
O
Esporte e o Lazer à Luz dos Direitos Humanos
Maria
do Rosário
Deputada Estadual PT/RS
O
Seminário Estadual de Esporte e Lazer, realizado pelo
DESP – Departamento de Desportos do Governo do Rio
Grande do Sul, possibilita um debate contemporâneo e
indispensável à sociedade e ao governo, em especial ao
poder executivo, abarcando-se dimensões essenciais da
vida, educação, saúde e cultura. Nossa contribuição
está em pontuarmos o tema "Gestão do Esporte e
Lazer: Direitos Humanos e/ou Necessidades Sociais?"
Saudando
a iniciativa, apresentamos aqui, brevemente, nossa
compreensão do esporte e do lazer na perspectiva dos
Direitos Humanos, enquanto direitos sociais imprescindíveis
do ser humano e, portanto, com reconhecimento universal.
A
universalidade e a indivisibilidade dos DH
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) está
estruturada de modo que o 1°, o 2° e o 3° artigos
fundamentam todos os demais e, do 4° ao 21° se agrupam
os artigos referentes aos direitos civis e políticos e,
por fim, do 22° ao 30°, os artigos que sustentam os
direitos econômicos, sociais e culturais.
Adotada
e proclamada pela Assembléia Geral da Organização das
Nações Unidas (ONU) na sua Resolução 217A(III) de 10
de dezembro de 1948, a DUDH responde ao clamor dos povos
diante do terror que se abateu sob a comunidade
internacional durante a segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Pode-se dizer que, a Segunda Guerra Mundial
trouxe ao cotidiano dos povos a preocupação com a
garantia do respeito aos Direitos Humanos. Passando a ser
inadmissível a tolerância a conflitos e fenômenos
desumanos experimentados pela humanidade durante a guerra,
sob o verniz de supostas verdades científicas e da
ideologia nazifascista.
No
seio da DUDH estão as noções de universalidade e
indivisibilidade dos Direitos Humanos. Universalidade por
referir-se ao conjunto da humanidade e a cada ser humano
em particular, à comunidade de nações e à cada nação
em particular, afirmando princípios universais de
direitos à vida, à liberdade, à igualdade em dignidade
e direitos. Ao lado de seu caráter universal, os Direitos
Humanos são indivisíveis. Este caráter de
indivisibilidade foi reconhecido de forma incontestável
pela Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, em
1993. Afirmou-se a impossibilidade de associar os chamados
direitos de primeira geração, direitos civis e políticos,
dos direitos econômicos, sociais e culturais. Por razão
muito simples: como afirmar-se o direito à vida
sem o necessário provimento das condições básicas como
alimentação, moradia e vestuário que, afinal,
dignificam a vida? Como assegurar o direito à liberdade
de expressão sem o acesso garantido à educação de
qualidade, através da qual as pessoas asseguram de fato a
possibilidade de serem críticas, criativas e livres para
se expressarem? E o direito ao voto sem trabalho,
emprego e renda mínima, não se constitui numa noção
muito limitada de democracia? Enfim, à medida em que se
expandiu a conscientização quanto os Direitos Humanos se
firmou a dimensão de inclusão de absolutamente todos em
todos os direitos.
Outro
aspecto da DUDH a ser considerado diz respeito a afirmação
de que os Direitos Humanos são uma conquista da
humanidade que reagiu a um processo histórico que
violentou a dignidade humana e se destinava a privá-la se
modo permanente do exercício da liberdade e da vivência
da solidariedade entre os povos. Conforme diz o "Preâmbulo"
da DUDH :
"Considerando
que o reconhecimento da dignidade inerente a todos
os membros da família humana e dos seus direitos iguais e
inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo; ... que o desconhecimento e o
desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbárie
que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento
de um mundo em que os seres humanos gozem de liberdade de
palavra e de crença, libertos do terror e da miséria,
foi proclamado como a mais alta aspiração do homem; ...
que é essencial a proteção dos direitos do homem através
de um regime de direito, para que o homem não seja
compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania
e a opressão; ... que é essencial encorajar o
desenvolvimento de relações amistosas entre as nações;
considerando que, na Carta, aos povos das Nações Unidas
proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do
homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se
declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar
melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais
ampla; ... que os Estados membros se comprometeram a
promover, em cooperação com a Organização das Nações
Unidas, o respeito universal e efetivo dos direitos do
homem e das liberdades fundamentais;
Estes
"considerando..." do Preâmbulo da DUDH preparam
o caminho para a proclamação dos direitos que principiam
no 1° e fundamental, a referenciar os que o seguem:
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade."
Portanto,
a DUDH não pode ser entendida apenas como uma proclamação
de propósitos, mas como um instrumento consensual que
sinaliza para os Estados signatários, o que efetivamente
devem integrar e concretizar em seus ordenamentos jurídicos,
políticos, econômicos e culturais para a proteção dos
Direitos Humanos.
Passados
52 anos da proclamação da DUDH seus princípios se vêem
ameaçados por uma nova concepção totalitária de
sociedade fundada na absolutização do mercado financeiro
e na atribuição de poderes sem precedentes a corporações
empresariais e grupos econômicos com braços estendidos
ao conjunto das nações do mundo contemporâneo. Esta
nova ordem internacional subordina interesses de nações
e povos, bem como sacrifica princípios consagrados na
DUDH em nome da desregulamentação e flexibilização dos
direitos em plano global.
Décadas
se passaram e problemas estruturais permanecem: o
endividamento externo dos países que formavam o
"Terceiro Mundo"; o abismo existente em termos
de desenvolvimento humano existente entre os países
europeus e norte-americanos e os países do continente
africano, especialmente da África subsaárica; as crises
cíclicas da economia, associadas às reservas de energia
(petróleo) e à crescente financeirização do mercado
internacional; ao lado disto, acrescenta-se a permanência
de conflitos étnicos e políticos que precederam às
guerras mundiais como a questão palestina ou confrontos
nos Balcãs e no leste europeu.
Paradoxalmente,
chegamos ao final do século XX, com um agravamento das
violações dos Direitos Humanos e com ameaças cotidianas
à paz mundial, mas a DUDH está aí, em vigor, como
instrumento permanente para referenciar a luta pela paz e
pelos Direitos Humanos. Ao lado dela, vieram a somar-se os
pactos, tratados e as convenções como documentos de
direitos produzidos ao longo das décadas que se sucederam
a 1948, além disto, muitos países, inclusive o Brasil,
produziram seus planos internos de Direitos Humanos de
modo integrado aos instrumentos internacionais. A própria
Constituição Federal brasileira, de 1988, em seus
artigos, especialmente do 1° ao 5°, insere-se neste espírito
de garantia de direitos e de respeito ao ordenamento jurídico
mundial em relação aos Direitos Humanos.
Entretanto,
no caso brasileiro, é voz comum a inoperância do governo
federal para assegurar as garantias previstas no Plano
Nacional de Direitos Humanos, que, inclusive, é
considerado limitado porque não se refere aos direitos
sociais, econômicos e culturais.
Os
direitos econômicos, sociais e culturais
O
artigo 22 da DUDH faz a abertura do grupo de direitos econômicos,
sociais e culturais indispensáveis no trato da dignidade
humana: "Toda a pessoa, como membro da sociedade,
tem direito à segurança social; e pode legitimamente
exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e
culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e
à cooperação internacional, de harmonia com a organização
e os recursos de cada país."
Os
princípios presentes no artigo 22 da DUDH foram
reafirmados, através do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), juntamente com
o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, na
Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de
1966, ambos ratificados pelo Brasil em 24 de janeiro de
1992 e em vigor desde 24 de abril de 1992 e promulgados em
6 de julho de 1992, através dos decretos 591 e 592,
respectivamente. Estes Pactos Internacionais têm o
objetivo de conferir o caráter de obrigatoriedade aos
compromissos estabelecidos na DUDH. A violação dos
direitos consagrados nos Pactos por Estados signatários
os tornam passivos de responsabilização internacional.
Encontramos
os direitos ao descanso e ao lazer no artigo 7° do PIDESC,
conforme segue:
"Os
Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de
toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis, que assegurem especialmente:
-
uma
remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os
trabalhadores:
-
um
salário eqüitativo e uma remuneração igual por um
trabalho de igual valor, sem qualquer distinção;
-
em
particular, as mulheres deverão ter a garantia de
condições de trabalho não inferiores às dos homens
e perceber a mesma remuneração que eles, por
trabalho igual;
-
uma
existência decente para eles e suas famílias, em
conformidade com as disposições do presente Pacto;
-
condições
de trabalho seguras e higiênicas;
-
igual
oportunidade para todos de serem promovidos, em seu
trabalho, à categoria superior que lhes corresponda,
sem outras considerações que as de tempo, de
trabalho e de capacidade;
-
______
(6).
descanso, o lazer, a limitação razoável das
horas de trabalho e férias periódicas remuneradas,
assim como a remuneração dos feriados."
Direito
ao esporte e ao lazer
Na
Constituição Federal, abre-se o Capítulo II, dos
Direitos Sociais, na perspectiva do PIDESC:
"Art.
6° São direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art.
7° São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XV
— repouso semanal remunerado, preferencialmente aos
domingos;"
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), refere, em
seu Art. 4°, que:
"É
dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e
do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária."
O
conjunto destas legislações consagra os direitos econômicos,
sociais e culturais como direitos imprescindíveis à
dignidade humana, que promovem o bem-estar e desenvolvem
as habilidades da pessoa e da coletividade.
À
luz desta perspectiva, entendemos o esporte e o lazer como
direitos sociais assentados nos direitos fundamentais da
pessoa humana e da coletividade. Esta compreensão supõe
uma visão da indivisibilidade dos direitos humanos que,
por sua vez, assenta-se na integridade da pessoa humana,
sua complexidade e suas potencialidades sociais que
atingem, através do esporte do lazer, espaços propícios
ao seu desenvolvimento saudável. Idosos, jovens, crianças
e adolescentes constituem o público alvo e diferenciado
dos direitos sociais, necessitando, portanto, políticas públicas
específicas às faixas etárias correspondentes:
"Uma
vez que entendemos que na prática esportiva se formam
identidades sociais que se reúnem em grupos e categorias
de pessoas simbolizadas pelos jogadores ou por seus times,
ampliando as oportunidades de expressão de diferenças
sociais e culturais, além de diferenças em relação ao
conhecimento que uns têm dos outros e da própria prática
que se faz... Por sua vez, lazer tem para nós o sentido
da vivência privilegiada do lúdico que materializa a
experiência sociocultural movida pelos desejos de quem
joga e é coroada pelo prazer. Prazer que se funda no
exercício da liberdade e, por isso, representa conquista
de quem pôde sonhar, sentir, decidir, arquitetar,
aventurar e agir, esforçando por superar os desafios da
brincadeira, consumindo o processo do brinquedo, recriando
o tempo, o lugar e os objetos em jogo e usufruindo do seu
processo/produto que, em sua exuberância, é uma festa."
Portanto,
o esporte e o lazer se constituem em espaços de ação
educativa, onde são afirmados e vivenciados valores
positivos para o indivíduo e para a vida em sociedade.
Valores como os afirmados no Manifesto Mundial da Educação
Física – FIEP - 2000: educação física como
direitos de todos, como questão de saúde e educação e
educação física como fator para uma cultura da paz:
"A
Educação Física deve contribuir para a Cultura da Paz,
ao ser usada no sentido de uma sociedade pacífica de
preservação da dignidade humana através de iniciativas
de aproximação das pessoas e dos povos, com programas
que promovam cooperações e intercâmbios nacionais e
internacionais."
Neste
aspecto, atribuímos ao Estado um papel fundamental na
proposição das políticas sociais e, neste caso,
promovendo ações voltadas para a valorização do
esporte e do lazer na perspectiva dos direitos humanos e,
portanto da valorização da pessoa humana e de sua vivência
sociocomunitária.
O
Estado constitui-se em um centro capaz de articular outras
esferas de poder em torno de um projeto hegemônico e
conferir estabilidade e continuidade a uma política de
garantias direitos, além da positivação da mesma em seu
sistema legal. Essa ação do Estado deve combinar-se às
iniciativas da sociedade em suas diversas formas de
organização autônomas, potencializando-as. A garantia
de direitos genericamente inscritos na legislação
necessita de instrumentos (programas e serviços)
concretos para sua efetivação. A política de garantia
dos direitos humanos deve ser desenvolvida combinadamente
entre a sociedade e o Estado, porém, a continuidade dessa
política não pode ser comprometida pela dinâmica da
vida das organizações não-governamentais e o
financiamento da mesma deve ter a participação
preponderante dos governos. A criação de organismos de
controle do Estado pela sociedade, por outro lado,
objetiva conter as tendências burocráticas e autoritárias
próprias do aparato estatal.
Embora,
o poder econômico tenha suplantado ao poder político e
à cultura, afinal, gigantescas corporações
empresariais, as multinacionais, cada vez menos necessitam
intermediários políticos para dominar o mundo, ainda
insistimos em atribuir ao Estado um papel decisivo nas políticas
sociais.
A
práxis que vivenciamos em nossa atuação parlamentar,
através da CCDH, é testemunho ocular e epidérmico desta
conjuntura. Vivemos em um tempo de contradições, no qual
, por um lado, todas as condições para o bem estar das
pessoas são atingidas pelo extraordinário avanço da ciência
e da técnica, mas que, em outra perspectiva, privatizações,
automatizações e terceirizações põem parcelas
expressivas da sociedade na marginalidade social,
vulnerabilizando-as ao máximo.
Na
cidade de Porto Alegre, como experiência de poder local,
ocorre a participação direta da população na elaboração
do orçamento, no seu controle e na sua execução, bem
como na definição das políticas na área da criança e
adolescente, mulher, idosos, assistência social, esporte,
lazer e desenvolvimento econômico, entre outras áreas.
Através dos conselhos a sociedade passa a ter
instrumentos para determinar o que é prioritário. Esse
conceito contrapõem-se à ideologia do Estado Mínimo e
afirma um Estado de garantias e sob o controle da
sociedade.
Esporte
e lazer para todos
Uma
reflexão final gostaríamos de pontuar a necessidade de o
Estado promover uma política voltada para o esporte e o
lazer à luz dos direitos humanos. Isto significa propor
políticas em primeiro plano, de inserção das camadas
mais excluídas e discriminadas, das crianças e dos
adolescentes, enquanto prioridade efetiva, dos portadores
de deficiência, dos negros e negras, dos povos indígenas
e dos pobres de um modo geral.
É
paradoxal, mas real. O Brasil notabiliza-se
internacionalmente pela injustiça social imposta
historicamente, a qual produziu um abismo social só
comparável às nações mais subdesenvolvidas do mundo.
Conforme o Relatório do Desenvolvimento Humano 2000 da
ONU, o Brasil ocupa a 74ª posição no Índice do
Desenvolvimento Humano (IDH). Se fosse considerado somente
as camadas mais empobrecidas, exceto as camadas médias e
alta da pirâmide social brasileira, despencaríamos no
IDH para posições semelhantes as da Nigéria, Uganda
etc., ou seja, os mais baixos índices de desenvolvimento
humanos, enfim, de vida no mundo. Entretanto, também nos
notabilizamos por já termos o principal piloto da Fórmula
1 e hoje temos o tenista número 1 do mundo. Ao lado
disso, os jogadores de futebol mais bem pagos, a seleção
de futebol mais cara, os contratos milionários entre
clubes e empresas multinacionais etc.
O
que queremos dizer com isto? Que, simultaneamente,
participamos da elite mundial do esporte e do lazer e lideramos
o que poderíamos chamar de índice de exclusão social, o
ranking do atraso nas políticas sociais de inclusão das
camadas populares, de todos, em termos de direitos
sociais, econômicos e culturais e, portanto, no acesso ao
esporte e ao lazer.
Pelo
exposto, é imperativo que ocorra uma aplicação rigorosa
dos recursos públicos e da captação de recursos
privados em uma nova lógica de investimento em esporte e
lazer, isto à luz dos direitos humanos que referimos e
sustentamos em nossa prática política, parlamentar, na
gestão do Estado e nos movimentos sociais.
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