Uma
Estética da Fome
Glauber Rocha
Tese apresentada durante
as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva
realizada na Resenha do Cinema Latino-Americano em Gênova, janeiro de
1965, sob o patrocínio da Columnum. O tema proposto pelo Secretário
Aldo Vigano foi Cinema Novo e Cinema Mundial. Contingências especiais
forçaram a modificação: o paternalismo europeu em relação ao
Terceiro Mundo - já verificados nos contatos com a África - foi o
principal motivo da mudança de tom. A tese a rigor teria interesse para
a Mesa Redonda onde foi realizada. A publicação, hoje, comentada,
atende a um pedido de Alex Viany e tem objetivos informativo e
polêmico. - GR
Dispensando a introdução
informativa que se tem transformado na característica geral das
discussões sobre a América Latina, prefiro situar as relações entre
nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos que
aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu.
Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o
interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um
sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de
interesse.
Nem o latino comunica sua
verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado
compreende verdadeiramente a miséria do latino.
Eis- fundamentalmente - a
situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente
mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizaram os
problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos,
provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da
arte mas contaminam sobretudo o terreno geral político. Para o
observador europeu os processos de criação artística do mundo
subdesenvolvido só interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do
primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob
as tardias heranças do mundo civilizado, heranças mal compreendidas,
porque impostas pelos condicionamentos colonialistas. A América Latina,
inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de
ontem do atual é apenas a forma aprimorada do colonizador: e, além dos
colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós
armam futuros botes. O problema internacional da América Latina é
ainda um pouco de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação
possível estará sempre em função de uma nova dependência.
Este condicionamento
econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à
impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no
primeiro caso a esterilidade e segundo, a histeria.
( A esterilidade: aquelas
obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em
exercícios formais que todavia, não atingem a plena possessão de sua
formas. O sonho frustado da universalização: artistas que não
despertam do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de
quadros nas galerias empoeirados e esquecidos; livros de contos e
poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo,
provocaram inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das
artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais,
conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, vários
coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais
da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas
culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas
revistas literárias, os concursos, os títulos.
A histérica: um
capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos
flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo pornográfico que marca
a poesia jovem até hoje ( e a pintura).
O segundo é uma
redução política da arte que faz má política por excesso de
sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma
sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que
nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas sim
de um titânico e autodevastador esforço no sentido de superar a
impotência; e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos
frustados, apenas nos limites inferiores do colonizador; e se ele nos
compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo, mas pelo
humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o
paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de
lágrimas ou de mudo sofrimento.
A fome latina, por isto,
não é somente um sistema alarmante: é o nervo da sua própria
sociedade. Aí que reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante
do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior
miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.
(De
Aruanda a Vida Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou,
discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo
terra, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer,
personagens sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que
identificou o Cinema Novo com o miserabilismo hoje tão condenado pelo
Governo do Estado da Guanabara, pela Comissão de Seleção de Festivais
do Itamarati, pela Crítica a serviço dos interesses oficiais, pelos
produtores e pelo público - este não suportando as imagens da própria
miséria.
Este miserabilismo do
Cinema Novo opôe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo
crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em
casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos,
rápidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais. Estes
são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos
apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de
uma burguesia indefinida, e frágil, ou mesmo os próprios materiais
técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada
na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de
paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos
cineastas que fazem este tipo de filmes. O que fez do Cinema Novo um
fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível
de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que antes
escrito pela literatura de 30, foi fotografado pelo cinema de 60; e,
antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido
como problema político. Os próprios elogios do miserabilismo do nosso
cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl,
vai desde o fenomelogico (Pôrto das Caixas), ao social (Vidas Secas),
ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico
(Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a Lama), ao documental
(Garrincha, a alegria do povo), a comédia (Os Mendigos), experiências
em vários sentidos, frustadas umas, realizadas outras, mas todas
compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por
acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes
crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução, que
culminou no golpe de abril. E foi a partir de abril que a tese do cinema
digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando sistematicamente, o Cinema
Novo).
Nós compreendemos
esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o
europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma
vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e
sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós - que fizemos
estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde
nem sempre a razão falou mais alto, - que a fome não era curada pelos
planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem,
mais agravam os seus tumores.
Assim, somente uma
cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente e mais nobre manifestação cultural da fome é a
violência.
(A mendicância,
tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem
sido uma das causadoras de manifestação política e da ufanistas
mentira cultural; os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos
países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar
professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar o ofício
sem ensinar o alfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a
política pede: o Cinema Novo no campo internacional nada pediu:
impôs-se pela violência das suas imagens em vinte e dois festivais
internacionais).
Pelo Cinema Novo:
o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um
faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Corisco é
primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?
Do Cinema Novo: uma
estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o
ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do
colonizado: somente conscientizada sua possibilidade única, a
violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da
cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é
um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês
percebesse um argelino.
De uma moral: essa
violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não
diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que
esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência,
porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um
amor de ação e transformação.
(O Cinema Novo, por isto,
não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em
busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de
amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas mata o marido;
a Dandara de Ganga Zumba foge da guerra para um amor romântico; Sinhá
Vitória sonha com novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para
salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre
precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio
rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a
mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês, e
para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre).
Explicação: já passou
o tempo em que o Cinema Novo precisava processar-se para que se
explique, à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de
pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O
Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer
marginal ao processo econômico e cultural do continente
Latino-Americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno
dos povos novos e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver
um cineasta disposto a filmar a verdade, e a enfrentar os padrões
hipócritas e policialescos da censura intelectual, aí haverá um germe
vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o
comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá
um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou
de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e as sua profissão a
serviço das causas importantes do seu tempo, aí o haverá um germe do
Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo
se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial
é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e
industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para
esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de
seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais
talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão moral que
se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no
detalhe que observar, na moral que pregar: não é um filme mas um
conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público a
consciência de sua própria miséria.
Não temos por isto
maiores pontos de contato com o cinema mundial, a não ser com suas
origens técnicas e artísticas.
O Cinema Novo é um
projeto que se realiza na política da fome, e sofre por isto mesmo,
todas as fraquezas conseqüentes de sua existência. |