em todos os países, esse
              histórico. O vagaroso aparecimento da legislação social
              "...não se deve, aliás, de modo algum, à generosidade dos
              corações burgueses, à súbita conversão moral dos antigos
              algozes da classe operária..."(173). Além disso, nesse
              tempo em que a luta operária ascendia em todas as partes
              industrializadas do mundo, o desgastado liberalismo oligárquico
              também operava, na ideologia das classes dominantes cultas dos
              países mais importantes, sua transição para o pensamento
              "liberal-democrata". Mas a antiga autoconfiança
              racionalista da burguesia também ia cedendo terreno a medos - de
              adversários reais e imaginários. Um acontecimento, como mau
              presságio, expressou adequadamente essa ansiedade burguesa do
              final do século XIX: o caso Dreyfus(174). Ele foi indicativo de
              que, no próprio aparato estatal, recomeçava a ganhar fôlego uma
              das muitas modalidades de racismo que se fortaleciam no ocidente
              "civilizado". Já há algum tempo, engendrava-se e
              disseminava-se, às vezes até com túnicas pretensamente
              "científicas", toda sorte de teorias racistas -
              justificadoras, tanto da nova onda de expansão colonial européia
              na África e na Ásia, como da supremacia burguesa no planeta. O
              pensamento conservador, atônito ante os abalos econômicos e
              sociais de seu mundo supostamente sólido, abandonava as
              retumbantes proclamações do humanismo e da razão de menos de um
              século atrás, em favor do irracionalismo truculento e
              obscurantista. Ambiente propício para que o antigo anti-semitismo
              cristão também recrudescesse. Assim, além do "perigo
              operário", o imaginário conservador engendrou novos
              "inimigos" sociais cuja existência pudesse
              "explicar" (e a quem se pudesse atribuir) a insegurança
              que rondava à volta. De país para país, essa nova maturação
              de preconceitos seculares da cultura cristã combinou-se, em graus
              variados, com seu uso de caso pensado pelos que tinham interesses
              a preservar. Sua disseminação pela sociedade passaria a cumprir,
              na prática, dois papéis precisos: de um lado, no plano
              ideológico, acrescentou mais ingredientes a uma nova visão
              reacionária de mundo que já se encontrava em franca expansão,
              apartada das referências no humanismo universalista do século
              XVIII e em aberta recusa ao igualitarismo (social, racial,
              nacional ou de gênero); e, de outro lado, no terreno das lutas
              sociais, chegou a introduzir confusão e divisão até no
              movimento operário de vários países. Apesar da evidente
              reação conservadora que se gestava - e que, em trinta anos,
              tornar-se-ía sinistramente forte - essa época demarcou o início
              da fase histórica em que os movimentos populares finalmente
              acumularam forças para iniciar o processo - longo e permeado de
              graves contramarchas - de arrancar os Direitos Humanos, não só
              do confinamento social, como também dos limites conceituais a que
              os mantivera a burguesia oitocentista. Se, no final do século
              XIX, os trabalhadores do sexo masculino já conquistavam direitos
              políticos em vários países, à medida em que o século XX
              avançou os êxitos da pressão operária e camponesa também
              forçaram a que o próprio conceito setecentista de Direitos
              Humanos (direitos civis e políticos) se expandisse, com a
              progressiva incorporação jurídica dos direitos econômicos e
              sociais, nunca contemplados pelas revoluções burguesas. México, Rússia, Alemanha: grandes
              esperanças No novo século, pela primeira vez na História - e
              pela força de todos aqueles que não aceitavam mais permanecer
              nos porões da sociedade - os Direitos Humanos pareciam,
              progressivamente, ganhar efetividade prática para milhões de
              pessoas, suscitando esperanças de que, por fim, tornar-se-ía
              realidade sua sempre adiada promessa de universalização. E,
              naqueles anos duríssimos que se seguiram aos escombros da maior e
              mais desoladora guerra até então travada pelas nações
              (1914-1918), essas esperanças nutriam-se nas rápidas - por
              vezes, profundas - transformações sociais em curso em partes
              muito importantes do planeta. Muitas conquistas sociais - e seus
              reflexos jurídicos - foram mesmo notáveis e, mesmo quando
              controvertidas, chegaram por um momento a parecerem
              irreversíveis. A primeira revolução russa, de 1905, havia
              deixado atordoada a velha autocracia semi-feudal, antiliberal e
              antioperária dos Czares. Embora não a conseguisse demolir dessa
              vez, a revolução popular de 1905 trincou irremediavelmente esse
              mais antigo absolutismo remanescente na Europa e, para quem
              tivesse olhos de futuro, apontou o dedo para a ascensão de um
              maremoto operário e camponês que demoraria pouco mais de uma
              década para mostrar-se irresistível. No México, no final de
              1910, eclodiu a primeira revolução popular vitoriosa do século
              XX. Marcada por ziguezagues políticos(175), ela produziu,
              contudo, em 31 de janeiro de 1917, uma Constituição que, além
              de estender os direitos civis e políticos para toda a
              população, pela primeira vez incorporava amplamente direitos
              econômicos e sociais, com o conseqüente estabelecimento de
              restrições à propriedade privada. Logo no seu artigo 3º,
              assegurava que a educação, além de laica, gratuita e baseada
              nos "...resultados do progresso científico...contra qualquer
              espécie de servidão, fanatismo e preconceitos", seria ainda
              democrática, "...considerando a democracia não somente uma
              estrutura jurídica e um regime político, mas também um sistema
              de vida fundado na constante promoção econômica, social e
              cultural do povo". Já apontava, portanto, para a superação
              da noção liberal (isto é, política e formal) de democracia. À
              semelhança do que haviam feito os revolucionários franceses
              após 1789, a Constituição mexicana, para salvaguarda da
              liberdade individual, proibia (art. 5º) o estabelecimento de
              ordens monásticas restritivas ao direito pessoal de ir e vir e,
              mesmo mantendo a liberdade religiosa (art. 24), estatizou os bens
              da Igreja (art. 27, II)(176). O artigo 27 deve ter suscitado
              horror aos conservadores, ao romper conceitualmente, logo no seu
              caput, com o clássico credo liberal da anterioridade do
              indivíduo proprietário em relação à sociedade: "A
              propriedade das terras e das águas compreendidas dentro dos
              limites do território nacional pertence originariamente à
              Nação, a qual teve e tem o direito de transmitir seu domínio
              aos particulares, constituindo a propriedade privada". A
              partir dessa formulação, resultava que a Nação poderá
              "...impor à propriedade privada as regras ditadas pelo
              interesse público (...) e regular o aproveitamento dos elementos
              naturais suscetíveis de apropriação, com vistas à
              distribuição eqüitativa e à conservação da riqueza
              pública." No sentido de tornar concreta a função social da
              propriedade, o artigo determinava que "...serão decretadas
              as medidas necessárias à divisão dos latifúndios; ao
              desenvolvimento da pequena propriedade de extração agrícola; à
              criação de novos centros de população agrícola com terras e
              águas que lhes sejam indispensáveis; ao fomento da agricultura
              de modo a evitar a destruição dos elementos materiais e os danos
              que os bens possam sofrer em prejuízo da sociedade." O mesmo
              artigo subordinava o direito individual de propriedade às
              necessidades coletiva: "Os núcleos de população que
              careçam de terras e águas, ou não os tenham em quantidade
              suficiente para as suas necessidades, terão direito a adquiri-las
              das propriedades vizinhas, respeitando sempre a pequena
              propriedade de exploração agrícola". Tornava, ainda,
              propriedade da Nação os recursos do subsolo e da plataforma
              continental submarina e restituía a propriedade comunal das
              terras aos núcleos camponeses (incs. VII e X). O inciso XVII
              desse artigo limitava a extensão máxima da propriedade de terras
              (abolição dos latifúndios), instituía a expropriação
              fundiária compulsória para a reforma agrária, com indenização
              mediante títulos da dívida agrária resgatáveis a longo prazo e
              a baixos juros, pagos em parcelas anuais, e criava garantias ao
              patrimônio familiar camponês. No mesmo diapasão que horrorizou
              liberais, liberais-democratas e demais matizes de conservadores
              sociais, o artigo 28 da constituição mexicana proibia a
              formação de monopólios econômicos, castigava as manobras
              empresariais para elevação de preços, abolia privilégios
              tributários, autorizava o funcionamento de sindicatos e
              estimulava as associações cooperativas para livrar os produtores
              rurais dos intermediários. Os artigos 34 e 35 estendiam a
              cidadania a todos os homens e mulheres com mais de dezoito anos
              que tivessem um "modo de vida honesto", assegurando-lhes
              sufrágio universal e elegibilidade universal. Por fim, pela
              primeira vez numa Constituição, seu longuíssimo artigo 123
              relacionava(177), detalhadamente, os direitos sociais dos
              trabalhadores(178). É claro que, tão logo as forças populares
              refluíssem, muito disso não passaria do papel. Mas, por se
              tratar da Constituição que, mesmo mantendo o capitalismo, foi
              socialmente a mais avançada até então produzida, ela seria
              tomada como uma das novas referências para lutas sociais
              vindouras - e para Constituições vindouras. Mas a Constituição
              mexicana de 31 de janeiro de 1917 era só o prelúdio das dores de
              cabeça que estragariam o humor de quem ainda acreditasse ser
              possível manter o planeta imóvel. Na Rússia, já se haviam
              colocado em movimento as forças sociais que, naquele mesmo ano,
              produziriam os abalos sísmicos de fevereiro (revolução
              democrático-burguesa) e de outubro (revolução socialista). A
              segunda dessas revoluções, iniciada por um levante operário em
              Moscou e São Petersburgo em 25 de outubro de 1917 (dia 7 de
              novembro, pelo calendário atual), chamou logo muita atenção.
              Diferentemente da França de 1789, em que a revolução fora
              principalmente política (era nesse terreno que a burguesia sentia
              mais a opressão), na Rússia os operários queriam mais, pois sua
              opressão, sob o capitalismo, era tanto política, como econômica
              e social. Por isso - agora vinha o mais inusitado - os que haviam
              feito a revolução (isto é, a insurreição) queriam também
              conservar para si o poder para fazer uma revolução (isto é,
              transformar a sociedade)(179). Era o que, menos de dois meses
              depois, anunciariam os delegados populares reunidos na assembléia
              que, naquele momento, encarnou o novo poder revolucionário - o
              "III Congresso Pan-Russo dos Sovietes de Deputados
              Operários, Soldados e Camponeses". No dia 4 de janeiro de
              1918 (dia 17, pelo calendário atual), esse "Congresso dos
              Sovietes" proclamou ao mundo a "Declaração dos
              Direitos do Povo Trabalhador e Explorado", que viria a ser
              conhecida como um contraponto proletário à
              "Declaração" burguesa de 1789. A "Declaração
              dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado" inaugurou uma
              ótica completamente nova e polêmica na abordagem tradicional dos
              Direitos Humanos. Em vez da perspectiva individualista de um ser
              humano abstrato contida na "Declaração" francesa de
              1789, a "Declaração" russa de 1918 elegia como ponto
              de partida o ser humano concretamente (isto é, historicamente)
              existente, o ser humano que vive em sociedade, em relação
              contínua com outros homens, e que, portanto, poderá desenvolver
              (ou não desenvolver) suas potencialidades humanas conforme a
              posição que ocupar nessa sociedade, ou conforme o modo de
              organização dessa sociedade venha a favorecer ou a dificultar
              esse desenvolvimento. Em vez da sociedade hipoteticamente uniforme
              (isto é, juridicamente igualitária), dissolvida idealmente em
              cidadãos supostamente iguais, a "Declaração" russa
              partia do reconhecimento - cautelosamente evitado desde 1789 - de
              que a sociedade está dividida em classes sociais com interesses
              conflitantes. Portanto, em vez da ideação liberal de
              "neutralidade" social do Estado, a nova
              "Declaração" tomava partido, desde logo e abertamente,
              dos explorados e oprimidos, alijando explicitamente do poder
              econômico e político os exploradores. Assim, com vistas a
              "...suprimir toda exploração do homem pelo homem, a abolir
              completamente a divisão da sociedade em classes..."
              (Capítulo II, caput) todas as terras agrícolas, o subsolo, as
              fábricas, minas, bancos, estradas de ferro - enfim, os meios
              sociais de produção e distribuição que fossem de interesse
              público - passavam a ser propriedade nacional, sob
              administração dos trabalhadores coletivamente organizados em
              "Sovietes" (conselhos populares), com base numa
              "repartição igualitária em usufruto" (Cap. II, arts.
              1º, 2º e 3º). Ademais, "tendo em vista suprimir os
              elementos parasitas da sociedade" (Cap. II, art. 4º)
              trabalhar passava a ser dever de todos. Para evitar a retomada do
              poder pelas classes dominantes depostas, instituía-se (Cap. II,
              art. 5º) o "armamento dos trabalhadores (...) e o
              desarmamento das classes possidentes". A
              "Declaração" russa posicionava-se contra a guerra e
              por uma "paz democrática dos trabalhadores, paz sem
              anexações nem reparações, baseada na livre disposição dos
              povos" (Cap. III, art. 1º), contra o colonialismo e em
              "repúdio completo à política bárbara da civilização
              burguesa, que alicerçava o bem-estar dos exploradores em algumas
              nações eleitas sobre a servidão de centenas de milhões de
              trabalhadores na Ásia, nas colônias em geral e em pequenos
              países" (Cap. III, art. 2º). O Capítulo IV, na primeira
              parte, avaliava que, "...atualmente, no momento da luta
              decisiva do povo contra os exploradores, não pode haver lugar
              para estes em nenhum dos organismos do poder. O poder deve
              pertencer na totalidade e exclusivamente às massas laboriosas e
              à sua representação autorizada...". Por fim, a segunda
              parte desse Capítulo reconhecia a cada Nação, mediante seu
              próprio Congresso Nacional de Sovietes, a liberdade de
              "decidir livremente (...) sobre se querem e, em caso
              afirmativo, em que bases, participar no Governo Federal e nas
              outras instituições federais soviéticas". Retomando um
              procedimento adotado pelos franceses no final do século XVII, a
              "Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e
              Explorado", de janeiro de 1918, foi em seguida incorporada,
              como Título I, na primeira Constituição da República
              Socialista Federativa Soviética da Rússia, de 10 de julho de
              1918. Inspirada nos princípios dessa "Declaração",
              essa primeira Constituição soviética manifestava o propósito
              de assegurar liberdade e igualdade reais aos que, até então,
              nunca as haviam tido: os trabalhadores das cidades e do campo. A
              Igreja foi separada do Estado e foi "reconhecida a liberdade
              de propaganda religiosa e anti-religiosa a todos os
              cidadãos" (art. 13)(180). Para garantia da liberdade de
              expressão aos trabalhadores, foram deslocados para suas mãos
              "todos os recursos técnicos e materiais necessários à
              publicação de jornais, livros e outras publicações",
              ficando garantida "sua livre difusão em todo o país"
              (art. 14 da Constituição). Para dar efetividade à liberdade de
              reunião, a Constituição (art. 15) pôs à disposição dos
              trabalhadores "todos os locais convenientes, com mobiliário,
              iluminação e aquecimento, para a realização de reuniões
              populares". Para impulsionar a liberdade de associação dos
              trabalhadores, o artigo 16 direcionou-lhes toda "assistência
              material e qualquer outra forma de apoio tendente a que eles se
              unam e organizem". Quanto ao "real acesso à
              cultura", o artigo 17 assegurou "instrução completa,
              universal e gratuita aos operários e aos camponeses mais
              pobres". O artigo 18 tornou o trabalho um dever de todos, com
              base no princípio de "quem não trabalha não come". O
              artigo 21 conferiu o "direito de asilo a todos os
              estrangeiros perseguidos por delitos políticos ou
              religiosos". Foi proclamada (art. 22) a "igualdade de
              direitos dos cidadãos independentemente de sua raça ou
              nacionalidade" e repudiada "qualquer opressão das
              minorias nacionais ou limitação de sua igualdade
              jurídica". Já o artigo 23, expressando a conjuntura de
              conflito social extremado(181), reproduziu outra solução adotada
              pelos jacobinos franceses após outubro de 1793: privava "os
              indivíduos e os grupos particulares dos direitos de que poderiam
              usar em detrimento dos interesses da revolução socialista".
              Nas localidades rurais menores, a autoridade suprema local passou
              a ser a "assembléia geral dos eleitores" (art. 60); nas
              cidades, essa autoridade foi conferida aos Sovietes de Deputados
              (conselhos populares locais), eleitos proporcionalmente à
              população (arts. 57 e 60) que, por sua vez, elegiam delegados
              aos Congressos de Sovietes provinciais, regionais, etc., até o
              Congresso Pan-Russo dos Sovietes (poder supremo do país) que,
              então, elegia um Comitê Executivo de até 200 membros (com o
              qual repartia a competência legislativa nacional) que exercia as
              funções administrativas por meio de um Conselho de Comissários
              (ministros) do Povo (arts. 24, 25, 28, 49, 53, 56 e 61). O mandato
              de cada deputado aos Sovietes passava a ser curtíssimo - apenas
              três meses (art. 57). O artigo 64 colocou, literalmente, de
              ponta-cabeça o que os liberais sempre praticaram no terreno dos
              direitos políticos, inaugurando o conceito de "cidadania
              política pelo trabalho: "Têm o direito de eleger e de ser
              eleitos para os Sovietes os cidadãos de ambos os sexos (...), sem
              distinção de confissão, de nacionalidade e de residência (...)
              que granjeiem os seus meios de existência através do trabalho
              produtivo, ou de um trabalho socialmente útil, e os que efetuem
              um trabalho doméstico e assegurem aos primeiros a possibilidade
              de desenvolver o seu trabalho produtivo (...)". E, para
              assegurar a fidelidade dos representantes em relação aos
              representados (evitando a conhecida independência dos eleitos em
              relação aos eleitores), o artigo 78 instituiu o mandato
              revogável: "Os eleitores têm o direito de destituir a todo
              momento o deputado que tiverem eleito e de proceder a novas
              eleições, em conformidade com as regras gerais"(182). Tudo
              isso era muito novo. E havia outra coisa nova, que não passou
              despercebida: tanto a "Declaração" russa, como a
              Constituição que se lhe seguiu, silenciaram sobre um ponto que,
              desde o século XVIII, tornara-se crucial no ocidente - nenhuma
              palavra quanto a garantias dos direitos individuais. Considerado o
              caráter socialista da revolução em curso, seria razoável
              esperar-se que a ênfase necessária àquele momento recaísse
              mesmo em medidas para a conquista da igualdade - de outro modo
              não seria quebrada a desigualdade social do capitalismo. Mas,
              até em proveito desse rumo, seria também razoável esperar-se
              que, em vez de silenciarem sobre garantias individuais, os
              revolucionários imprimissem-lhes sentido novo - compatível com
              os direitos sociais dos trabalhadores e com a primazia do
              interesse social, superando o viés individualista com que haviam
              sido marcadas nas revoluções burguesas. Não fizeram isso. A
              burguesia nunca fora perdoada por, na "Declaração" de
              1789, haver omitido a igualdade do rol dos "direitos naturais
              e imprescindíveis do homem". A revolução russa, por essa
              outra omissão, também não o seria. Tardiamente, sob Stálin, os
              próprios revolucionários descobririam a extensão desse erro.
              Enquanto, na Rússia, tantas novidades pareciam virar o mundo de
              pernas para o ar, o II Reich alemão emergia de um transe
              catastrófico (derrota na 1ª Guerra Mundial) para iniciar a
              conhecida e espasmódica caminhada que o conduziria a novo transe
              ainda mais catastrófico (nazismo, III Reich, derrota na Segunda
              Guerra Mundial). No ínterim entre os dois marcos, equilibrou-se a
              efêmera República de Weimar (1919-1933), com sua Constituição
              de 11 de agosto de 1919. Se, em poucas palavras, fosse possível
              definir o caráter mais geral dessa Constituição de vida breve,
              as palavras poderiam ser estas: uma tentativa de conciliação das
              contradições sociais. Terminado o morticínio da Primeira Guerra
              Mundial, a Alemanha, vergada pela derrota militar, teve de
              submeter-se ao Tratado de Versalhes, que lhe impôs perdas
              territoriais, longas e pesadas reparações de guerra em favor das
              potências vencedoras e retração de mercados. Sua economia
              entrou em recuo desorganizado, o desemprego tornou-se sério e uma
              crise social severa ameaçava transformar-se em crise política. A
              custo, a burguesia manteve a nau sob controle. Mas não estava
              mais em condições de ignorar os ventos transformadores que
              sopravam na Europa, nem de subestimar o aguerrido movimento
              operário alemão, que levantava a cabeça e olhava para o que
              seus companheiros de classe estavam fazendo na Rússia. Nessas
              condições de temperatura e pressão, a Constituição da
              recém-criada República de Weimar refletiu, aproximadamente, a
              correlação de forças sociais surgida na Alemanha do imediato
              pós-guerra: o movimento popular conseguiu inscrever direitos
              sociais nessa Constituição - certamente menos do que os
              trabalhadores do México, mas certamente mais do que, em outras
              condições, a burguesia poderia estar disposta a lhe conceder. A
              Parte I da Constituição de Weimar, intitulada "Estrutura e
              Atribuições do Império", tinha sete seções e começava
              mantendo o Império (Reich) e instituindo a República (art. 1º).
              Em seguida, assegurava: o "sufrágio universal, direto e
              secreto (...) de todos os homens e mulheres" (art. 17) e
              consagrava a independência dos deputados em relação aos
              eleitores (art. 21); autorizava a iniciativa legislativa dos
              eleitores e prescrevia referendo popular para resolver disputas
              entre o Presidente do Império e o Parlamento (arts. 43, 73, 74 e
              76); firmava a independência, vitaliciedade e inamovibilidade dos
              magistrados (arts. 102 e 104) e proibia a criação de tribunais
              de exceção (art. 105). Vinha, em seguida, a Parte II da
              Constituição, intitulada "Direitos e Deveres Fundamentais
              dos Alemães", que tinha cinco seções. A seção I, que
              cuidava "Do indivíduo", fixava a igualdade perante a
              lei, alguns direitos civis e liberdades individuais, seguindo a
              tradição liberal. A Seção II, que tratava "Da vida
              social", dava passos à frente, assegurando a igualdade de
              direitos entre os cônjuges, a responsabilidade do Estado no
              amparo à maternidade, à saúde e ao desenvolvimento social das
              famílias (art. 119); a igualdade de condições de
              desenvolvimento entre filhos legítimos e ilegítimos (art. 121);
              a assistência à juventude (art. 12); os direitos de reunião
              (art. 123), de associação (art. 124), de petição (art. 126) e
              de acesso ao serviço público, inclusive para mulheres (art.
              128); os artigos 129 e 130 previam garantias aos funcionários
              públicos (vitaliciedade, previdência, direitos adquiridos,
              irredutibilidade de vencimentos, direito de defesa disciplinar,
              liberdade de expressão e de associação). A Seção III -
              "Da religião e das igrejas" - garantia liberdade
              religiosa e delineava a separação entre igreja e Estado. A
              Seção IV, intitulada "Da educação e ensino" era,
              para a época, muito abrangente: contemplava, no artigo 142, a
              liberdade artística, científica e de ensino; assegurava a
              escolaridade obrigatória, pública e gratuita até os dezoito
              anos de idade (art. 145), com ensino planejado e atento à
              diversidade de vocações, prevendo ainda auxílio estatal aos
              pais de alunos pobres "dignos de ascenderem ao ensino
              secundário e superior" (art. 146); curiosamente, o mesmo
              artigo 146 previa a criação de escolas públicas confessionais
              quando os pais o solicitassem; permitia o funcionamento de escolas
              privadas, como suplemento das públicas, desde que oferecessem
              qualidade de ensino equivalente, não incentivassem a
              discriminação econômica entre os alunos, e assegurassem a
              "situação econômica e jurídica do pessoal docente"
              (art. 147); indicava quais eram os objetivos do ensino,
              respeitando-se "opiniões diferentes" (art. 148); e o
              artigo 149 tornava optativo, para alunos e professores, o ensino e
              práticas de religião nas escolas. A Seção V, última da Parte
              II da Constituição de Weimar, intitulava-se "Da Vida
              Econômica" e começava indicando que a organização da
              economia deve ter em vista "assegurar a todos uma existência
              conforme a dignidade humana", ficando a liberdade econômica
              individual dentro desses limites (art. 151); garantia a
              propriedade, condicionada ao cumprimento de função social (art.
              154); responsabilizava o Estado pela regulamentação do uso e
              parcelamento do solo para fins habitacionais (art. 155);
              autorizava, sob certas condições, ampla intervenção do Estado
              na atividade econômica privada (art. 156); previa a futura
              instituição de um "direito do trabalho uniforme" (art.
              157) e de um "sistema geral" de previdência social e de
              proteção à saúde (art. 161); assegurava a liberdade de
              associação trabalhista (art. 159); anunciava que procuraria
              obter uma regulamentação internacional para assegurar "ao
              conjunto da classe operária da humanidade um mínimo de direitos
              sociais" (art. 162); reconhecia o direito ao trabalho e, na
              sua falta, o direito à assistência social (art. 163). Por fim, o
              artigo 165, último da Parte II, talvez fosse o que, melhor que
              qualquer outro, sintetizasse o espírito geral da Constituição
              de Weimar: conclamava empregados e patrões a colaborarem,
              "em pé de igualdade", na regulamentação de assuntos
              trabalhistas e econômicos, reconhecia os acordos que celebrassem
              entre si, e constituía representações de trabalhadores,
              chamadas "conselhos operários" (a linguagem vinha da
              Rússia, mas a semelhança com os sovietes terminava aí), para se
              reunirem com delegados patronais em "conselhos
              econômicos" de função opinativa ou propositiva em
              relação a projetos de lei sobre política econômica e
              social(183). Desse modo, na Constituição de Weimar, "os
              direitos sociais e econômicos, dentro do regime capitalista,
              estão reconhecidos e garantidos ao lado dos direitos individuais,
              como na Constituição mexicana, que é mais avançada do que
              aquela. Mas foi a de Weimar que exercera maior influência no
              constitucionalismo de após a Primeira Guerra Mundial, inclusive
              na brasileira de 1934"(184). Além de revoluções e de
              Constituições renovadoras, algumas mudanças importantes também
              aconteciam fora do México, Rússia e República de Weimar. A
              renovada pressão reinvidicatória popular, assim como o
              desencanto com a política internacional que conduzira à guerra
              inter-imperialista, instalaram um clima geral propício a
              transformações. Após dois séculos de resistência, a velha
              Inglaterra aprovou, em 1918, lei instituindo o sufrágio
              universal, no que foi seguida, daí por diante, por muitos países
              do ocidente. O voto feminino, embora com maiores
              resistências(185), começou a ser incorporado aos ordenamentos
              jurídicos. Mesmo nos países da "periferia", lutas
              sociais massivas (por exemplo, a greve geral paulista de junho de
              1917 e a greve nacional ocorrida no Brasil em 1918) forçavam as
              elites a fazer concessões. Até no plano das relações entre os
              países surgiam novidades. Pelo Tratado de Versalhes, de 28 de
              junho de 1919, foi criada a Liga das Nações, com a intenção de
              evitar que a disputa entre as potências imperialistas pela
              conquista de mercados conduzisse novamente a guerras mundiais. A
              Liga das Nações logo patrocinaria a celebração de alguns
              tratados internacionais relativos aos direitos de certas minorias
              nacionais, bem como promoveria a criação da Organização
              Internacional do Trabalho, instituição que sobreviveria às
              intempéries do resto do século e desempenharia papel certamente
              mais relevante do que imaginaram seus criadores. Enfim, esses
              todos transes e transições que o rádio e o telégrafo sem fio
              transmitiam de um lado a outro do planeta, suscitavam de tudo:
              assombro, euforia, imprecações, indecisão - dependia do
              interesse contemplado ou prejudicado, da visão de mundo que cada
              um tivesse, ou da compreensão, muitas vezes difícil, desses
              acontecimentos. Mas, naqueles anos, quem tivesse acesso a
              informações e se sentisse de alguma forma explorado ou oprimido,
              ou fosse um intelectual não-conformista (como se dizia à
              época), tinha boas razões para acreditar que - malgrado uma
              certa vertigem de tantas novidades e umas tantas nuvens escuras
              que permaneciam na linha do horizonte - a Humanidade poderia muito
              bem estar adentrando umbrais de uma era que a libertaria das
              guerras e da imemorial exploração do homem pelo homem e a
              resgataria de todas as formas de opressão individual, social,
              nacional, racial e de gênero, superando intolerância,
              preconceitos e divisões irracionais entre os seres humanos. Segunda Crise Geral dos Direitos
              Humanos Não tardaria muito para que os acontecimentos começassem
              a frustrar essas esperanças imensas. A Revolução Mexicana foi
              contida em patamar muito aquém do que prometia seu avançado
              programa de reformas sociais. Pouco a pouco, forças conservadoras
              moderariam o processo revolucionário até esgotá-lo nos anos
              quarenta. Combinando repressão com sistemática cooptação
              institucional de lideranças populares, o estrato populista da
              burguesia obteve hegemonia, fomentou reformas parciais e
              localizadas e instituiu um aparelho estatal de liturgia
              formalmente democrática (eleições periódicas, aparentemente
              livres) que, pelo vasto controle instaurado sobre a sociedade,
              manteve o regime político mais impermeável a mudanças da
              América Latina até o término do século XX. Os direitos sociais
              inscritos na Constituição mexicana de janeiro de 1917 -
              pioneiramente contemplados com tanta amplitude - caminhariam
              naquele país, na prática, em passo de marcha lenta, bem mais
              lenta do que a dos trabalhadores europeus. A Rússia, após
              imensos custos econômicos e sociais de uma sucessão de tormentas
              - guerra mundial, guerra civil, invasões militares estrangeiras -
              viu-se, na década de vinte, diante de uma vitória de pirro: era
              o país mais atrasado da Europa, estava destruído e completamente
              isolado(186). Cindido por lutas internas, impôs-se o projeto de
              um impensável "socialismo num só país" (nem mesmo os
              utópicos de cem anos antes chegariam a imaginar isso). O poder
              direto dos Sovietes perdeu terreno para uma burocracia
              centralizada no Estado, que centralizou todos os poderes em nome
              da defesa contra a restauração. Em vez de um Robespierre para
              comandar a vitória e sair de cena, emergiu Stálin, administrador
              feroz do sonho operário rompido. Toda crítica transformou-se em
              sinônimo de traição, o que impossibilitou definitivamente a
              correção de rumos e tornou curto o caminho para a repressão
              massiva a todas as divergências (inclusive de esquerda), como nos
              soturnos "processos de Moscou" do final da década de
              trinta. O que, no início da Revolução, poderia ser tomado como
              distorções de um processo, consolidou-se como um processo de
              distorções. Quanto à República de Weimar, fracassou
              rotundamente na tentativa de conciliar as contradições sociais
              da Alemanha. Quando, no final da década de vinte, parecia que as
              turbulências (hiperinflação, falências, desemprego em massa)
              do pós-guerra estavam em vias de superação, precipitou-se no
              planeta a maior crise econômica já experimentada pelo
              capitalismo - o crash de 1929, seguido de dez anos de depressão -
              que trouxe de volta pobreza, desespero e luta social aguda à
              Alemanha. Na entrada dos anos trinta, configurava-se no país um
              quadro político de virtual equilíbrio de forças entre projetos
              sociais opostos de esquerda e direita para sair da crise, com
              divisões internas em ambos os campos. A grande burguesia alemã,
              desde a derrota na guerra, havia, aparentemente, convertido-se à
              democracia da Constituição de Weimar. Mas, ante o impasse que
              punha em risco seus interesses, não demorou para desvencilhar-se
              dos princípios de que há pouco fazia profissão de fé.
              Reposicionou finanças e meios de comunicação em favor daquele
              emergente e outrora bizarro movimento de extrema direita que
              conseguia mobilizar a insegurança da classe média e o terror dos
              desempregados de retornarem à miséria, exigindo vingança
              nacional, captura de "espaço vital" para a Alemanha e
              unidade germânica contra raças "inferiores" e os
              bolchevistas. De outro lado, o sectarismo e a miopia política das
              esquerdas alemãs não as permitiu unirem-se para barrar a
              vitória eleitoral do Partido Nazista em 1933. Hitler chegou ao
              poder pelas vias formais de uma democracia parlamentarista,
              demonizou a oposição mediante a manipulação do incêndio do
              Reichstag, promoveu a reforma da Constituição e, assim, mediante
              outorga parlamentar, obteve hipertrofia de poderes. Muitas
              variantes de movimentos fascistas, que já vinham tomando fôlego
              desde meados da década de vinte (na Itália, Portugal, Japão
              etc.), disseminaram-se então pela Europa: a "Guarda de
              Ferro" romena, a "Cruz em Seta" húngara, a
              "Falange" espanhola, a Croix de Feu francesa, a
              "União de Fascistas" britânica, etc., para não falar
              de congêneres menos "respeitáveis" na América Latina.
              A jovem República espanhola, nascida em 1931, foi esmagada na
              Guerra Civil (1936-1939) vencida pela coalizão direitista
              comandada pelo general Francisco Franco, proporcionando uma
              antevisão do que seria a segunda Guerra Mundial que, é claro, a
              trôpega Liga das Nações não conseguiu evitar. O mundo, a
              partir da década de trinta, havia se tornado desolador, e a
              desolação só iria aumentar até 1945. O nazismo e os demais
              fascismos legislaram e agiram contra a Humanidade, praticaram
              políticas racistas, xenófobas e imperialistas, dividiram pessoas
              e populações entre as que deveriam viver e as que precisariam
              ser abolidas, tentaram o extermínio, por métodos industriais, de
              povos inteiros, e levaram sessenta milhões de seres humanos a
              morrerem durante a guerra que deflagraram. Esse período produziu,
              com brutalidade nunca antes imaginada, a segunda grande crise dos
              Direitos Humanos, desde a Restauração européia de 1815-1830, e
              teve, como se sabe, resultados muito mais funestos que ela. Não
              porque esses Direitos estivessem, até então, sendo respeitados -
              a própria luta histórica por sua conquista demonstra o
              contrário. É apropriado, contudo, falar-se numa grande crise dos
              Direitos Humanos nessa época, tanto pela extensão, intensidade e
              atrocidade das violações ocorridas, como pela afirmação de uma
              postura de negar validade à postulação de titularidade dos
              Direitos Humanos para todos os seres humanos. Isso afastava tanto
              a noção de que todas as pessoas são naturalmente titulares de
              direitos (visão jusnaturalista), como as várias concepções que
              consideram essa titularidade como resultado do processo histórico
              de conquistas sociais. Negado isso, quaisquer atentados aos
              Direitos Humanos podem ser perpetrados sem subterfúgios. Esta
              expressão - sem subterfúgios - talvez dê uma das chaves para a
              compreensão da natureza específica daquela crise dos Direitos
              Humanos. Não há mais necessidade de "justificar"
              violações mediante recursos da racionalidade, ainda que
              racionalidade de fancaria, como era o padrão anterior. Todos os
              que, real ou supostamente, se interpuserem ao objetivo eleito -
              salvação da raça, redenção da pátria etc. - tornam-se
              simplesmente obstáculos a serem removidos. Não são humanos ou,
              se o forem, são de uma espécie inferior. Na hipótese mais
              benéfica, são inassimiláveis. São, em todo caso, pouco mais
              (ou pouco menos) que animais - portanto, descartáveis: judeus,
              comunistas, social-democratas, sindicalistas, dissidentes
              católicos e protestantes, ciganos, deficientes mentais, eslavos,
              balcânicos e helênicos não-colaboracionistas, etc.. Esse
              irracionalismo foi adequadamente simbolizado pela célebre
              exclamação necrófila criada pelo general Millán Astray, que se
              tornou divisa dos fascistas espanhóis: Abajo la inteligencia!
              Viva la muerte! A proximidade dos fatos históricos pode tornar a
              narração redundante. Contudo, há o registro: a barbárie teve
              beneficiários. Em dezembro de 1997, a direção do sindicato de
              metalúrgicos da empresa alemã IG METAL denunciou que a
              DAIMLER-BENZ AG, maior companhia industrial do país, e a BOSCH,
              fabricante de componentes eletrônicos e automobilísticos,
              tiveram lucros com a utilização de mão de obra escrava durante
              a Segunda Guerra Mundial. Segundo o sindicato, no final do
              conflito a DAIMLER tinha 25.000 trabalhadores escravos. A SIEMENS
              AG, outra grande empresa alemã, também é acusada de
              beneficiar-se de trabalho escravo naquele tempo. No primeiro
              semestre de 1998, após anos de pressões internacionais, os
              bancos suíços reconheceram que, valendo-se da neutralidade desse
              país na guerra, participaram de operações sigilosas para
              receberem depósitos nazistas de valores confiscados de
              prisioneiros, principalmente judeus, mortos em campos de
              extermínio. Mais uma notícia: em 7 de julho de 1998, a
              indústria automobilística VOLKSWAGEN, após ameaçada de
              processo por judeus húngaros, anunciou por seu porta-voz, senhor
              Bernd Graef, que criaria um fundo para indenizar a mão de obra
              escrava que utilizou em sua principal unidade durante a Segunda
              Guerra Mundial, à época instalada em Wolfsburg. Os escravos eram
              adolescentes retirados do campo de concentração de Auschwitz, na
              Polônia, transportados para aquela empresa. Ao tornar público o
              anúncio, o senhor Graef explicou que a Volkswagen foi uma das
              doze mil empresas alemãs que usaram trabalho escravo durante
              aquela época(187). Reconstrução, Ampliação e
              Contradições dos Direitos Humanos Terminada a guerra, foi
              criada, em 26 de junho de 1945, pela Carta de São Francisco, a
              Organização das Nações Unidas, retomando o caminho
              interrompido da extinta Liga das Nações, agora com mais
              amplitude. Desde o nascimento, a ONU não é um organismo
              democrático: ficou assegurado ao pequeno grupo de Estados com
              assento permanente no Conselho de Segurança o controle das
              decisões pelo exercício do direito de veto. Porém, ante o
              balanço aterrorizante que os vencedores da guerra fizeram das
              atrocidades dos vencidos, impôs-se à comunidade internacional o
              resgate das noções de Direitos Humanos que haviam sido
              pisoteadas até recentemente. A Carta de São Francisco, logo no
              seu artigo 1º, colocou como preceitos, dentre outros, os
              seguintes: "Desenvolver relações entre as nações,
              baseadas no respeito ao principio da igualdade de direitos e da
              autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas
              ao fortalecimento da paz universal; conseguir uma cooperação
              internacional para resolver os problemas internacionais de
              caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
              promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às
              liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça,
              sexo, língua ou religião...". Iniciaram-se, então, os
              trabalhos que redundaram na "Declaração Universal dos
              Direitos do Homem", adotada e proclamada pela Resolução
              número 217 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de
              dezembro de 1948. Não cabe a este trabalho analisar essa
              "Declaração", pois ela e outros importantes
              instrumentos constituem, precisamente, o objeto de estudo dos
              demais capítulos deste livro. Vai, apenas, o seguinte registro
              geral: é considerado que, no plano internacional, a
              "Declaração de 1948" inaugurou uma concepção
              contemporânea de Direitos Humanos, na medida em que integrou os
              direitos civis e políticos, que vinham se desenvolvendo desde o
              século XVIII, especialmente após a "Declaração"
              francesa de 1789, aos direitos econômicos, sociais e culturais,
              demandados nos séculos XIX e XX pelo movimento operário, que
              foram valorizados particularmente após a "Declaração"
              russa de 1918. O cerne dessa nova concepção consiste no
              reconhecimento de que compõem o âmbito dos Direitos Humanos
              todas as dimensões que disserem respeito à vida com dignidade -
              portanto, em Direito, deixou de fazer sentido qualquer
              contradição, ou hierarquia, ou "sucessão"
              cronológica entre os valores da liberdade e da igualdade. Os
              Direitos Humanos conformam uma unidade universal, indivisível,
              interdependente e interrelacionada, idéia reiterada na
              "Declaração e Programa de Ação de Viena", de 25 de
              junho de 1993, com apoio do Brasil. Na medida em que são tomados
              como universais, isto é, inerentes a todas as pessoas, os
              Direitos Humanos exigem duas consequências. De um lado, apontam
              para a gradativa revisão da noção tradicional de soberania
              absoluta de cada país: sendo os Direitos Humanos tema de
              legítimo interesse de todas as nacões, que não se circunscreve
              à jurisdição interna de cada Estado, o Direito preocupa-se com
              as hipóteses em que podem ser admitidas intervenções
              supranacionais no plano interno de cada país nesta matéria. No
              dizer de PEDRO NIKKEN(188): "Se os direitos humanos limitam o
              exercício do poder, não se pode invocar a atuação soberana do
              governo para violá-los ou impedir sua proteção internacional.
              Os direitos humanos estão acima do Estado e de sua soberania, e
              não pode ser considerado violação ao princípio da
              não-intervenção quando se põem em movimento os mecanismos
              organizados pela comunidade internacional para sua promoção e
              proteção". De outro lado, similarmente, desenvolve-se a
              idéia de que o indivíduo, como sujeito de direitos, deve ter os
              seus Direitos Humanos protegidos também na esfera internacional.
              Desde o pós-guerra já foram adotados cerca de uma centena de
              instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos,
              entre Declarações e Tratados(189). Multiplicaram-se, também, as
              instituições e mecanismos internacionais de proteção dos
              Direitos Humanos, quase sempre criados por tratados
              internacionais. Atualmente já são mais de quarenta. Merecem
              destaque, por sua importância, a Corte européia e a Corte
              Interamericana de Direitos Humanos, esta última criada pelo Pacto
              de San José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, ratificado
              pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. Ao mesmo tempo em que foram
              resgatados e integrados, alguns Direitos Humanos - por sinal,
              muito antigos - foram também, pela primeira vez, levados a
              sério. Já na época da criação da ONU e, com mais ênfase nas
              décadas de cinquenta e sessenta, vigorosas lutas de libertação
              nacional obrigaram a que o velho direito à autodeterminação dos
              povos, tão proclamado quanto violentado com arrogância pelas
              potências colonialistas, passasse, finalmente, da teoria à
              prática. Não por dádiva da comunidade internacional - que o
              digam, dentre outros, os povos da Índia, Indochina, Argélia,
              Congo, Etiópia, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Zimbábue e,
              ainda neste final de século, de Timor Oriental. Mesmo após
              subscreverem a Carta de São Francisco e a
              "Declaração" de 1948, as velhas metrópoles
              colonialistas continuaram remetendo tropas e armas para tentar
              esmagar essas lutas e, em praticamente todos os casos, só se
              retiraram após derrotadas por esses povos. Ademais, nas últimas
              décadas vem se desenvolvendo o que se convencionou chamar de
              direitos da solidariedade ou direitos difusos da Humanidade
              inteira, tais como o direito ao desenvolvimento, direito à paz,
              direito ao meio ambiente sadio e equilibrado etc.. Também neste
              caso não seria necessária uma pesquisa muito longa para
              evidenciar que o processo social tendente a alcançar a vigência
              real destes direitos está longe de ser como um piquenique numa
              ensolarada manhã de domingo. Embora digam respeito a temas que os
              modismos trataram de introduzir em todos os salões, interesses
              econômicos poderosíssimos opõem-se a eles. Ao longo da segunda
              metade do século XX, a grande maioria dos países aderiu aos
              instrumentos internacionais do sistema global de proteção dos
              Direitos Humanos, além de celebrarem pactos e convenções
              regionais (Europa, África, Américas, etc.) com o mesmo
              propósito. Quase todos os países do planeta incorporaram às
              suas Constituições e disposições infra-constitucionais normas
              na mesma direção. Isto poderia ser um retrato a cores do melhor
              dos mundos, se o direito positivo fosse o retrato fiel do mundo.
              Se, no plano jurídico, a antiga contradição entre a liberdade
              (individualista) e a demanda de igualdade real encontrou caminhos
              para ser conceitualmente superada, é fácil constatar que nem
              mesmo no plano jurídico essa "superação" foi
              incorporada - basta olhar para os compêndios de doutrina que
              insistem em qualificar os direitos sociais como meramente
              "programáticos" (não exigíveis...), ou para as normas
              legais que os tratam efetivamente dessa maneira ou, ainda, para os
              tribunais que, quase sem exceções, acatam esse entendimento.
              Não é sem motivos que aquela contradição, malgrado superada
              conceitualmente, persiste com tanta força no interior do próprio
              Direito: é que ela não foi ainda superada no terreno mais
              palpável e mais sensível da vida. Aquela contradição persiste
              na sociedade. A solução jurídico-conceitual concebida não
              corresponde à sua efetividade social. O problema não reside no
              conceito, reside na realidade. Configura-se uma situação em que,
              entre dispor formalmente de instrumentos jurídicos para a
              proteção dos Direitos Humanos e efetivamente levá-los à
              prática, medeia, com cansativa freqüência, uma distância
              trágica - que se nutre de visões conservadoras de mundo,
              "razões de Estado", interesses de classe e de grupos,
              preconceitos irracionais persistentes, ou "resignação"
              objetivamente cúmplice. Na medida em que a contradição não for
              também superada na própria sociedade em que vivem as pessoas
              reais, será preciso atentar com cuidado se aquela fórmula
              conceitual unificadora, tão placidamente aquiescida hoje por
              todos os Estados, não se converterá em novo estratagema de
              ilusão social ou em mecanismo de auto-ilusão. Isto já aconteceu
              outras vezes no passado, não chegaria a ser propriamente novo na
              história do Direito. Não se trata de hipótese especulativa. A
              dinâmica da economia mundial nas últimas décadas tornou
              inquietante o futuro dos Direitos Humanos. Longe de reduzir a
              desigualdade social, manteve-a e tende a aumentá-la, repondo a
              contradição entre uma "igualdade" (meramente
              jurídica) reservada aos de baixo e a liberdade econômica (esta,
              real) das elites. A ciência, aplicada intensivamente à
              produção (informática, robotização, microeletrônica,
              química fina, novos materiais, etc.) aumentou a produtividade do
              trabalho. Mas, por falta de apropriação social desse processo,
              em vez de ampliar as horas de lazer para desfrute humano, ampliou
              o desemprego - agravado pela crise econômica. Em 1996 já
              existia, no planeta azul a que chamamos Terra, UM BILHÃO de
              desempregados ou subempregados - cerca de 30 % da força de
              trabalho mundial(190) . No lugar do antigo desemprego cíclico,
              que acompanhava as crises cíclicas, surgiu a categoria do
              desemprego estrutural, isto é, permanente. Aumentou a liberdade
              do capital, agora é "global". E diminuiu a liberdade
              dos trabalhadores: para protelar o desemprego, submetem-se a
              condições deploráveis de salário e trabalho - o que, por sua
              vez, aumenta mais a liberdade do capital para
              "flexibilizar" a bel-prazer ("precarizar") as
              relações de trabalho. Com mãos desembaraçadas, organiza o
              ataque a direitos que já se pensava consolidados há muito tempo:
              primeiro, os direitos sociais retrocederam a uma situação de
              risco, em muitos casos retrocederam mesmo de fato, e agora
              começam a retroceder na legislação. Nesse caso, é apropriado
              dizer que o movimento do Direito "retrata" o movimento
              da realidade. Quais Direitos Humanos restarão para multidões
              descartadas da economia, do consumo e do mercado? Continuamos
              convivendo com a velha contradição dos tempos da primeira
              Revolução Industrial: nunca a ciência, a técnica e os meios
              produtivos dispuseram de tantas e tão concretas possibilidades
              para colocar um fim a velhos males (fome e subnutrição,
              moléstias infeciosas antigas, carência de habitação,
              distribuição desigual da educação, etc.), mas a triunfante
              lógica da produção para o mercado e para o lucro privado impede
              que se libere o uso social dessas possibilidades extraordinárias.
              Socializar prejuízos, privatizar lucros - a velha fórmula voltou
              a impor-se com fôlego renovado na crise capitalista mundial que
              fechou o século XX. O "neoliberalismo" assemelha-se
              cada vez mais ao liberalismo ortodoxo dos primeiros tempos. Os
              direitos civis também não estão a salvo. Apesar de avanços em
              alguns países em relação à igualdade de gêneros ou aos
              direitos de certas minorias mais organizadas, é certo que as
              garantias dos direitos individuais não são as mesmas para todos,
              ou o são nas leis, mas é de realidade que importa falar. Quem
              são as vítimas mais usuais de agressão policial, detenção
              arbitrária, tortura, aprisionamento além da pena, preconceito,
              discriminação no emprego, no acesso à educação, na
              representação política, e assim por diante? As mesmas de
              duzentos anos atrás. Fortalece-se, por toda parte, o cinismo de
              elites tendente a qualificar os trabalhadores - principalmente os
              excluídos do mercado e do consumo - mais ou menos como categoria
              inferior de humanos. Às vezes, isso manifesta-se de modo
              dissimulado. Outras vezes, extravasa como nostalgia de soluções
              fascistas contra os que são encarnados como ameaça: migrantes,
              desempregados, grupos étnicos ou regionais, presidiários,
              crianças de rua, miseráveis em geral etc.. A área decisiva das
              relações humanas no mercado vem minando as bases de existência
              dos Direitos Humanos. E, no plano ideológico, enquanto os
              porta-vozes mais toscos do "pensamento único"
              neoliberal investem abertamente contra os Direitos Humanos, os
              arautos mais sofisticados do neoliberalismo dedicam-lhes
              condescendência apropriada a romantismos fora de moda. É como se
              tivessem concluído que não há mais necessidade de combater os
              Direitos Humanos nas instâncias da racionalidade e dos valores,
              pois tornou-se mais eficiente "acatá-los" para melhor
              desacatá-los. Mas a História não chegou ao fim. Se o discurso
              dos Direitos Humanos mantiver-se como crítica da sociedade,
              cumprirá papel transformador. O fala do conformismo, malgrado sua
              força alienadora, tem limites na própria realidade que busca
              conservar. Os que, em todas as épocas, combateram pelos Direitos
              Humanos nunca deixaram de saber quão árdua e sempre inacabada
              foi sua conquista. Fará bem aumentar a consciência dos
              obstáculos a superar. Isso sempre conduziu a que caminhos novos
              fossem iluminados e a que florescessem forças que estavam
              guardadas no fundo do peito. Por quê seria agora diferente? ____________ (1) Não é o caso de
              se discutir aqui os modos de existência assumidos pelo feudalismo
              na Ásia. (2) As periodizações são imprecisas, há
              divergências entre os historiadores e variações de país para
              país. Mas parece haver certo consenso no sentido de que, na maior
              parte da Europa ocidental, o feudalismo iniciou seu muito
              prolongado declínio em torno do século XII. (3) "O senhor
              de terras característico das áreas de servidão era assim um
              nobre proprietário e cultivador ou um explorador de enormes
              fazendas. A vastidão desses latifúndios era espantosa: Catarina,
              a Grande, deu entre 40 e 50 mil servos aos seus favoritos; os
              Radziwill da Polônia tinham fazendas tão grandes quanto metade
              da Irlanda; Potocki possuía três milhões de acres na Ucrânia ;
              os Esterhazy húngaros (patronos de Haydn) possuíam em certa
              época sete milhões de acres. Eram comuns as fazendas de várias
              centenas de milhares de acres. Embora muitas vezes descuidadas,
              primitivas e improdutivas, elas forneciam rendimentos
              principescos. O grande nobre espanhol podia, conforme observou um
              visitante francês sobre as desoladas fazendas Medina Sidonia, '
              reinar como um leão na selva e espantar com seu urro tudo que
              dele se aproximasse', mas nunca estava sem dinheiro, mesmo pelos
              padrões dos milordes britânicos'." (Eric J. Hobsbawm, A Era
              das Revoluções - 1789/1848. 9. ed., São Paulo, Paz e Terra,
              1996, p. 31-32) (4) "Corvéia": designação atribuída
              aos dias de trabalho gratuito que os servos deviam ao senhor da
              terra. (5) Direito de "pernada" ou "jus primae
              noctis": direito dos senhores de manterem relação sexual
              com as jovens aldeãs de seu feudo na noite em que elas se
              casassem. (6) "Quê adianta ao homem ganhar o mundo inteiro,
              mas perder a sua alma ?" (Mateus, 16-26). "Se você quer
              ser perfeito, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres, e
              você terá um tesouro no céu (idem, 19-21)."E digo ainda:
              é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que
              um rico entrar no Reino de Deus" (ibidem, 19-24). (7) Robert
              Heilbroner, História do Pensamento Econômico, São Paulo, Nova
              Cultural, 1996, p. 25. (8) "Florença, a cidade que Bocaccio
              menciona, perdeu 100.000 habitantes; Londres cerca de 200 por dia,
              e Paris, 800 por dia. Na França, Inglaterra, Países Baixos e
              Alemanha, entre um terço e metade da população foi dizimada
              !...Tão grande foi a mortandade que uma nota de desespero pouco
              comum se insinua nos escritos de um monge irlandês da época: ' A
              fim de que meus escritos não pereçam juntamente com o autor, e
              este trabalho não seja destruído...deixo meu pergaminho para ser
              continuado, caso algum dos membros da raça de Adão possa
              sobreviver à morte e queira continuar o trabalho por mim
              iniciado'". (Leo Huberman, História da Riqueza do Homem, 21.
              ed., Rio de Janeiro, LTC-Livros Técnicos e Científicos, p. 49)
              (9) Leo Huberman, obra citada, p. 49-50. (10) Cf. Era da
              Calamidade, série História em Revista, vários autores, Rio de
              Janeiro, Abril Livros, p. 39. (11) Na França do século XVIII, os
              termos bourgeois e citoyen já refletiam essa diferença. (12) Leo
              Huberman, obra citada, p. 51-52. (13) Idem, p. 147. (14) Michel
              Miaille, Introdução Crítica ao Direito, 2. ed., Lisboa,
              Editorial Estampa, 1994, p. 264. (15) "A palavra 'urbano' é
              certamente ambígua. Ela inclui as duas cidades européias que,
              por volta de 1789, podem ser chamadas de genuinamente grandes
              segundo os nossos padrões - Londres, com cerca de um milhão de
              habitantes, e Paris, com cerca de meio milhão - e umas 20 outras
              com uma população de 100 mil ou mais: duas na França, duas na
              Alemanha, talvez quatro na Espanha, talvez cinco na Itália (o
              Mediterrâneo era tradicionalmente o berço das cidades), duas na
              Rússia, e apenas uma em Portugal, na Polônia, na Holanda, na
              ãustria, na Irlanda, na Escócia e na Turquia européia. Mas o
              termo 'urbano' inclui também a multidão de pequenas cidades de
              província , onde se encontrava realmente a maioria dos habitantes
              urbanos." (Eric J. Hobsbawm, obra citada, , p. 27) (16) Jean
              Tulard, História da Revolução Francesa, São Paulo, Paz e
              Terra, 1990 (edição com apoio do Ministério da Cultura da
              França), p. 36. (17) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 74-75.
              (18) Alexis de Tocqueville, cf. Cambridge Modern History, v. VII,
              p. 72, reproduzido por Leo Huberman, obra citada, p. 146. (19)
              Georges Lefebvre, em seu clássico 1789-O Surgimento da
              Revolução Francesa, (São Paulo, Paz e Terra, 1989), registra
              que, nessa época, todos os bispos já são nobres (p. 43). Refere
              ainda (p. 37) que as propriedades fundiárias do clero ainda
              englobavam provavelmente uma décima parte do reino. (20) George
              Lefebvre, obra citada, p. 38. (21) Idem, p. 39-40: "Outro
              tipo de nobreza se justapôs à nobreza de espada, à velha, ou
              supostamente tal, nobreza. O rei pode enobrecer e sempre
              recompensou dessa forma os seus servidores; nos séculos XVI e
              XVII, tendo adquirido o costume, para obter dinheiro, de vender as
              funções públicas - sobretudo as judiciais, mas também as
              financeiras, militares, administrativas e municipais - ocorreu-lhe
              a idéia de enobrecer alguns desses cargos ou 'offices', para
              elevar seu preço. A nobreza hereditária passou a ser outorgada a
              membros dos tribunais judiciais parisienses - Parlamento, Tribunal
              de Contas, Tribunal de Ajudas, Grande Conselho, Magistratura,
              Tribunal da Moeda - e a membros de alguns tribunais de província;
              nos outros, a nobreza concedida a título pessoal tornava-se
              transmissível após certo tempo de exercício da função: era a
              nobreza de toga". (22) "No campo, predomina um
              proletariado de criados, jornaleiros (diaristas), debulhadores e
              vinhateiros que conta apenas com o salário para se sustentar e
              representa, pelo menos, 40% da população rural. É o primeiro
              setor atingido pela crise". (Jean Tulard, obra citada, p.
              35). (23) José II (Áustria), Frederico II (Prússia), Catarina
              II (Rússia), Marquês de Pombal (Portugal) etc.. (24) Albert
              Soboul, A Revolução Francesa, 7. ed., Rio de Janeiro, Bertrand
              Brasil, 1989, p. 13. (25) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 73.
              (26) Emmanuel Joseph Sieyès, in: Quê é o Terceiro Estado? (A
              Constituinte Burguesa), 2. tiragem, Rio de Janeiro, Liber Juris,
              1988, p. 63-69, 89-93, 103-104, 113, 132-133 e 135. (27)
              Divergiam, por exemplo, quanto à função social, melhor dizendo,
              quanto à valoração moral que atribuíam à propriedade privada.
              Outro exemplo: Hobbes, Locke e Rousseau referem-se a um contrato
              social, mas concebendo-o, cada um deles, de modo
              significativamente diverso. (28) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p.
              36. (29) "Direito" e "Justo" podem
              expressar-se por uma mesma palavra grega: "Dikaion".
              (30) Jean Tulard, obra citada, p. 24. (31) Montesquieu, por
              exemplo, indica que as leis não surgem da mera vontade humana,
              mas decorrem de condições sociais, políticas, climáticas etc.
              - em suma, de um direito natural mais próximo do sentido que lhe
              atribuía Aristóteles; ao passo que Rousseau distancia-se dessa
              noção, enfatizando a natureza especificamente humana e o acordo
              entre os indivíduos (o contrato social) que funda a sociedade.
              (32) Michel Miaille, Introdução Crítica ao Direito, 2. ed.,
              Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 265. (33) Paulo Sandroni
              (consultoria), Dicionário de Economia, São Paulo, Nova Cultural,
              1985, p. 173. (34) Cf. Eric Hobsbawm, Ecos da Marselhesa. 9. ed.,
              São Paulo, Schwarcz, 1996, p. 27. Hobsbawm ainda registra (p. 38
              da mesma obra) que o próprio abade Sieyès era "um paladino
              de Adam Smith". Também José Ribas Vieira, no estudo de
              prefácio à edição brasileira já mencionada de "Quê é o
              Terceiro Estado? ", anota (p. 38) a influência do pensamento
              econômico de Adam Smith sobre o abade Sieyès. (35) Síntese a
              partir de: Adam Smith, A Riqueza das Nações, São Paulo, Nova
              Cultural, 1996; Paulo Sandroni, obra citada; Robert Heilbroner,
              História do Pensamento Econômico, mesma editora, 1996, p. 43-72;
              e Eric J. Hobsbawm, A Era das Revoluções, p. 259. (36) Georges
              Lefebvre, 1789-O Surgimento da Revolução Francesa, São Paulo,
              Paz e Terra, 1989, p. 71. (37) Albert Soboul, A Revolução
              Francesa, 7. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, p. 9.
              (38) O Parlamento aristocrático de Paris (suprimido por Luís XV,
              mas imprudentemente restabelecido por Luís XVI), recusou-se a
              registrar, em março de 1776, os editos do rei que visavam abolir
              as corporações de ofícios e a corvéia real e instituir um
              imposto territorial a ser cobrado de todos os proprietários,
              pequenos ou grandes. Eis o indignado protesto desse órgão de
              privilegiados: "Todo sistema que, sob uma aparência de
              humanidade e benevolência, tendesse, numa monarquia bem ordenada,
              a estabelecer entre os homens uma igualdade de deveres e a
              destruir as distinções necessárias, levaria em breve à
              desordem, seqüela inevitável da igualdade absoluta, e
              acarretaria a derrocada da sociedade...Quais não seriam então os
              perigos de um projeto produzido por um sistema inadmissível de
              igualdade, o primeiro efeito do qual é confundir todas as Ordens
              do Estado ao lhes impor o jugo uniforme do imposto territorial !
              (...) O serviço individual do clero é desempenhar todas as
              funções relativas à instrução, ao culto religioso e ajudar a
              aliviar o sofrimento dos infelizes por meio de esmolas. O nobre
              dedica seu sangue à defesa do Estado e assiste com seus conselhos
              ao soberano. A última classe da nação, que não pode prestar ao
              Estado serviços tão elevados, cumpre seu dever para com ele
              através dos tributos, da indústria e dos trabalhos
              braçais." (Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 28-29) (39) As
              "cartas régias" (lettres de cachet ) eram mandados
              expedidos diretamente pelo rei para autorizar cobranças ou
              determinar a prisão sumária de pessoas. (40) Georges Lefebvre,
              obra citada, p. 69. (41) Há imprecisão de cifras entre os
              historiadores, pois as estatísticas eram precárias na França
              setecentista. Mas os números disponíveis indicam que os nobres e
              seus familiares somavam, no máximo, 2,5 % de uma população
              entre 23 e 25 milhões de habitantes; e o conjunto do clero não
              devia chegar a 2%. (42) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 44-45; e
              Georges Lefebvre, obra citada, p. 84. Este último autor registra
              que o Terceiro Estado chegou a eleger como seus representantes,
              além da esmagadora maioria burguesa, alguns nobres e padres
              desprezados por suas ordens de origem, como o abade Sieyès. (43)
              Cf. Albert Soboul, obra citada, p. 41. (44) Taine, citado por Jean
              Tulard, obra indicada, p. 44. (45) "Jeu de Paume": era a
              sala do "jogo de pela" do Hôtel des Menus, onde
              reuniram-se naquele dia os deputados burgueses. Prestaram o
              "...juramento solene de não se separarem jamais e de se
              reunirem sempre que as circunstâncias o exigirem, até que a
              Constituição do reino seja estabelecida..." (46) Cf.
              Georges Lefebvre, obra citada, p. 105. (47) Esta cifra sofre
              variações mínimas nos relatos. Tulard (obra citada, p. 57)
              indica 30.000 fuzis e Lefebvre (obra citada, p. 127) refere-se a
              32 mil. Seja como for, é bastante: moravam em Paris cerca de 500
              mil pessoas em 1789. Atualizando-se essa proporção, por exemplo,
              para a cidade de São Paulo nos dias de hoje (10 milhões de
              habitantes) isso eqüivaleria a 600.000 fuzis. Não se trata,
              evidentemente de isolar e superestimar o fato. Mas, considerando
              uma população mobilizada e enfurecida com os governantes,
              podemos avaliar o quanto essa apreensão de armas significou de
              impulso para a Revolução. (48) Cf. Segundo Eric Hobsbawm (obra
              indicada, p. 83), 300.000 franceses emigraram entre 1789 e 1795.
              (49) Seu recolhimento duraria pouco. Como a carestia continuasse a
              galope, uma passeata de 20.000 pessoas, composta principalmente de
              mulheres famintas, marchou em 5 de outubro de Paris para Versalhes
              e forçou alguns deputados a acompanharem-nas para pedir pão ao
              rei. A tradição oral cunhou que a rainha Maria Antonieta teria
              respondido: "Não há pão? Que comam brioches". Ao
              raiar do dia 6, o cordão de manifestantes, já muito exaltado,
              invadiu o palácio, chocou-se com os guarda-costas (alguns foram
              mortos) e arrombou a entrada dos aposentos da rainha, que
              refugiou-se nos aposentos do rei. Do balcão dourado do pátio de
              mármore, Luís XVI acalmou os manifestantes, assentindo aos
              apelos da multidão para que se transferisse com a família real
              para Paris, para "cuidar" do povo. Na mesma tarde, com
              charretes transportando todo o trigo e farinha estocados no
              palácio, e cercado pela multidão, o rei mudou-se para Paris -
              como se sabe, para sempre... (50) Síntese e excertos do texto
              integral da "Declaração" a partir da tradução de
              Jorge Miranda in Textos Históricos do Direito Constitucional,
              Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 57-59. (51)
              Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992,
              p. 93. (52) Ou: "imprescritíveis", conforme a
              tradução que consta nas obras mencionadas de Lefebvre e Bobbio.
              (53) Silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional
              Positivo, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p.
              265-266. (54) Cf. Georges Lefebvre, obra indicada, p. 177-178.
              (55) Georges Lefebvre, obra citada, p. 182. (56) Albert Soboul,
              obra citada, p. 48. (57) Albert Soboul, obra citada, p. 44-45.
              (58) Silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional
              Positivo, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 265.
              (59) Eric J. Hobsbawm, A Era das Revoluções, 9. ed., São Paulo,
              Paz e Terra, 1996, p. 77. (60) Jean Tulard, obra citada, p. 83-84.
              (61) Albert Soboul, obra indicada, p. 46. (62) Jean Tulard, obra
              mencionada, p. 112. (63) Albert Soboul, obra citada, p. 35. (64)
              Albert Soboul, idem p. 43. (65) Jean Tulard, obra citada, p. 365.
              (66) Idem, p. 106. (67) Ibidem, p. 108. (68) Eric J. Hobsbawm,
              obra citada, p. 83. (69) Literalmente, os que não vestiam os
              "culottes" (calções com meias altas usados pelos
              ricos). Eram um movimento popular socialmente heterogêneo,
              formado principalmente por artesãos, pequenos lojistas e
              profissionais de classe média. Traziam consigo os trabalhadores
              assalariados (que, na época, ainda não dispunham de perspectiva
              política independente). Unificava-os o ódio comum à nobreza e
              aos burgueses ricos e açambarcadores. O ideal social dos
              "sans culottes" enraizava-se na defesa da pequena
              propriedade artesanal e comercial, no patriotismo e no exercício
              da soberania popular. Desconfiavam da democracia representativa,
              reclamavam o controle dos mandatos e sua revogabilidade pelos
              eleitores. A partir de meados de 1793, desenvolveram nas "sections"
              de Paris formas muito ativas de democracia direta. (70) Mesmo
              nunca tendo sido atéia, a postura laica e liberal da Revolução
              jogou desde o início a Igreja Católica contra ela. Para não
              perder sua posição de religião dominante, a Igreja Católica
              opôs-se à liberdade religiosa proclamada na Declaração dos
              Direitos do Homem de agosto de 1789, Declaração essa que foi
              condenada pelo Papa como "ímpia". A oposição da
              Igreja à Revolução radicalizou-se após estas quatro outras
              medidas adotadas pela Assembléia Constituinte: a)
              nacionalização (novembro de 1789) e posterior venda pública da
              maioria dos imensos bens do clero, numa tentativa de resolver o
              enorme déficit público; b) abolição, em nome da liberdade
              individual, dos votos de clausura que as congregações
              monásticas impunham a seus membros (janeiro de 1790); c)
              instituição de uma Constituição Civil para o clero secular
              (julho de 1790) que, embora mantendo a primazia espiritual do
              Papa, retirava-lhe a jurisdição sobre a Igreja na França ao
              obrigar bispos e párocos a serem eleitos; d) determinação
              (novembro de 1790) no sentido de que bispos e padres deveriam
              fazer um juramento público de fidelidade à nação e às leis do
              país. O Papa, pelas proclamações pontifícias
              ("breves") de 11 de março e de 13 de abril de 1791,
              condenou solenemente os princípios da Revolução. Sobreveio
              então um cisma na Igreja francesa entre "juramentados"
              e "não-juramentados" (ou "refratários"). Os
              "não-juramentados", que foram maioria, passaram à
              militância contra-revolucionária. E os revolucionários
              lançaram-se a uma campanha de "descristianização":
              substituição de nomes cristãos por nomes laicos, culto à
              Razão, fechamento de igrejas "não-juramentadas" etc..
              Houve ocasiões que essa campanha degenerou em vandalismo contra
              objetos religiosos, igrejas e bispos. (cf. Albert Soboul, obra
              citada, p. 46-48; e Jean Tulard, obra citada, p. 96-100, 170, 213
              e 222). (71) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 86. (72) O
              conteúdo político das expressões "esquerda" e
              "direita" é, evidentemente, relativo ao contexto da
              época. Esses termos começaram a ser usados em 1789, nos debates
              da Assembléia Nacional Constituinte, quando os deputados
              favoráveis à manutenção do poder absoluto do rei de vetar leis
              sentaram-se à direita do presidente da sessão e os partidários
              da limitação desse poder pela vontade popular sentaram-se à
              esquerda. Essa toponímica política inicial logo evoluiu para
              designar os que queriam moderar o processo revolucionário, ou
              mesmo dá-lo por encerrado ("direita"); e os que
              entendiam ser inevitável sua ampliação ou aceleramento, sob
              pena de retorno do Antigo Regime ("esquerda"). Nas
              sucessivas fases do processo alguns personagens e correntes
              revolucionárias transitaram de posição. Por exemplo: os
              Girondinos, que expressavam principalmente os interesses da alta
              burguesia comercial, formaram inicialmente à esquerda mas, com a
              ascensão do movimento dos "sans culottes",
              deslocaram-se para a direita. Os Jacobinos (Robespierre, Marat,
              Saint-Just etc.), que constituíram o maior de todos os clubes
              políticos, eram rousseaunianos ardorosos, apoiavam-se
              principalmente na média burguesia, em aliança com as classes
              populares, e mantiveram-se quase sempre à esquerda, embora
              tivessem sofrido dissidências (à direita e à esquerda). Danton,
              que antes da Revolução fora advogado do Conselho do Rei,
              tornou-se em seguida jacobino destacado (inspirou, inclusive, a
              criação do Tribunal Revolucionário do período do
              "Terror"), inclinou-se para a direita em 1794, foi
              acusado de corrupção e terminou condenado à guilhotina.
              Surgiram, ainda, correntes minoritárias que - para o contexto -
              eram "extrema-esquerda": baseadas principalmente na
              "sans-culotterie" e portando reivindicações
              democrático-populares (Hébert, Jacques Roux) ou antecipadoras do
              socialismo moderno (Gracchus Babeuf), aliaram-se várias vezes aos
              Jacobinos contra a direita - o que não impediu os Jacobinos de
              também massacrá-los quando tentaram andar com as próprias
              pernas. Por fim, durante o período de radicalização
              revolucionária ("Terror") houve um setor de deputados
              conhecido como Marais (Pântano) que preferiu manter-se em
              posições discretas e pouco definidas (Boissy d'Anglas, o abade
              Sieyès etc.) e que terminou depois por unir-se com a direita para
              derrotar a "república jacobina" em julho de 1794 e
              articular o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte em 1799. Estes
              exemplos, é claro, não esgotam o complicado leque de tendências
              que foram se formando, fundindo ou dissolvendo durante os anos da
              Revolução. (73) No esforço de "descristianização",
              a Convenção Nacional havia repudiado o calendário cristão.
              Adotou um novo calendário, em que o "Ano I" da
              Revolução começava em 22 de setembro de 1792, o "Ano
              II" em 22.09.1793, e assim por diante. Os meses, contados
              também a partir de setembro, receberam nomes ligados à natureza:
              Vindimário (mês das vindimas), Brumário (mês de neblinas),
              Frimário (mês de geadas), Nivoso (de neves), Pluvioso (de
              chuvas), Ventoso (de ventos), Germinal (germinação das
              sementes), Floreal (mês das flores), Pradial (mês das
              pradarias), Messidor (mês das colheitas), Termidor (mês do
              calor) e Frutidor (mês das frutas). (74) Síntese e excertos dos
              textos das Constituições francesas de 1791 e 1793 a partir da
              tradução de Jorge Miranda, Textos Históricos do Direito
              Constitucional, Lisboa, Impresa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p.
              61-91. (75) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 87-88. (76) Cf. Jean
              Tulard, obra citada, p. 196. (77) Cf. Albert Soboul, obra citada,
              p. 57. (78) Emmanuel Joseph Sieyès, obra citada, p. 82. (79) Cf.
              Jean Tulard, obra citada, p. 207-215. (80) Albert Soboul, obra
              citada, p. 68. (81) Idem, p. 73. (82) Jean Tulard, obra indicada,
              p. 211. (83) Cf. Jean Tulard, obra mencionada, p. 246. (84) Jean
              Tulard, obra citada, p. 249. (85) Remanescentes dos jacobinos,
              cuja bancada ficava na parte mais alta ("Montanha") do
              anfiteatro da Convenção. (86) Cf. Jean Tulard, obra citada, p.
              255. (87) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 251. (88) Síntese,
              excertos e referências à Constituição de 1795 conforme Jean
              Tulard, obra citada, p. 255-259; e Albert Soboul, obra indicada,
              p. 83-84. (89) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 256. (90) Esta e
              as demais citações relativas à "Revolta dos Iguais"
              foram extraídas da obra mencionada de Jean Tulard, p. 278-282.
              (91) "Povo da França! Durante quinze séculos viveste
              escravo e, por conseguinte, infeliz. Há seis anos mal respiras,
              na expectativa da independência, da felicidade e da igualdade. A
              igualdade, primeira necessidade do homem e principal laço de toda
              associação legítima! Infeliz daquele que opuser resistência a
              um anseio tão forte! A Revolução Francesa é apenas o prelúdio
              de outra revolução muito maior, mais solene e que será a
              última. O povo passou por cima do corpo dos reis e dos padres
              coligados contra ele; fará o mesmo aos novos tiranos, aos novos
              tartufos políticos sentados no lugar dos antigos... Precisamos da
              igualdade não apenas registrada na Declaração dos Direitos do
              Homem e do Cidadão, a queremos no meio de nós, sob o teto de
              nossas casas. Sacrificamos tudo por ela, até fazemos tábula rasa
              para nos atermos apenas a ela. Que pereçam, se preciso for, todas
              as artes, desde que nos reste a igualdade real. A reforma agrária
              ou a partilha das terras foi o anseio instantâneo de alguns
              soldados sem princípios, de alguns povoados movidos pelo
              instinto, mais que pela razão. Queremos algo mais sublime e mais
              equitativo, o bem comum ou a comunidade dos bens! Não mais
              propriedade individual da terra, a terra não é de ninguém, os
              frutos são de todos... Desapareçam. finalmente, as revoltantes
              distinções entre ricos e pobres, grandes e pequenos, senhores e
              criados, governantes e governados ! Povo da França, abra os olhos
              e o coração à plenitude da felicidade: reconheça e proclame
              conosco a República dos Iguais!" (92) Eric J. Hobsbawm, obra
              citada, p. 92. (93) T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e
              Status, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 70. (94) Cf. Jean
              Tulard, obra citada, p. 224. (95) Procurados pelas polícias
              políticas de todo o continente, os revolucionários europeus
              uniram-se em sociedades secretas ritualizadas e hierarquizadas
              internamente, à semelhança do modelo de organização da
              Maçonaria. Essas irmandades "carbonárias", que
              surgiram inicialmente na Itália, mas rapidamente se espalharam
              por quase toda a Europa, faziam um amálgama de republicanismo
              jacobinista com reivindicações sociais inspiradas em Babeuf,
              adotavam métodos radicais de luta contra as monarquias, mas
              permaneceram quase sempre isoladas do povo. Isso levou ao fracasso
              as várias tentativas insurrecionais de que participaram -
              Nápoles em 1820, Piemonte em 1821, Rússia (os "dezembristas")
              em 1825, Emília Romagna em 1831 - exceto na Grécia, onde a luta
              pela independência contra o Império Otomano granjeou, a partir
              de 1821, vasto apoio popular. (96) Hobsbawm, Eric J., obra citada.
              (97) A "Revolução Gloriosa" de 1688 foi o coroamento
              de um longo processo histórico de disputas da aristocracia e da
              burguesia inglesas contra seus reis. Já em 1215, em pleno
              feudalismo, os barões ingleses rebelados impuseram ao rei João
              Sem Terra a "Magna Charta Libertatum", documento de
              restrições ao poder do soberano que, excetuados os servos,
              garantia a "todos os homens livres do reino" (nobres,
              grandes mercadores, eclesiásticos e burgueses das cidades)
              várias liberdades e garantias - a mais famosa delas, inscrita no
              artigo 39 daquele texto, foi antecessora do moderno "habeas
              corpus": proibia que homens livres fossem presos, exilados ou
              tivessem bens confiscados, "a não ser mediante um julgamento
              regular por seus pares ou conforme a lei do país". A
              "Magna Charta" foi confirmada dezenas de vezes por
              outros reis nos séculos seguintes, embora, após a Guerra das
              Duas Rosas (1455-1485), Henrique VII tenha recuperado a autoridade
              real sobre aquelas classes. Outro documento histórico no mesmo
              sentido foi a "Petition of Right", de 7 de junho de
              1628, pelo qual, em outra situação de confronto, os
              representantes da aristocracia, da burguesia e da Igreja,
              requereram ao rei que não fossem baixados tributos sem
              autorização do Parlamento, nem aplicadas penas de morte ou de
              mutilação sem o devido processo legal. O contencioso se
              reacendeu quando o rei Charles I (1625-1649), após
              desentendimentos sobre religião e impostos, dissolveu o
              Parlamento. Em 1640, os escoceses se revoltaram contra a
              anexação de seu país pela Inglaterra (ocorrida em 1603), e o
              mesmo rei convocou de novo o Parlamento para votar recursos
              necessários para sufocar a rebelião. O Parlamento recusou-se.
              Deflagrada a guerra civil, as forças do Parlamento, lideradas por
              Oliver Cromwell, venceram, proclamaram a república e executaram
              Charles I em 1649. Em 1660, houve a restauração da monarquia,
              que tentou reaver poderes absolutos, mas a resistência da
              burguesia e da aristocracia conduziu ao "Habeas Corpus
              Amendement Act ", de 1679, pelo qual esse instituto da "common
              law" tornou-se lei. As tensões com a monarquia prosseguiram
              até que, em 1688, a Revolução Gloriosa definiu a correlação
              de forças em favor do bloco burguesia-aristocracia liberal e
              produziu o "Bill of Right", que reiterou os direitos
              individuais, firmou a supremacia do Parlamento e instituiu a
              monarquia constitucional na Inglaterra. (98) Núcleos ou zonas
              industriais começaram a surgir em vários pontos da Europa
              continental (com mais atraso, alguns até na América do Norte),
              repetindo, com intensidade menor, o processo ocorrido na
              Inglaterra. Na última terça parte do século dezenove, foram
              descobertas novas fontes de energia que podiam ser aplicadas à
              indústria e aos transportes (petróleo e eletricidade),
              desenvolveram-se as indústrias química e de equipamentos de aço
              (no lugar do ferro) e generalizou-se o emprego da ciência na
              produção de mercadorias. Então, a industrialização
              intensificou-se aceleradamente na França, Bélgica, Holanda e
              Estados Unidos e, logo a seguir, também na Alemanha, Itália e
              Japão, configurando o que depois se convencionou chamar de
              "segunda Revolução Industrial" . (99) "Com
              efeito, o sujeito de direito é sujeito de direitos virtuais,
              perfeitamente abstratos: animado apenas pela sua vontade, ele tem
              a possibilidade, a liberdade de se obrigar, designadamente de
              vender a sua força de trabalho a um outro sujeito de direito. Mas
              este ato não é uma renúncia a existir, como se ele entrasse na
              escravatura; é um ato livre, que ele pode revogar em determinadas
              circunstancias. Só uma 'pessoa' pode ser a sede de uma atitude
              destas. A noção de sujeito de direito é, pois, absolutamente
              indispensável ao funcionamento do modo de produção capitalista.
              A troca das mercadorias, que exprime, na realidade, uma relação
              social - a relação do proprietário do capital com os
              proprietários da força de trabalho - vai ser escondida por
              'relações livres e iguais', provindas aparentemente apenas da
              'vontade de indivíduos independentes'. O modo de produção
              capitalista supõe, pois, como condição do seu funcionamento, a
              'atomização', quer dizer, a representação ideológica da
              sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres. No
              plano jurídico, esta representação toma a forma de uma
              instituição: a do sujeito de direito. (...) Com efeito, se,
              diferentemente do escravo, o servo é um sujeito de direito, ele
              não é, no entanto, um sujeito de direito comparável, a fortiori
              equivalente àquele que o senhor incarna. Esta diferença é
              marcada pelo fato de nem as regras nem os tribunais lhes serem
              comuns. Plebeus e nobres pertencem a duas ordens diferentes. Que
              isto fique bem compreendido: a dois universos jurídicos. Em
              definitivo, não há medida comum entre estas duas pessoas, ou
              melhor, não há estatuto jurídico comum que sirva de
              equivalente, de medida. Não há, pois, 'sujeito de direito'
              abstrato que possa preencher esta função de denominador comum,
              de 'norma-medida'. (...)O servo não é pois livre de vender a sua
              força de trabalho, visto que ele está preso à terra e ligado ao
              senhor. Para que ele se torne assalariado, será necessário
              reconhecer-lhe um poder de direito abstrato de dispor da sua
              vontade e, para fazer isto, é necessário quebrar os vínculos
              feudais (...). Fica-se, pois, com a noção de que a categoria
              jurídica de sujeito de direito não é uma categoria racional em
              si: ela surge num momento relativamente preciso da história e
              desenvolve-se como uma das condições da hegemonia de um novo
              modo de produção. (...) É preciso compreender que, ao fazer
              isso, o novo sistema jurídico não cria ex nihilo uma pessoa
              nova. Pela categoria de sujeito de direito, ele mostra-se como
              parte do sistema social global que triunfa nesse momento: o
              capitalismo. É preciso, pois, recusar todo ponto de vista
              idealista que tenderia a confundir esta categoria com aquilo que
              ela é suposta representar (a liberdade real dos indivíduos). É
              preciso tomá-la por aquilo que é: uma noção histórica".
              (Michel Miaille, Introdução Crítica ao Direito, Lisboa,
              Editorial Estampa, 1994, p. 118, 119 e 121). (100) As crises
              agrícolas do feudalismo ou do mundo antigo originavam-se, via de
              regra, de perturbações climáticas, pestes da lavoura e do gado,
              ou de outras causas naturais inelutáveis que faziam a produção
              de gêneros despencar. Eram crises, portanto, geradas por súbita
              insuficiência de produção, gerando escassez. Diferentemente, no
              capitalismo as crises não advêm de falta de capacidade produtiva
              mas, bem ao contrário, de seu periódico excesso relativo -
              relativo ao mercado, é claro. Estas "crises cíclicas"
              (relativas a ciclos econômicos de superprodução), por mais
              conjunturais ou específicos que se apresentassem seus detonadores
              a cada vez, não puderam mais ser ignoradas pela Economia
              Política. Malgrado todo otimismo apologético liberal, sua
              recorrência acabou sendo reconhecida (e medida), a partir da
              segunda metade do século XIX, pelos próprios economistas
              liberais. Após a catastrófica crise iniciada em 1929, os países
              capitalistas, malgrado a resistência de liberais mais ortodoxos,
              adotaram mecanismos de planejamento e intervenção estatal na
              economia (boa parte inspirados na social-democracia emergente e
              nas idéias de Keynes), que a muitos pareciam capazes de abolir as
              crises cíclicas. Conseguiram amenizá-las por certo tempo - até
              que a dinâmica do mercado, no último quarto do século XX,
              retomasse forças para libertar-se desses embaraços. (101) Eric
              J. Hobsbawm, obra citada, p. 186-187. (102) T. H. Marshall,
              Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar Editores,
              1967, p. 72. (103) Ver nota n. 97. (104) M. J. Heale, A
              Revolução Norte-Americana, São Paulo, Ática, 1991, p. 26.
              (105) Georges Gusdorf, As Revoluções da França e da América,
              Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 169. (106) M. J. Heale, A
              Revolução Norte-Americana, São Paulo, Ática, 1991, p. 11.
              (107) M. J. Heale, obra citada, p. 15 e 16. (108) Síntese e
              excertos da "Declaração de Direitos do Bom Povo de
              Virgínia" e da "Declaração de Independência dos
              Estados Unidos da América" a partir da tradução de Jorge
              Miranda in Textos Históricos do Direito Constitucional, Lisboa,
              Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1990, p. 31 a 36. (109)
              "Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: que
              todos os homens são criaturas iguais; que são dotados pelo seu
              Criador com certos direitos inalienáveis; e que, entre estes, se
              encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Os governos
              são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e
              os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados;
              quando qualquer forma de governo se torna ofensiva destes fins, é
              direito do povo alterá-la ou aboli-la, e instituir um novo
              governo, baseando-o nos princípios e organizando os seus poderes
              pela forma que lhe pareça mais adequada a promover a sua
              segurança e felicidade. A prudência aconselha a não mudar
              governos há muito estabelecidos em virtude de causas ligeiras e
              passageiras; e, na verdade, toda a experiência tem demonstrado
              que os homens estão mais dispostos a sofrer males suportáveis do
              que a fazer justiça a si próprios, abolindo as forma a que
              estão acostumados. Mas, quando uma longa sucessão de abusos e
              usurpações, visando invariavelmente o mesmo fim, revela o
              desígnio de os submeter ao despotismo absoluto, é seu direito,
              é seu dever, livrar-se de tal governo e tomar novas providências
              para bem da sua segurança. Foi este o paciente sofrimento destas
              colônias e é agora a necessidade que as constrange a alterar o
              seu antigo sistema de governo". (110) M. J. Heale, A
              Revolução Norte-Americana, São Paulo, Ática, 1991, p. 57.
              (111) Comparativamente com a Inglaterra, uma proporção maior de
              pessoas já podia votar desde antes da independência, pois o
              número de pequenos fazendeiros era muito maior na América do
              Norte. As Constituições estaduais surgidas após a
              independência regularam de modo bastante diversificado essa
              questão. Algumas delas, como as da Pensilvânia e da Geórgia,
              reduziram muito as barreiras econômicas para a obtenção do
              direito de voto a brancos do sexo masculino. (112) M. J. Heale,
              obra citada, p. 58. (113) Eric J. Hobsbawm, A Era das
              Revoluções, edição citada, p. 129. (114) Citado por M.J.Heale
              na obra mencionada, p. 35. (115) M.J.Heale, obra citada, p. 38,
              fala em "mais de cem mil exemplares" em poucos meses;
              enquanto Georges Gusdorf, obra citada, p. 182, refere-se a
              "500 mil exemplares difundidos em um ano". (116) Georges
              Gusdorf, As Revoluções da França e da América, Rio de Janeiro,
              Nova Fronteira, 1993, p. 192. (117) Alexis de Tocqueville,
              "L'Ancien Régime et la Révolution", in "Oevres",
              coleção Bouquins, 1986, livro III, capítulo 1, p. 1040,
              conforme reprodução de Georges Gusdorf, obra citada, p. 50.
              (118) José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional
              Positivo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 263. (119)
              Citado T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e Status, Rio de
              Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 78. (120) Thomas Robert Malthus,
              Ensaio Sobre a População, São Paulo, Nova Cultural, 1996, p.
              246 e 249. (121) Síntese a partir de: Thomas Robert Malthus, obra
              citada, p. 243 e seguintes; Robert Heilbroner, "História do
              Pensamento Econômico", mesma editora, 1996, p. 73 e
              seguintes; e Paulo Sandroni (consultoria), Dicionário de
              Economia", mesma editora, 1985, p. 253. (122) Ernane Galveas,
              monografia introdutória à mencionada edição brasileira do
              Ensaio... de Malthus, p. 7-8. (123) Podemos avaliar seu grau de
              penetração como força ideológica conservadora se notarmos que,
              ainda hoje, passados duzentos anos, esses argumentos de Malthus
              continuam integrando um certo "senso comum"
              pretensamente "ilustrado". (124) David Ricardo,
              Princípios de Economia e Tributação, São Paulo, Nova Cultural,
              1996, p. 25. (125) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 263. (126)
              Poucas décadas depois, seria demonstrado o simplismo teórico do
              modelo ricardiano de crise capitalista, dentre outras razões, por
              estabelecer uma relação mecânica de causa e efeito entre um
              limite da natureza (a fertilidade declinante das glebas
              cultiváveis, supostamente irremediável) e um fato
              econômico-social (a redução da taxa de lucros). Mas essa
              descoberta não consolaria por muito tempo os liberais, pois logo
              uma crítica teoricamente mais consistente identificaria o foco
              gerador das crises cíclicas nas próprias relações sociais de
              produção do capitalismo, na medida em que, periodicamente,
              tornar-se-iam obstáculos à expansão das forças produtivas.
              (127) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 263. (128) Auguste Comte,
              Opúsculos Sobre a Filosofia Social, apêndice ao 4° volume de
              seu Sistema de Política Positiva (in: Comte, seleção de textos
              e tradução de Evaristo de Moraes Filho, São Paulo, Ática,
              1983, p. 53). (129) Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx
              Contra o Barão de Münchhausen, 4. ed., São Paulo, Busca Vida,
              1990, p. 19-20. (130) Auguste Comte, Curso de Filosofia Positiva,
              São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 41. (131) Auguste Comte,
              Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo, idem, p. 73.
              (132) Idem, p. 82. (133) Auguste Comte, Catecismo Positivista,
              São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 97. (134) Idem, p. 99. (135)
              Auguste Comte, "Catecismo...", p. 108-109. (136) Idem,
              p. 111. (137) Auguste Comte, Curso de Filosofia Positiva, volume
              IV, p. 296 (in: Comte, seleção de textos e tradução de
              Evaristo de Moraes Filho, São Paulo, Ática, 1983, p. 119-120).
              (138) Lettres d'Auguste Comte à John Stuart Mill (1842), p. 17/18
              (in: Comte, seleção de textos e tradução de Evaristo de Moraes
              Filho, São Paulo, Ática, 1983, p. 196-197). (139) Eric J.
              Hobsbawm, obra citada, p. 219-220. (140) "Luditas":
              designação derivada de King Ludd, um dos líderes desses
              movimentos na Inglaterra. (141) Eram as seguintes: 1) sufrágio
              universal masculino; 2) voto secreto; 3) distritos eleitorais
              iguais; 4) abolição do censo eleitoral baseado na propriedade;
              5) remuneração para a função parlamentar; 6) parlamentos
              eleitos anualmente. O movimento "cartista"
              enfraqueceu-se quando uma revolta operária em Newport foi
              esmagada e seus líderes foram deportados para a Austrália. (142)
              Encerramento do Livro III de "A República", última
              parte do diálogo de Sócrates com Glauco. In: Platão, A
              República, São Paulo, Nova Cultural, 1997, p. 113. Nesse
              "comunismo" aristocrático, Platão imaginou ainda que
              entre esses guardiães da comunidade, haveria igualdade de
              educação e de oportunidades intelectuais entre meninos e
              meninas, ausência de barreiras sexuais, comunidade de bens, de
              mulheres, de pais e de filhos, controle eugênico da procriação
              e dos nascimentos (como na criação de animais), morte dos
              recém-nascidos imperfeitos e aborto obrigatório dos fetos
              originados de casais que se encontrassem antes ou depois da idade
              permitida para a procriação. Para uma análise desse
              "comunismo" de Platão, vide Will Durant, A História da
              Filosofia, São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 55-60. (143)
              Jean-Jacques Rousseau, Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
              Desigualdade entre os Homens, segunda parte, São Paulo, Nova
              Cultural, 1997, p. 97-98. (144) Cf. Paulo Sandroni (consultoria),
              Dicionário de Economia, São Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 387
              (145) F. Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico,
              3. ed., São Paulo, Global, 1980, p. 37. (146) F. Engels, obra
              citada, p. 38. (147) Idem, p. 41. (148) Robert Owen, citado por F.
              Engels, obra indicada, p. 41. (149) F. Engels, obra citada, p. 43.
              (150) A participação popular, com feição mais proletária do
              que em 1789, foi decisiva para o triunfo da revolução de 1830 na
              França. O levante firmou o combate de barricadas como principal
              forma de luta insurrecional e foi imortalizado na célebre pintura
              "A Libertade Guia o Povo", de Eugène Delacroix, exposta
              no museu do Louvre: uma mulher com o barrete frígio republicano,
              seios nus, segurando um fuzil na mão esquerda e levantando a
              bandeira tricolor na mão direita, conclama o povo armado a
              prosseguir na luta, em meio a combatentes caídos. (151) Eric J.
              Hobsbawm, A Era das Revoluções - 1789/1848. 9. ed., São Paulo,
              Paz e Terra, 1996, p. 129. (152) A Revolução Praieira,
              deflagrada em Pernambuco em 1848 por liberais radicais, recebeu
              influência direta da "Primavera dos Povos". Como suas
              matrizes européias, desfraldou um programa democrático, recebeu
              adesão da população pobre e terminou derrotada pelas armas dos
              conservadores do Segundo Reinado. Como na Europa, marcou também o
              esgotamento da vertente democrática dos liberais brasileiros.
              Daí por diante, eles se comporiam politicamente com a oligarquia
              rural agro-exportadora, preservando o Brasil na posição de
              último país do hemisférico ocidental a abolir a escravatura e
              de último país das Américas a proclamar a República. (153)
              "Dos principais grupos sociais envolvidos na revolução, a
              burguesia (...) descobriu que preferia a ordem à oportunidade de
              pôr em prática seu programa completo, quando confrontada com a
              ameaça à propriedade. Quando se viram diante da revolução
              "vermelha", os moderados liberais e os conservadores
              uniram-se (...). Em troca, os regimes conservadores restaurados
              estavam bem preparados para fazer concessões ao liberalismo
              econômico, legal e até cultural dos homens de negócios, desde
              que isso não significasse um recuo político. Como veremos, a
              reacionária década de 1850 viria a ser, em termos econômicos,
              um período de liberalização sistemática. Em 1848 e 1849 os
              moderados liberais fizeram assim duas importantes descobertas na
              Europa ocidental: que a revolução era perigosa e que algumas de
              suas mais substanciais exigências (especialmente nos assuntos
              econômicos) poderiam ser atingidas sem ela. A burguesia deixara
              de ser uma força revolucionária" (Eric J. Hobsbawm, A Era
              do Capital, São Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 41-42). (154) Eric
              J. Hobsbawm, A Era do Capital, São Paulo, Paz e Terra, 1996, p.
              38. (155) Esse golpe ficaria conhecido pela denominação irônica
              que Karl Marx lhe atribuiria: o "18 Brumário de Luís
              Bonaparte". Assim como o golpe de Estado de 2 de dezembro de
              1851 contra a segunda República não passara de uma réplica
              medíocre do golpe desfechado por Napoleão Bonaparte em 9 de
              novembro (18 Brumário) de 1799 contra a primeira República,
              também o sobrinho golpista era uma caricatura política do tio
              famoso, sem sua grandeza histórica. Entrou para a história como
              "Napoleão, o pequeno". (156) A caça ao escalpo foi
              introduzida na América do Norte pelos colonos europeus. Consistia
              em agarrar a vítima, circundar-lhe a cabeça com uma incisão à
              faca e, em seguida, de um só puxão, arrancar sua cabeleira junto
              com a pele do crânio - a frio, naturalmente. Os escalpos
              abasteciam as indústrias de perucas para bonecas. Eram
              matéria-prima muito valorizada, pois, afinal de contas, ainda
              não haviam sido inventadas as fibras sintéticas e, ademais,
              apreciava-se nas mulheres de ascendência européia o hábito
              puritano de conservarem cabelos longos. Com o tempo, as tribos de
              selvagens norteamericanos assimilaram esse curioso costume e,
              sempre que a oportunidade lhes favorecia, retiravam escalpos dos
              civilizadores europeus, não para venda, mas como vingança ou
              troféu de guerra. (157) Cf. Domenico Losurdo, "Marx, a
              Tradição Liberal e a Construção Histórica do Conceito
              Universal de Homem", in: Educação e Sociedade - Revista
              Quadrismestral de Ciência da Educação, edição do CEDES,
              Campinas, São Paulo, 1996, n. 57, p. 687. (158) Publicado em
              fevereiro de 1848, no único número da revista "Anais
              Franco-Alemães", fundada em Paris por um grupo de alemães
              da "esquerda" hegeliana para escapar da censura à
              imprensa da monarquia prussiana. (159) Karl Marx, A Questão
              Judaica, 2. ed., São Paulo, Moraes, 1991, p. 37-41. (160) Karl
              Marx, obra citada, p. 25-27. (161) Bernard Bourgeois, "Marx
              et les Droits de L'homme", in: Droit et Liberté Selon Marx,
              Presses Universitaires de France, Paris, 1986, p. 10, tradução
              de Bernadete Trindade Camargo Janny. (162) As restantes citações
              deste parágrafo são de Karl Marx, A Questão Judaica, p. 42-44.
              (163) Em especial, mas não exclusivamente, em certas passagens de
              "A Ideologia Alemã" e de "A Sagrada
              Família". (164) Por exemplo: "Nas minhas pesquisas,
              cheguei à conclusão de que as relações jurídicas - assim como
              as formas de Estado - não podem ser compreendidas por si mesmas,
              nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se,
              pelo contrário, nas condições materiais de existência de que
              Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII,
              compreende o conjunto pela designação de 'sociedade civil'; por
              seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na
              economia política. (...) A conclusão geral a que cheguei e que,
              uma vez adquirida serviu de fio condutor dos meus estudos, pode
              formular-se resumidamente assim: na produção social da sua
              existência, os homens estabelecem relações determinadas,
              necessárias, independentes da sua vontade, relações de
              produção que correspondem a um determinado grau de
              desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto
              destas relações de produção constitui a estrutura econômica
              da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma
              superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
              determinadas formas de consciência social. O modo de produção
              da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social,
              política e intelectual em geral. Não é a consciência dos
              homens que determina o seu ser; é o seu ser social que,
              inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de
              desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
              entram em contradição com as relações de produção existentes
              ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de
              propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De
              formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações
              transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de
              revolução social. A transformação da base econômica altera,
              mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao
              considerar tais alterações, é necessário sempre distinguir
              entre a alteração material - que se pode comprovar de maneira
              cientificamente rigorosa - das condições econômicas de
              produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas,
              artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas
              pelas quais os homens tomam consciência deste conflito levando-o
              às suas últimas consequências. Assim como não se julga um
              indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá
              julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência
              de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência
              pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe
              entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.
              Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam
              todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca
              relações de produção novas e superiores se lhe substituem
              antes que as condições materiais de existência destas
              relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por
              isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de
              resolver e, assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o
              próprio problema só surgiu quando as condições materiais para
              o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de
              aparecer. Em um caráter amplo, os modos de produção asiático,
              antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como
              épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As
              relações de produção burguesas são a última forma
              contraditória do processo de produção social, contraditória
              não no sentido de uma contradição individual, mas de uma
              contradição que nasce das condições de existência social dos
              indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem
              no seio da sociedade burguesa, criam ao mesmo tempo as condições
              materiais para resolver esta contradição. Com esta organização
              social termina, assim, a pré-História da sociedade humana".
              (Karl Marx, prefácio à Contribuição à Crítica da Economia
              Política, 2. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 24-25)
              (165) Karl Marx e Friedrich Engels, "Manifesto do Partido
              Comunista", publicado no início de 1848, às vésperas de
              iniciar-se a "Primavera dos Povos". Esse texto, que
              completou 150 anos em 1998, foi escrito a pedido da "Liga dos
              Comunistas", uma associação operária internacional da
              época. Há muitas edições em português. (166) Karl Marx, O
              Capital, v. I, Livro Primeiro, São Paulo, Abril Cultural, 1983,
              p. 238. (167) Poucos meses após iniciar-se a guerra
              franco-prussiana de 1870, o exército francês capitulou
              vergonhosamente e, em 28/01/1871, o governo assinou o armistício.
              A Guarda Nacional e a população de Paris denunciaram a
              rendição como traição. O governo, retirado em Versalhes,
              mandou tropas para impor sua autoridade, mas elas confraternizaram
              com os resistentes no dia 18 de março. Emergiu, então, uma
              democracia popular em Paris. Foi eleito um Conselho Comunal de 85
              membros (Comuna de Paris), com participação de artesãos,
              operários, intelectuais e soldados, que adotou medidas avançadas
              para a época: dentre outras, criação de cooperativas de
              produção, separação entre Igreja e Estado, reforma
              educacional, congelamento de aluguéis, fim do trabalho noturno
              dos padeiros, abolição de exército permanente, armamento dos
              cidadãos, liberdade de imprensa e sindical. A Comuna popular
              sobreviveu pouco mais de dois meses. Apoiado por forças alemãs,
              o governo de Versalhes invadiu Paris com 130.000 soldados e, após
              resistência heróica dos "communardes", aniquilou a
              Comuna no dia 27 de maio de 1871. Mais de 20.000 parisienses
              morreram combatendo, talvez 100.000 foram presos, centenas
              fuzilados imediatamente e 13.400 condenados (268 à morte, os
              demais à deportação ou à prisão com trabalhos forçados). A
              Comuna de Paris foi a primeira experiência dos tempos modernos de
              construção de poder popular contra o Estado. Seu estudo
              tornou-se referência para o movimento operário e para teóricos
              do socialismo. (168) Eric J. Hobsbawm, A Era do Capital, 5. ed.,
              São Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 75-76. (169) Vide notas n. 171 e
              172. (170) "Em 1911, um milhão de mulheres se manifestaram
              na Europa nesse dia (8 de março) e 45 comícios foram realizados
              somente na cidade de Berlim. Em 1913, as mulheres organizaram na
              Rússia, e em particular em São Petersburgo, numerosos encontros
              clandestinos. Em 1915, em Oslo, as mulheres defenderam seus
              direitos e reclamaram a paz mundial, apesar dos violentos
              incidentes. Em 1917, na Rússia, elas saíram às ruas
              contrariando o governo socialista menchevique e o Partido
              Comunista Bolchevique." (In: 8 de Março, Dia Internacional
              da Mulher, publicado pelo Conselho Estadual da Condição
              Feminina, São Paulo, 1996, p. 5, impresso na IMESP) (171)
              "Em 8 de março de 1857 a cidade de Nova Iorque é palco da
              primeira greve de mulheres operárias de que se tem conhecimento.
              129 tecelãs pararam seu trabalho exigindo redução da jornada de
              trabalho, então de 14 horas, melhores condições no local de
              trabalho e salários maiores. O movimento terminou em tragédia. A
              policia cercou o prédio e, de acordo com os proprietários,
              incendiou-o para obrigá-las a sair. Mais de cinqüenta anos
              depois, de 26 a 27 de agosto de 1910, realizou-se em Copenhague a
              II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, que
              antecedeu a abertura do Congresso Internacional Socialista. Na
              ocasião, Clara Zetkin, jornalista alemã, dirigente do jornal Die
              Gleidhheit, apresentou e conseguiu aprovar uma resolução
              propondo que as mulheres socialistas de todos os países
              dedicassem o dia 8 de março em homenagem às operárias
              novaiorquinas, à luta pelo direito do voto feminino. A partir
              daí, a celebração foi ampliada à luta pelos direitos em geral,
              alcançando dimensão internacional, embora haja quem questione a
              escolha da data como homenagem às operárias americanas."
              (In: 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, folheto publicado
              pelo Conselho Estadual da Condição Feminina, São Paulo, 1996,
              p. 5, impresso na IMESP) (172) No dia 1º de maio de 1886, a
              Federação dos Grêmios e Uniões Organizados dos Estados Unidos
              e Canadá, antecessora da Federação Norte-Americana do Trabalho,
              iniciou uma greve nacional em luta pela jornada de oito horas de
              trabalho. A repressão foi violenta em quase todo o país,
              especialmente em Louisville, Baltimore, Filadélfia, St. Louis e
              Milwaukee - onde a polícia matou nove operários. No dia 3 de
              maio, em Chicago, a polícia privada ("pinkertons") da
              indústria madeireira McCormick, ao proteger alguns fura-greve,
              matou seis operários e feriu outros cinqüenta. No dia 4, ao
              término de uma manifestação de protesto (autorizada pelo
              prefeito Carter H. Harrison, que compareceu) a polícia lançou-se
              sobre os grevistas remanescentes na praça. No tumulto, explodiu
              uma bomba (nunca foi estabelecida sua autoria). Os policiais
              abriram fogo, mataram alguns manifestantes e feriram duzentos. A
              repressão alastrou-se, em uma semana greve refluía. Os meses
              seguinte foram de terror: estado de sítio, centenas de prisões,
              toque de recolher, fechamento dos jornais operários, invasões de
              casas. Em meio à histeria da imprensa contra os grevistas, oito
              líderes anarquistas (um inglês, cinco alemães e dois
              norte-americanos) foram acusados de sedição e submetidos a um
              processo rápido e cheio de vícios jurídicos: manipulação e
              intimidação de testemunhas, cerceamento de defesa, escolha
              direcionada do júri por um oficial de justiça que manobrou para
              evitar sorteio (um dos jurados era parente de um dos feridos pela
              bomba), parcialidade escancarada do juiz contra os acusados em
              todo o procedimento. Mesmo com tantas distorções, a acusação
              não conseguiu produzir provas inequívocas. Mas a dignidade dos
              acusados - assumiram sua ideologia e reiteraram a disposição de
              luta pelos direitos dos trabalhadores - irritou os jornais e as
              autoridades. No dia 28 de agosto de 1.886, veio a sentença: sete
              condenados à forca e um a quinze anos de prisão. Recursos
              sucessivos aos tribunais superiores deram em nada. No ano
              seguinte, proliferam protestos contra a farsa processual. O
              governador Oglesby só cede num ponto: comuta, para prisão
              perpétua, a pena de dois dos condenados à morte que haviam
              pedido clemência. No dia 10 de novembro de 1887, a polícia
              divulgou esta notícia incrível: apesar da intensa vigilância
              dos guardas carcerários, um dos cinco condenados à morte havia
              "conseguido" uma banana de dinamite e
              "suicidara-se" na cela com uma explosão na boca que
              destroçou sua cabeça ... No dia 11, os outros quatro foram
              enforcados. O martírio não foi em vão: a indignação foi
              fermento para a rápida reorganização do movimento operário
              norte-americano, a pressão de massas retornou e, no dia 1º de
              maio de 1890, o Congresso americano aprovou a lei que instituiu em
              todo o país a jornada de oito horas de trabalho. Em 1894, após
              receber uma petição com 60.000 assinaturas, o novo governador do
              Estado de Illinois concedeu perdão e libertou os três últimos
              presos. O 1º de maio passou a ser comemorado pelos trabalhadores
              de todo o mundo como o dia-símbolo de suas lutas. (Síntese a
              partir de: Laís Tapajós, "Os Oito de Chicago",
              Movimento, São Paulo, 25/04/1977, p. 10 -11) (173) Paulo
              Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, 6. ed., São Paulo,
              Malheiros, 1996, p. 177. (174) Acusado, sem provas, de haver
              passado documentos militares à Alemanha, o capitão Alfred
              Dreyfus, judeu francês, foi preso em outubro de 1894, condenado
              à prisão perpétua e à degradação militar, e deportado para
              os calabouços da Ilha do Diabo (Guiana Francesa), em meio a uma
              onda de anti-semitismo histérico. O verdadeiro culpado do
              vazamento de documentos foi logo descoberto - mas absolvido em
              janeiro de 1898 por um conselho de guerra. O grande romancista
              Émile Zola publicou então, no dia 13 desse mês, a famosa carta
              aberta "J'accuse", denunciando ao Presidente Faure o
              Estado-Maior e o processo tendencioso da condenação daquele
              oficial. Resposta: Zola foi condenado a um ano de prisão. O caso
              galvanizou a opinião pública francesa, que dividiu-se entre a
              esquerda ("dreyfusards"), mobilizada na Liga dos
              Direitos Humanos, e a direita anti-semita ("antidreyfusards"),
              aglutinada na Liga da Pátria Francesa. Surgindo a comprovação
              de que a principal peça do processo condenatório havia sido
              forjada, o tribunal militar concordou em "rever" o
              processo: em setembro de 1899, reduziu a pena de Dreyfus para
              "apenas" dez anos de prisão... Mas, a essa altura, a
              pressão da esquerda já havia levantado no país uma vaga de
              indignação contra a farsa processual, e o novo Presidente,
              Loubet, indultou e libertou Dreyfus - que só em 1.906 conseguiu
              sua reabilitação e reintegração ao Exército (síntese a
              partir de: Bredin, Jean-Denis, O Caso Dreyfus, São Paulo, Scritta,
              1995). (175) A sufocante ditadura de Porfirio Díaz mantinha-se no
              poder desde 1876, ora pela força escancarada, ora mediante
              eleições fraudulentas, e sustentava-se num bloco social
              integrado por latifundiários, grandes exportadores de minérios e
              de produtos agrícolas, uma Igreja Católica aferradamente
              anti-liberal e o capital estrangeiro instalado em vários setores
              da economia. Confiscou a quase totalidade das terras
              tradicionalmente comunitárias dos camponeses índios, massacrou
              dois levantes operários (Cananea, 1906; Rio Blanco, 1907) e
              inseriu o país de modo semi-colonial na divisão internacional do
              trabalho. Em 1910, um setor das classes dominantes liderado por
              Francisco Madero, portando um programa de tímidas reformas
              liberais, foi derrotado em nova fraude eleitoral (o ditador
              "obteve" quase todos os votos...) e lançou-se à
              insurreição armada em aliança com os camponeses. A resistência
              do bloco dominante acarretou uma guerra civil que durou dez anos,
              com um milhão de mortos. Massivas guerrilhas camponesas,
              reivindicando reforma agrária, liberdades e direitos sociais,
              formaram-se no sul (Exército Libertador do Sul, organizado pelo
              líder camponês Emiliano Zapata) e no norte do país (Divisão do
              Norte, criada pelo ex-"bandido social" Pancho Villa) e
              estiveram prestes a tomar o poder. Surgiu uma fértil
              intelectualidade revolucionária e desabrochou uma rica cultura de
              resgate da identidade nacional-popular. Mas, em seguida, sobreveio
              longo e tumultuado percurso político - que incluiu nova ditadura,
              intervenção militar norteamericana, violenta reação
              conservadora às reivindicações camponesas, divisão, derrota e
              dispersão dos exércitos populares, assassinato de Zapata (1919)
              e de Villa (1923), novas revoltas camponesas (em 1923, 1927 e
              1929), e repressão terrorista burguesa combinada com sistemática
              cooptação institucional de lideranças populares, até o
              esgotamento completo da revolução na década de quarenta. (
              Síntese a partir de: Marco Antonio Villa, A Revolução Mexicana,
              São Paulo, Ática, 1993) (176) Esta última medida decorria do
              contexto: como na França de 1789, a Igreja Católica mexicana
              detinha vastos latifúndios, era íntima da ditadura de Porfirio
              Díaz, e havia se oposto ferozmente à revolução. (177) Jornada
              diurna de oito horas e noturna de sete; normas de proteção ao
              menor e à mulher, licença-maternidade e intervalos para
              amamentação; repouso semanal remunerado, salário mínimo,
              isonomia salarial, impenhorabilidade do salário, remuneração
              adicional de 100% pelas horas extras de trabalho (limitadas a
              três por dia, no máximo durante três dias consecutivos);
              participação dos trabalhadores nos lucros das empresas; encargo
              patronal pelo fornecimento de habitação, escolas, enfermarias e
              outros serviços a seus empregados; responsabilidade patronal pela
              higiene, salubridade e prevenção de acidentes de trabalho, com
              indenização aos empregados vitimados por moléstias
              profissionais e acidentes, mesmo quando recrutados por
              intermediários; liberdade sindical e direito de greve pacífica
              (com o fim de "harmonizar os direitos do trabalho com os do
              capital"), inclusive em serviços públicos (neste caso,
              exceto em tempos de guerra); criação de Juntas de Conciliação
              e Arbitragem para tratar dos dissídios trabalhistas;
              indenização ao empregado por despedimento sem justa causa;
              pagamento preferencial dos créditos trabalhistas na falência da
              empresa; responsabilidade limitada à pessoa do empregado por
              dívidas contraídas com o empregador e inexigibilidade dessas
              dívidas quando superiores ao salário mensal; nulidade das
              cláusulas contratuais contrárias aos direitos sociais dos
              trabalhadores; previsão de leis instituindo seguros sociais;
              além de disposições equivalentes para os servidores públicos
              (inclusive, neste caso, direito de férias anuais de vinte dias).
              (178) Síntese e excertos da Constituição mexicana de janeiro de
              1917 a partir da tradução de Jorge Miranda in Textos Históricos
              do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
              Moeda,1990, p. 249-269. (179) Na revolução democrático-burguesa
              de 27 de fevereiro de 1917 (dia 12 de março, pelo calendário
              atual), o "trabalho pesado" dos combates havia sido
              feito pelas massas populares - como, aliás, em todas as
              revoluções burguesas ocorridas desde o século XVIII. E, também
              como nas revoluções anteriores, assim que os operários e
              camponeses apearam do poder a velha disnastia dos Romanov, assumiu
              o comando do país um bloco de forças composto, principalmente,
              pela burguesia liberal em aliança com sociais-democratas
              moderados, sob a liderança de Alexander Kerenski, ex-deputado da
              Duma (parlamento czarista). O propósito desse governo provisório
              parecia ser reeditar naquele vasto país algo parecido com uma
              versão eslava e moderna da Revolução Francesa: substituir a
              monarquia por uma república sob controle da burguesia, remover
              resquícios feudais que embaraçavam o pleno desenvolvimento do
              capitalismo e fazer algo - sem exageros ! - pelas "camadas
              menos favorecidas" (como se diz até hoje...). Pronto: o povo
              já poderia ser mandado embora para casa. Mas, como se sabe, a
              partir de outubro o roteiro seguido pelos operários terminou
              sendo outro. (180) Novamente, o contexto se impunha: como na
              França de 1789 e no México de 1910, a Igreja Ortodoxa Russa -
              czarista, anti-liberal, anti-socialista e grande proprietária -
              opusera tenaz resistência às duas revoluções russas de 1917.
              (181) O país, literalmente, desmoronava: esmagado nas frentes de
              batalha da Primeira Guerra Mundial, a que fora arrastado pela
              nobreza czarista e pela burguesia local, sua economia estava
              destruída e uma fome horrorosa alastrava-se por toda parte, a
              ponto de forçar o recente governo revolucionário socialista a
              curvar-se à exigência alemã de ceder quase um terço de todo o
              território e da populaç ão do país em troca da paz (Tratado de
              Brest-Litovsk, março de 1918). Não adiantou: a burguesia e a
              nobreza russas, armadas sem perda de tempo pelas potências que
              venceram a Primeira Guerra Mundial, arrastaram imediatamente o
              país para o mergulho prolongado numa guerra civil devastadora. A
              Rússia revolucionária viu-se colhida em cerco internacional
              (econômico, financeiro, diplomático etc.) e, sem pausa para
              respirar, logo seria também invadida militarmente por catorze
              exércitos estrangeiros (da Inglaterra, França, Japão, Estados
              Unidos, Alemanha, Áustria etc.) decididos a impedir que a
              revolução se consolidasse. (182) Síntese e excertos da
              "Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e
              Explorado" (janeiro de 1918) e da Constituição russa de
              julho de 1918, a partir da tradução de Jorge Miranda in Textos
              Históricos do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa
              Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 297-299 e 301-317. (183) Síntese
              e excertos da Constituição do Império Alemão (República de
              Weimar) de 11 de agosto de 1919, a partir da tradução de Jorge
              Miranda in Textos Históricos do Direito Constitucional, Lisboa,
              Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 271-292. (184) José
              Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 3. ed.,
              , São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 267. (185) Na
              Suíça, país tantas vezes lembrado como modelo de democracia do
              primeiro mundo, um plebiscito realizado em 1959 rejeitou a
              extensão do direito de voto às mulheres, que só acabou sendo
              adotado em 1971. (186) A França de 1789, juntamente com a
              Inglaterra, eram os países mais fortes do mundo - econômica,
              cultural e militarmente. Durante vinte e cinco anos de vitórias
              (até a queda de Napoleão em 1815), a França havia conseguido
              espalhar sua revolução pela maioria da Europa continental,
              quebrar o que restava de feudalismo em quase todos os países
              conquistados e consolidar o capitalismo a um ponto de
              não-retorno, que não seria minimamente afetado pelo retrocesso
              político do período da Restauração. Com a Rússia de 1917,
              deu-se o contrário: era o país mais atrasado da Europa e não
              aconteceram (ou foram rapidamente reprimidas) revoluções em
              outros países europeus. Como seria esperável, o torniquete
              econômico do capitalismo fechou-se, as indústrias dependentes de
              tecnologia externa paralisaram-se, uma parte grande de sua pequena
              classe operária dispersou-se para, simplesmente, sobreviver no
              campo, outra parte foi alçada a funções administrativas em
              substituição aos profissionais que abandonaram o país após a
              revolução. A Rússia retrocedeu a níveis produtivos do final do
              século anterior e por muito tempo só restaria miséria para
              socializar. (187) Folha de S. Paulo, 8/7/1998, caderno
              "Mundo", p. 12. (188) "El Concepto de Derechos
              Humanos", in "Estudios Basicos en Derechos
              Humanos", tomo I, Instituto Interamericano de Derechos
              Humanos. (189) Os mais abrangentes tratados e declarações
              subscritos por nosso país foram reunidos pela Procuradoria Geral
              do Estado de São Paulo na obra intitulada Instrumentos
              Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, publicada em
              1997. Desde 1945, o Brasil vinha subscrevendo e ratificando muitos
              desses instrumentos, processo interrompido durante a ditadura
              militar de 1964-1985. Mas, após o término da ditadura, já
              subscreveu e ratificou mais estes: Convenção Sobre a
              Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
              Mulher, adotada pela Resolução n. 34/180 da Assembléia Geral
              das Nações Unidas em 18.12.79, ratificada pelo Brasil em
              1º.2.84; Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou
              Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Resolução
              39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.84,
              ratificada pelo Brasil em 28.9.89; Convenção Interamericana Para
              Prevenir e Punir a Tortura, adotada pela Assembléia Geral da
              Organização dos Estados Americanos em 9.12.85, ratificada pelo
              Brasil em 20.7.89; Convenção Sobre os Direitos da Criança,
              adotada pela Resolução "L.44" (XLIV) da Assembléia
              Geral das Nações Unidas em 20.11.89, ratificada pelo Brasil em
              24.9.90; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que,
              embora tivesse sido adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da
              Assembléia Geral das Nações Unidas em 16.12.66, só foi
              ratificado pelo Brasil em 24.1.92, após o término do regime
              autoritário; Pacto Internacional dos Direitos Sociais,
              Econômicos e Culturais, também adotado pela Resolução 2.200-A
              (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 16.12.66,
              também só foi ratificado pelo Brasil em 24.1.92; Convenção
              Americana de Direitos Humanos ("Pacto de San José da Costa
              Rica), adotada e aberta à assinatura na Conferência
              Especializada Interamericana Sobre Direitos Humanos, em San José
              da Costa Rica, em 22.11.69 - mas, pela mesma razão, só
              ratificada pelo Brasil em 25.9.92; Convenção Interamericana Para
              Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada
              pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em
              6.6.94, ratificada pelo Brasil em 27.11.95. (190) Cf: "O
              Emprego no Mundo", estudo realizado pela Organização
              Internacional do Trabalho divulgado em novembro de 1996. No
              estudo, os especialistas da OIT alertaram que acentuava-se cada
              vez mais uma "tendência à desigualdade nos salários"
              e qualificaram como "sombria" a situação do mercado
              mundial de trabalho. José Damião de Lima Trindade *
              Procurador do Estado de São Paulo, membro do Grupo de Trabalho de
              Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
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