Multiculturalismo
e Direitos Coletivos
-
INTRODUÇÃO
A sobrevivência do multiculturalismo
num mundo em que o Estado reconhece, protege e pretende transformar
todos os direitos em individuais, é quase impossível. De fato, a
construção do Estado contemporâneo e de seu Direito foi marcada
pelo individualismo jurídico ou pela transformação de todo titular
de direito em um indivíduo. Assim foi feito com as empresas,
sociedades e com o próprio Estado; criou-se a ficção de que cada um
deles era pessoa, chamada de jurídica ou moral, individual. Assim
também foi feito com os povos diferenciados, criando a ficção de
que cada povo indígena seria uma individualidade com direitos
protegidos. Isto transformava os direitos essencialmente coletivos dos
povos em direitos individuais.
O Direito contemporâneo, além de
individualista, é dicotômico: às pessoas - indivíduos titulares de
direitos - corresponde uma coisa - bem jurídico protegido. A
legitimidade desta relação se dá por meio de um contrato - acordo
entre duas pessoas. É evidente que este esquema jurídico não
poderia servir aos povos indígenas da América Latina porque, mesmo
que considerasse cada povo uma individualidade de direito, os bens
protegidos (os bens que os povos precisam proteger) e sua legitimidade
não têm nenhuma relação com a disponibilidade individual e com
origem contratual. É por isso que os países latino-americanos sempre
buscaram separar o indivíduo indígena de seu povo, assimilando-o à
"sociedade nacional" de forma tão profunda que ele deixaria
de ser povo diferenciado. O sistema pensou que a assimilação seria
possível por meio do trabalho, mas nunca pôde entender que a idéia
do trabalho gerador da propriedade não tem relação com as culturas
indígenas.
Tanto lutaram estes povos e tão
pequena foi a possibilidade de assimilação que exerceram sobre eles
as sociedades envolventes, que o sistema acabou por reconhecer
direitos coletivos, que abriram um novo horizonte no reconhecimento
dos povos, permitindo aos países se considerarem multiculturais e
pluri-étnicos. Estes direitos coletivos extrapolaram os povos indígenas
para outros segmentos sociais, de tal forma que acabaram por ter um
caráter emancipatório.
A trajetória dessa transformação,
seu potencial e dificuldades é o tema deste trabalho. As histórias
que a seguir são narradas, embora muito representativas, devem ser
entendidas como exemplos de uma realidade muito mais vasta e complexa,
e que aponta sempre na mesma direção: uma espécie de renascer dos
povos ou renascer de esperanças. (Souza Filho, 1998).
A sobrevivência do multiculturalismo
num mundo em que o Estado reconhece, protege e pretende transformar
todos os direitos em individuais, é quase impossível. De fato, a
construção do Estado contemporâneo e de seu Direito foi marcada
pelo individualismo jurídico ou pela transformação de todo titular
de direito em um indivíduo. Assim foi feito com as empresas,
sociedades e com o próprio Estado; criou-se a ficção de que cada um
deles era pessoa, chamada de jurídica ou moral, individual. Assim
também foi feito com os povos diferenciados, criando a ficção de
que cada povo indígena seria uma individualidade com direitos
protegidos. Isto transformava os direitos essencialmente coletivos dos
povos em direitos individuais.
O Direito contemporâneo, além de
individualista, é dicotômico: às pessoas - indivíduos titulares de
direitos - corresponde uma coisa - bem jurídico protegido. A
legitimidade desta relação se dá por meio de um contrato - acordo
entre duas pessoas. É evidente que este esquema jurídico não
poderia servir aos povos indígenas da América Latina porque, mesmo
que considerasse cada povo uma individualidade de direito, os bens
protegidos (os bens que os povos precisam proteger) e sua legitimidade
não têm nenhuma relação com a disponibilidade individual e com
origem contratual. É por isso que os países latino-americanos sempre
buscaram separar o indivíduo indígena de seu povo, assimilando-o à
"sociedade nacional" de forma tão profunda que ele deixaria
de ser povo diferenciado. O sistema pensou que a assimilação seria
possível por meio do trabalho, mas nunca pôde entender que a idéia
do trabalho gerador da propriedade não tem relação com as culturas
indígenas.
Tanto lutaram estes povos e tão
pequena foi a possibilidade de assimilação que exerceram sobre eles
as sociedades envolventes, que o sistema acabou por reconhecer
direitos coletivos, que abriram um novo horizonte no reconhecimento
dos povos, permitindo aos países se considerarem multiculturais e
pluri-étnicos. Estes direitos coletivos extrapolaram os povos indígenas
para outros segmentos sociais, de tal forma que acabaram por ter um
caráter emancipatório.
A trajetória dessa transformação,
seu potencial e dificuldades é o tema deste trabalho. As histórias
que a seguir são narradas, embora muito representativas, devem ser
entendidas como exemplos de uma realidade muito mais vasta e complexa,
e que aponta sempre na mesma direção: uma espécie de renascer dos
povos ou renascer de esperanças. (Souza Filho, 1998).
- FORMAÇÃO DOS ESTADOS NA AMÉRICA
LATINA
O colonialismo mercantilista inaugurado
pela descoberta das Américas e do caminho marítimo para as Índias
teve um relacionamento com os povos locais de profunda exploração,
chegando com facilidade ao desrespeito e ao genocídio. As guerras que
Portugal e Espanha travaram contra a resistência dos povos da América
foram marcadas pela desigualdade de condições e crueldade; os europeus
conheciam a pólvora e não hesitaram usá-la abusivamente. Os chamados
índios eram caçados nas selvas, montanhas e pradarias, empurrados para
o interior e vendidos ou treinados em cativeiro para servir de escravos,
cristianizados e transformados em força de trabalho para os capitais
mercantilistas, que ironicamente construíam na Europa a teoria do
trabalhador livre como fundamento da propriedade privada.
Nenhum povo da América deixou de sentir
a chegada dos europeus. A guerra estabelecida com os povos do litoral
rapidamente se estendia pelo interior. Os povos sucumbiam ou fugiam. Ao
fugir não encontravam territórios desocupados, mas outros povos com
quem tinham que guerrear para disputá-los. Espremidos entre dois
inimigos, cada povo teve que fazer, a cada momento, sua opção: lutar
ou sucumbir. Se pudéssemos visualizar num grande mapa da América o
caminho traçado por cada povo até o lugar onde se encontra hoje,
seguramente veríamos trilhas de sangue por toda a imensidão das
florestas, cerrados, campos e montanhas.
Como se fosse pouco, os europeus
trouxeram a esta parte do mundo escravos cujo pensamento era libertar-se
dos grilhões, reunir-se com outros membros de seus povos e encontrar um
lugar para viver, escondidos dos índios em luta e da feroz perseguição
dos capitães do mato. É claro que procuravam um desvão, um lugar de
difícil acesso, um esconderijo para se fixar. Estes lugares, que no
Brasil passaram a se chamar quilombos, existiram e ainda existem em
muitos países da América. Os negros fugidos não tinham a mesma
intimidade com a natureza local que os índios e, por isso, a luta
contra eles era em geral desvantajosa.
O fato de a América ter se organizado em
Estados Nacionais muito cedo, quando a Europa o fazia, não ajudou muito
para inverter a sorte dos povos que aqui viviam. As guerras de independência
do início do século XIX, acabaram por não ter um cunho libertador,
apesar do esforço de homens como Tiradentes, Bolívar e Artigas. As
lutas, que tiveram o apoio guerreiro e decisivo dos povos indígenas, não
conseguiram construir Estados livres e realmente independentes, que
caminhassem segundo a vontade dos diversos povos que os compunham;
simplesmente trocaram o colonialismo ibérico pelo inglês. O novo
colonialismo teve que se adaptar a formas diferentes das usadas na África
e Ásia, onde negou a construção de Estados Nacionais, provavelmente
por saber que as elites locais não exerceriam o mesmo controle sobre os
povos, que as elites americanas, muito mais europeizadas.
Exceção é o Paraguai. Francia promoveu
junto com os indígenas uma verdadeira independência, expulsando os
proprietários de terra e os representantes dos interesses espanhóis e
ingleses. Com a força do trabalho livre e com uma política de impedir
a acumulação capitalista originária e predatória, industrializou o
país, garantiu excelente qualidade de vida ao povo, alfabetizado, bem
nutrido e profundamente nacionalista. Esta experiência de liberdade
durou quatro décadas. Inconformada com o exemplo paraguaio, a
Inglaterra incentivou e subvencionou a Argentina, o Brasil e o Uruguai a
promover uma guerra de destruição, até que tombasse o último homem
paraguaio. Hoje o Paraguai, destruído no século passado, guarda como
marca da experiência libertária o fato de todos os paraguaios usarem o
guarani como língua de comunicação familiar.
Criados os Estados Nacionais, esquecidos
os povos indígenas, sempre servindo a interesses estrangeiros, os
Governos passaram a ampliar as fronteiras agrícolas e buscar novas e
interessantes riquezas no interior, tratando os povos locais como embaraço
e entrave ao desenvolvimento. Nesta política, suas terras, vidas e
sociedades foram novamente violadas.
A imigração do século XIX e XX, por
outro lado, também trouxe outros povos diferenciados, expulsos de suas
terras originais e iludidos por enganosa propaganda. Aos imigrantes,
trabalhadores livres, foi reservado um tratamento igualmente desumano.
Sem direito a terra no século XIX, ao chegar como trabalhadores em uma
empresa agrícola, já estavam endividados. São inúmeros os relatos de
maus tratos, servidão e miséria que sofreram. Na busca por liberdade e
terras, acabavam sucumbindo ou tendo que disputar espaço com os já
apertados territórios indígenas.
O Estado Nacional, e seu direito
individualista, negou a todos estes grupamentos humanos qualquer direito
coletivo, fazendo valer apenas os seus direitos individuais,
cristalizados na propriedade. Assim, aquele indivíduo que lograsse
amealhar algo, formando uma propriedade, passaria a ser integrado ao
sistema, todos os outros não se integrariam jamais, continuando a ser
índios, quilombolas, pescadores, ribeirinhos, seringueiros, pequenos
posseiros, vivendo da extração, da coleta, da caça, da pesca, da
pequena agricultura de subsistência, mantendo fortes relações com a
comunidade para viver e não raras vezes, enquanto longe do contato da
civilização, vivendo com fartura e felicidade, mas sob permanente ameaça
porque, se estivessem sobre terras boas ou sobre alguma riqueza vegetal
ou mineral economicamente viável, passariam a ser objeto da cobiça, do
engano e da desintegração.
3 - A FALACIOSA POLÍTICA INTEGRACIONISTA
A política colonialista na América
pautou-se pela subjugação e integração dos povos que ia encontrando.
A subjugação cultural e econômica consistia em promover uma integração
forçada, religiosa e econômica. Ou isso, ou a destruição. A política
variou de acordo com a violência ou ambição de seu executor. Sincera
e preocupada com a salvação da alma e da sociedade Guarani, com os
Jesuítas, na bacia do Prata, ou violenta e arrogante com Pizarro e
Cortez, entre Incas e Astecas. Houve casos de tamanha ambição e
agressividade que grandes povos que detinham a tecnologia e o domínio
do ouro, como os Chibchas (Muíscas), foram arrasadoramente
exterminados, num genocídio cuidadoso e eficiente, como ocorreu na
conquista da Colômbia.
Os que sobreviviam poderiam ingressar na
vida do Reino como trabalhadores, semi-escravos ou integrantes de missões
de "pacificação" de outros povos. Por isso, provavelmente,
tantos povos participaram das lutas pela independência na América
Latina, sempre lideradas por espanhóis ou seus descendentes. No Brasil
-caso único- a independência foi feita sem luta, pelo filho herdeiro
do trono de Portugal, tendo sido uma opção de organização e divisão
do Estado e não uma tentativa de encontrar a liberdade.
A criação dos estados nacionais
latino-americanos, seguindo o modelo europeu, se deu com a redação de
uma Constituição que estabelecia um rol de direitos e garantias
individuais. Isto significou o esquecimento de seus índios e a omissão
de qualquer direito que não fosse a possibilidade de aquisição
patrimonial individual. Portanto aos índios sobrou como direito a
possibilidade de integração como indivíduo, como cidadão ou,
juridicamente falando, como sujeito individual de direitos. Se ganhava
direitos individuais, perdia o direito de ser povo. Apesar disto, os
povos continuaram a ser povos. Esta busca de integrar os indivíduos índios
fica patente na Carta Régia de 1808 que declarava guerra os índios
Botucudos do Paraná, e determinava que os prisioneiros fossem obrigados
a servir por 15 anos aos milicianos ou moradores que os apreendessem,
abrindo a oportunidade de, àqueles que depusessem armas e se
submetessem às leis reais e se aldeassem, poderiam gozar dos bens
permanentes de uma sociedade pacífica e doce debaixo das justas e
humanas leis (Souza Filho, 1988: 56).
As política públicas e as leis, porém,
se propuseram durante muitos anos a cumprir essa vontade dos Estados
nacionais: integrar os povos como cidadãos, sujeitos de direito,
capazes de negociar juridicamente, sem reconhecer seus direitos
coletivos. Nesta perspectiva o genocídio continuou, e cada tentativa de
integração desses povos significou a continuação do estado de guerra
imposto quando da chegada dos europeus. Os povos perdiam não só a
visibilidade, mas a própria vida.
Quando os Estados Nacionais escreveram
suas Constituições garantindo direitos, inauguraram um novo sistema
jurídico com algumas dicotomias, como o público e o privado, o sujeito
e o objeto de direitos, e pilares como a propriedade privada, a segurança
jurídica dos contratos livremente estabelecidos e o caráter técnico-jurídico
das soluções de conflitos de direitos.
Estes primados serviam a quem tinha
propriedade e mantinha contrato, especialmente como contratante; aos
povos diferenciados, aos que viviam em comunidades, este sistema não
servia. Na América Latina as políticas em relação aos povos indígenas
era de integração, quer dizer, a situação de indígena deveria ser
provisória. Muitas décadas depois de escritas as Constituições
Nacionais, começou a aparecer a proteção jurídica de alguns direitos
indígenas, sempre com um caráter provisório. No Brasil, no século
XX, as leis indígenas iniciavam expondo sua finalidade, que era a
integração dos índios à comunhão nacional, mas enquanto isso não
se desse, garantir-se-ia a eles alguns direitos. O artigo primeiro da
Lei Indígena vigente no Brasil estabelece que "regula a situação
jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o
propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional".
Não foi assim em outras partes do mundo.
O colonialismo na Ásia e África não deu o mesmo tratamento a povos
locais, mantendo as colônias sob políticas de apartheid, tanto mais
violentas quanto maior fosse a resistência do povo. Isto significava
que a integração individual somente se daria em casos excepcionais. A
conseqüência desta diferença é que na América os povos tiveram mais
dificuldade de manter sua vida segundo seus usos, costumes e tradições,
inclusive a solução de seus conflitos internos dependiam das leis dos
Estados Nacionais respectivos. A integração, no caso latino-americano,
porque era proposta de forma individualizada, significava a extinção
do povo.
No Brasil cada povo sofreu de modo
diferente esta política, porém dois eixos podem ser facilmente observáveis.
De um lado uma política de total omissão, como se os povos não
existissem ou fossem apenas um depósito de pessoas que seriam
integradas cedo ou tarde; de outro, uma política de proteção
consistente em criar refúgios afastados para os povos, desconsiderando
seus territórios tradicionais, aplicada especialmente na Amazônia.
Estes dois eixos serão estudados a seguir, com exemplos históricos que
demonstram a grande diversidade prática da política oficial.
4. OS POVOS INVISÍVEIS
O primeiro eixo corresponde à aplicação
de uma cultura assimilacionista clássica, na qual não há lugar para
coletivos que figurem entre o cidadão e o Estado. A invisibilidade com
que foram tratados os povos do litoral e do sul do Brasil é comparável
com a desconsideração dos povos peruanos imortalizada no herói
Garabombo, o invisível (Scorza, s.d.).
Para exemplificar esta situação de
invisibilidade e de retorno à existência ou ao renascimento (Souza
Filho, 1998) escolhemos três casos: o do povo Xetá, no oeste do Paraná;
o do povo Guarani, em quase toda a região sul e o dos povos do
nordeste, retratados pelos Pataxó Hãhãhãe, porque o Estado os
desconsiderou totalmente em suas políticas públicas, e fez questão de
negar sua existência por muito tempo. Os que sobreviveram vêm
resistindo de tal forma e com tal força que hoje se converteram nos
maiores conflitos de terras indígenas no Brasil, apoiados agora nos
direitos coletivos reconhecidos na Constituição de 1988.
4.1. O povo Xetá, cronologia de um genocídio
O povo Xetá não sobreviveu. Hoje são
cerca de dez indivíduos vivendo separados, alguns de empréstimo em
aldeias de kaigangues, outros em cidades da região. Mas antes de serem
exterminados pelos avanço impiedoso da fronteira agrícola, os Xetá
dominavam a selva da Serra de Dourados onde a chegada da Companhia de
Colonização Suemitsu Miyamura & Cia Ltda. se deu com a queima da
matas, porque não havia interesse na madeira, mas tão somente na
abertura de lotes para serem vendidos aos novos ocupantes.
A história do contato dos índios Xetá
é tão recente e os fatos ocorreram há tão pouco tempo, mas é tão
parecida com os relatos de Bartolomé de Las Casas no século XVI que
faz duvidar que o tempo tenha passado. Em 1952 os novos fazendeiros
capturaram um menino de oito anos, de nome Tikuein. A certeza de que
aquele território estava ocupado por um povo "primitivo" veio
no ano seguinte, com a captura de outro menino, que passou a ser criado
pelos brancos.
Em dezembro de 1954, seis homens nus e
desarmados fizeram contato espontâneo com fazendeiros, falaram e
gesticularam de forma tão calma e pacífica que os brancos não
reagiram, deixando-os partir. Nunca se pôde traduzir o que disseram
aqueles Xetás, nunca se soube se era apelo de clemência ou ameaça,
mas se têm certeza de que, se se tratasse de ameaça, jamais foi
cumprida, e se de clemência, em vão foi o pedido.
Em 1955, a Universidade Federal do Paraná
e o órgão nacional indigenista organizaram uma expedição que
localizou aldeias e objetos que hoje se encontram no Museu Paranaense,
mas nenhum índio. Talvez o que tivessem querido dizer no ano anterior
é que partiriam. No ano seguinte a expedição foi mais longe e
localizou dois grupos pacíficos, que se deixaram fotografar e filmar,
brincaram, riram, mas não acompanharam a expedição que queria arranchá-los
em uma fazenda próxima. Ficaram no mato. Poucos meses depois, um dos
grupos foi massacrado, num crime nunca perfeitamente explicado e jamais
diretamente julgado.
Deputados se mobilizaram para a criação
do Parque Nacional de Sete Quedas e, dentro dele, de uma área destinada
aos Xetá. Nunca foi criada a "reserva" Xetá, e poucos anos
depois este povo foi considerado extinto, acabando qualquer empecilho
para a legitimação da propriedade privada na região. A nova empresa
de colonização, a Companhia Brasileira de Colonização e Imigração
(Cobrinco), continuou o trabalho devastador, não deixando uma única árvore
em pé e com o último capão de mato morreu a esperança de encontrar
um Xetá vivo. O massacre tinha terminado. Hoje, ainda, uns poucos indivíduos
xetás sobrevivem fora de seu referencial cultural e da natureza que os
abrigava, aliás, irreconhecível natureza transformada em extensas
plantações de algodão e soja, crivadas de indústrias têxteis. Nem
mesmo a beleza das Sete Quedas permanece, inundada pela represa de
Itaipu, como se a natureza se calasse em reverência à morte do povo
que sempre esteve tão próximo.
A Funai, o órgão indigenista
brasileiro, no ano de 2000 organizou uma grupo de estudos para criar uma
área Xetá, com a idéia de abrigar a última dezena de indivíduos que
teima em sobreviver e manter a memória e a história de um povo marcado
para morrer.
4.2. O longo caminho guarani na busca da
terra sem males
Se a história do contato dos Xetá foi
fulminante, muito diferente tem sido a relação dos Guarani com a
"civilização". Os Guarani aparecem nos textos dos primeiros
cronistas espanhóis que subiram os rios Paraná e Paraguai. Foram
usados como escravos domésticos e estiveram presentes nas cidades de
Buenos Aires e Assunção desde século XVI. Durante esses quinhentos
anos chegaram a ter uma visibilidade tão grande que desencadeou um
conflito entre Portugal e Espanha, tendo como recheio a Companhia de
Jesus, até serem considerados praticamente exterminados, para voltar a
ser, em épocas mais recentes, o povo indígena mais populoso que habita
o Brasil. Os Guarani deram ao Paraguai uma língua nacional, o toponímio
de quase todos os acidentes geográficos, especialmente rios e
montanhas, e inúmeras cidades do sul do Brasil. Hoje chega a ser comum
encontrar guaranis com ar dissimulado pelas ruas de cidades litorâneas
em recatadas conversas em idioma próprio.
A trajetória do contato guarani é
curiosa. Os Jesuítas escolheram a região onde hoje se localiza a
cidade de Assunção, capital do Paraguai, como sua sede nas terras
meridionais, em 1607. À idéia de cristianizar os índios foi acoplada
a de construir, a partir da organização social guarani e da concepção
jesuíta de Estado e Direito, uma proposta organizativa independente que
ficou conhecida como as "reduções jesuíticas missioneiras".
Perseguidos pela violência bandeirante em território português e por
mandatários del Rei no espaço espanhol, os guarani acabaram não só
aceitando o cristianismo como a vida nas novas aldeias, que era um misto
de tradição guarani e organização social jesuíta, com alterações
profundas no modo de dividir o trabalho. Apesar disso, mantiveram suas
crenças, tradições e costumes, inclusive a língua. Com a derrota dos
Jesuítas e sua expulsão da América do Sul, os guarani também se
dispersaram por todo o território, convivendo com o avanço da
fronteira agrícola, sem se importar muito com os não-índios que
chegavam na região.
O povo guarani tradicionalmente manteve
seu território compartilhado com outros povos, conseguindo viver em
relativa harmonia. Grandes viajantes, buscavam a terra sem males que
sabiam estar a leste. A política oficial do Governo brasileiro em relação
a eles foi de total omissão, por isso mesmo são os grandes invisíveis.
Nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo,
foram considerados extintos e não tiveram praticamente nenhuma terra
demarcada ou reservada para seu uso exclusivo. No Mato Grosso do Sul,
suas terras foram ocupadas e destinadas a imigrantes brancos no início
do século, em programas de desenvolvimento. Os índios, que foram
pensados como mão-de-obra dos empreendimentos, aparentemente aceitaram
ser empregados das fazendas no intuito de continuar usando seus locais
sagrados (Ladeira, 1988).
A perspectiva que sempre tiveram era de
poder compartir seu território com outros povos, como sempre haviam
feito. Em sua cosmovisão, os deuses haviam criado a terra para eles, o
uso por outros povos, assim, era secundário. Sabiam, entretanto que
havia em algum lugar uma terra sem males, que buscavam incessantemente.
Não imaginavam que os novos habitantes tivessem hábitos tão
diferentes dos kaingangues, charruas e xoclengs, com quem compartiram
seu território deste tempos imemoriais. Não sabiam e nem acreditavam
que o uso da terra pelos novos habitantes era devastador e exigia a
morte dos animais e plantas nativas para a introdução de novas plantas
e bichos, todos domesticados, que nasciam e cresciam pela mão do homem.
Para sobreviver, e enquanto não ingressassem individualmente como
trabalhadores livres na sociedade local, os guarani receberam
coletivamente pequenos pedaços de terra onde foram dramaticamente
confinados. Nunca se integraram, porém.
Desta forma, este povo, senhor de vastíssimo
território e cultura, passou a viver, nos três Estados do sul, de empréstimo
nos territórios de outros povos e no Mato Grosso, em confinamentos.
Apesar disso, não deixaram de viajar na busca da terra sem males. Nesta
viagem, meio escondidos, iam saindo das matas abatidas e procurando
outras matas para viver. Cada vez foram se estabelecendo em lugares mais
remotos não atingidos pela propriedade privada. Hoje, parcelas
importantes dos Guarani estão localizadas em lugares considerados
"invioláveis" para a civilização, os Parques e outras
Unidades de Conservação.
Perplexos se perguntam, então, para onde
devem ir. Têm consciência que todo o imenso território que
imemorialmente consideram seu não é exclusivo nem nunca o foi, mas os
que hoje compartem essa ocupação têm um modo estranho de fazê-lo,
matam os rios, destroem as matas, acabam com os animais e os
criminalizam por viver nos últimos redutos de terra viva. Um conflito
de direitos então se estabelece de forma clara. De um lado os guarani
vivendo ou procurando viver nos últimos pedaços de terra florestada,
para eles sagrada, e por outro ambientalistas que, com a melhor das
intenções, estão preocupados com a manutenção das últimas matas,
que também chamam de santuários, que exigem a retirada de todos os
humanos.
O reconhecimento de direitos coletivos
indígenas e de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
conforme a Constituição brasileira de 1988, gerou um aparente conflito
entre o povo guarani e o direito coletivo de todos aos Parques e outras
unidades de conservação. É aparente essa contradição, como veremos,
porque a solução existe, embora desagrade o velho sistema de direitos
individuais de proprietários.
O povo Guarani é detentor de um vasto
conhecimento que abrange não só a terra, suas plantas e animais como o
céu e suas estrelas. O grande povo, tímido e recatado, é o exemplo da
invisibilidade. Sua luta não é só pela terra, por um território, mas
principalmente pelos direitos coletivos ao próprio desenvolvimento, o
que significa incluir a terra, mas vai além dela. A aceitação de
direitos coletivos pelo sistema tem ajudado este povo a sair da
invisibilidade.
4.3. O renascer dos Pataxó Hãhãhãe
O mais imponente exemplo, porém, de
renascimento de vontades coletivas indígenas se localiza
geograficamente no nordeste brasileiro. Lá, com quinhentos anos de
ocupação européia, grande parte dos povos foi extinta ou expulsa.
Povos contatados na década de 1950 no cerrado matogrossense, quase dois
mil quilômetros ao interior, comprovou-se serem oriundos do litoral
nordestino.
A história do povo Pataxó Hãhãhãe é
exemplar. Reconhecidos seus direitos territoriais, foi demarcada uma área
de aproximadamente 50.000 ha, na década de 30, no sul do Estado da
Bahia. Vinte anos depois a região transformou-se em grande produtora de
cacau, despertando a cobiça sobre aquelas terras. O Estado brasileiro
providenciou para que houvesse a integração dos índios Pataxó Hãhãhãe,
isto é, providenciou escola e emprego em lugares distantes, retirando
as poucas famílias remanescentes para outras áreas indígenas,
inclusive para uma delas que servia de prisão, ironicamente chamada de
Fazenda Guarani. Os Pataxó Hãhãhãe foram considerados extintos e
suas terras entregues a fazendeiros.
Menos de trinta anos depois, na década
de 80, os indivíduos Pataxó Hãhãhãe, que se imaginavam integrados e
felizes na vida de cidadãos brasileiros, trabalhadores livres, foram se
reagrupando, aos poucos e timidamente. Em ousada ação simbólica,
retomaram uma das fazendas que se havia constituído em suas terras e
nela se instalaram, iniciando uma luta que já dura 20 anos e causou
muitas mortes. Ao primeiro grupo foram se juntando outros, novas famílias
que se reconheciam e eram reconhecidas como pataxó hãhãhãe e, em júbilo,
lembravam os antepassados comuns e reafirmavam sua condição de índios,
de povo, de coletivo. O Estado e a elite local negavam, e negam até
hoje, essa condição, o que os obrigou a ingressar na Justiça pelo
reconhecimento dos direitos.
Há várias questões judiciais postas
sobre os direitos indígenas na região. A mais importante, que define o
caráter indígena de toda a área, está tão bem montada e provada que
tecnicamente é impossível ser desfavorável aos Pataxó Hãhãhãe.
Atualmente aguarda um desfecho na Suprema Corte. Enquanto isso, com ações
tão espetaculares como eficientes, o povo vai reconquistando seu antigo
território. Depois da retomada da primeira fazenda, em 1982, várias já
passaram pelo mesmo processo, tendo os índios obtido, na prática, algo
em torno de 5 mil hectares do total que lhes foi lhes foi atribuído na
década de 30 (Povos Indígenas, 1996 e 2000)
Em 1988, com a promulgação da Constituição,
os direitos destes índios ganharam um novo alento, mas a lentidão do
processo continuou. Em 1997, o assassinato do Hãhãhãe Galdino dos
Santos em Brasília, confundido com um mendigo e incendiado por
brincadeira macabra de filhos da elite local, deu uma inesperada
visibilidade à questão cujos direitos há quase dez anos haviam sido
reconhecidos pela Constituição mas não ainda implementados. Em 1999
os Pataxó Hãhãhãe sofrem nova violência quando são reprimidos pela
Polícia Militar do Estado da Bahia. Dois policiais morreram em uma
operação não explicada e os índios foram acusados como autores das
mortes. Durante o processo nada se provou, mas ficou a impressão de que
os policiais haviam sido mortos pelos próprios companheiros.
A mobilização dos Pataxó Hãhãhãe se
concentra em duas frentes: a jurídica no Supremo Tribunal Federal para
o reconhecimento de toda a terra e a fática, reocupando fazendas e
reagrupando ainda mais o povo. O povo deixou a invisibilidade, é hoje
reconhecido e presente, ainda que tenha uma larga caminhada pela frente
até que todos os seus direitos sejam reconhecidos.
A história Hãhãhãe se parece muito
com a de outros povos que conseguiram sobreviver no nordeste.
Desconsiderados pelo Estado, continuaram a existir, mutilados em sua língua,
machucados em sua dignidade, e não poucas vezes dispersos, recrutados
como indivíduos integrados à sociedade envolvente. Como os Hãhãhãe,
muitos outros povos do nordeste, se reagruparam e reconquistaram
pequenos espaços territoriais. Com o advento da Constituição de 1988
passaram a ancorar suas reivindicações nos direitos coletivos por ela
garantidos.
5. OS EQUÍVOCOS DA POLÍTCA DE CONTATO
NA AMAZÔNIA
Em nenhum dos três exemplos acima o
Estado organizou expedições para contatar os povos antes da chegada da
fronteira agrícola. Ao contrário, as expedições de cunho científico,
ou os estudos oficiais posteriores, nada puderam fazer frente ao choque
violento, desorganizado e arrasador feito pelas companhias
colonizadoras.
Algumas vezes, porém, especialmente na
Amazônia, o Estado brasileiro buscou proteger povos em determinadas
circunstâncias, favorecendo o alargamento das fronteiras agrícolas e
os concentrando em determinados lugares, como o Parque Nacional Indígena
do Xingú, ainda que ali não fosse o seu território original. Outras
vezes o Estado se viu obrigado a manter os povos no seu território
tradicional, mas à guisa de protegê-los, interferiu fortemente em sua
cultura, gerando situações novas para as quais não estava, nem está,
preparado para resolver.
Pode-se dizer, então, que enquanto fora
da Amazônia o Estado brasileiro desconsiderou os povos indígenas em
suas políticas públicas, sem qualquer preocupação com a destruição
étnica ocorrida, na Amazônia houve uma preocupação em contatá-los.
Este contato precedia a chegada da expansão da fronteira agrícola,
depois dela invariavelmente chegava uma estrada, grandes construções,
aventureiros procurando ouro e pedras preciosas, mercadores e retirantes
de outras terras em busca de fortuna ou simplesmente de um lugar para
acomodar seus sonhos. As frentes de contato, como eram chamadas, não
tinham uma proposta do que fazer depois de contatados, salvo a idéia
genérica que, vinha desde a colônia, de oferecer aos índios as doces
leis do império, isto é, a integração na comunhão nacional.
Como não havia nenhuma proposta, e ainda
não há, para os contatados, algumas iniciativas ganharam especial
relevância como a criação do Parque Indígena do Xingú onde os
contatados pudessem manter suas tradições. Daí que a política de
transferência de índios de seus territórios tradicionais para outras
áreas passou a ser costume público. Aliás costume proibido pela
legislação vigente que veda, desde 1973, a transferência de povos.
Depois da Constituição de 1988 esta política mudou, já não há mais
a procura e contato deliberado de novos povos, apesar de ainda existirem
muitos povos desconhecidos na Amazônia.
A Constituição de 1988 abriu a
possibilidade dos povos que foram vítimas desta política desagregadora
reclamarem seus direitos. É o caso do povo Panará que a seguir
apresentaremos. Outros povos da Amazônia, que não foram transferidos,
tiveram seus territórios reconhecidos, mas a falta de políticas públicas
e a ação desordenada levaram a profundas alterações sociais, como é
o caso das cidades indígena da Amazônia.
5.1. Capitulação e volta dos índios
gigantes
Os Panará tinham fama de ser grandes e
implacáveis guerreiros. Era um povo temido em toda a região. Vivia na
margem esquerda do rio que hoje leva o nome ocidental de Peixoto de
Azevedo. Um pouco antes do ano de 1970, o mundo civilizado sabia que o
rio tinha ouro na foz e pedras preciosas na cabeceira, mas sabia também
que para explorá-lo precisava remover a resistência panará. Ao não
saber sequer o nome do povo, foi lhe atribuído nomes estranhos, tirados
de outras línguas da região e fruto de relatos de seus inimigos
tradicionais: krenacarore, kranhacãrore, keen akarore, ou simplesmente
índios gigantes, já que um dos primeiros a ser capturado media 2,06m.
(Panará, 1998)
O Governo brasileiro, armado de um
discurso desenvolvimentista, resolveu abrir uma estrada que ligaria
Cuiabá a Santarém, cruzando de sul a norte o leste amazônico e
cortando ao meio o território panará. As máquinas, e atrás delas os
aventureiros, pioneiros, testas de ferro, representantes e negociantes,
chegaram até bem próximo ao território, às margens do rio Peixoto de
Azevedo. Do outro lado, os temidos índios gigantes.
Para convencer os índios a não
hostilizar a passagem da estrada e, naturalmente, dos ocupantes que
viessem a seguir, foi organizada uma expedição chefiada pelos irmãos
Villas-Bôas. Depois de cinco anos de intenso trabalho, algumas mortes e
muitas histórias, os índios gigantes foram "amansados" e
permitiram que a estrada passasse e por ela chegassem os exploradores de
madeira, ouro e pedras preciosas, gripe, sarampo, diarréia e fome.
Contam os sobreviventes que não tinham força sequer para enterrar os
mortos que iam ficando pelo caminho, quanto mais para caçar ou fazer
uma roça; passaram a viver da esmola dos passantes.
Em pouco tempo os índios gigantes não
eram mais do que uma pálida caricatura do altivo povo que apareceu em
fotos de primeira página da imprensa nacional pela primeira vez em
1973, 10 de fevereiro. Os números são aterradores: de uma população
estimada entre 300 e 600 indivíduos antes do contato da expedição
Villas Bôas, quando foram transferidos de suas terras em 1975 eram
apenas 79.
Moribundos, feridos em sua dignidade de
povo, humilhados e mendigando uma côdea de pão, foram transferidos de
seu fértil território para uma aldeia no centro do Parque Indígena do
Xingu (Povos Indígenas, 1996 e 2000). Por ironia ou crueldade histórica,
a aldeia emprestada para sua nova morada pertencia a um grupo de
tradicional inimizade, os caiapó, com quem outrora mantiveram limites
de respeito à custa de guerras e trocas de mútua agressão. Os panará
viveram humilhados na casa dos inimigos durante vinte anos, alimentando
a esperança de um dia voltar ao seu território, reconquistar a terra,
a casa e o convívio com os animais, plantas e rios conhecidos.
Vinte anos depois, em 1995, o povo Panará
iniciou a luta concreta pelo retorno à casa. Animados com algumas vitórias
de outros povos que haviam sido alojados no Xingu e alguns, como os do
nordeste, que tinham esperança de recuperar antigos territórios, os
Panará empreenderam uma viagem a sua antiga região e encontraram ainda
preservado um quinto de seu território original.
Organizados e com apoio de ONGs como o
Instituto Socioambiental (ISA), ingressaram na Justiça contra o Estado
brasileiro e contra a Funai - Fundação Nacional do Índio - com duas ações
diferentes, a primeira reivindicando a terra e outra indenização pelos
danos causados.
Na primeira ação houve um acordo e o
Estado reconheceu os direitos sobre a parte ainda preservada do território
original, porque o restante já estava ocupado, inclusive por cidades. A
Segunda ação, também proposta com o apoio do Instituto Socioambiental
(ISA), reclamava indenização do Estado Brasileiro e de seu órgão
indigenista pelos maus tratos no momento do contato. O Tribunal
reconheceu o caráter criminoso e ilegal do contato e da remoção dos
índios para o Parque Indígena do Xingu, e determinou o pagamento de um
valor monetário aos índios sobreviventes. A decisão ainda não foi
cumprida por questões formais, mas já está julgada e deve ser
cumprida em curto prazo.
Esta decisão mostra uma mudança no
comportamento do Judiciário, porque a ação foi proposta fundada nos
direitos coletivos estabelecidos na Constituição de 1988, embora os
atos tenham sido praticados antes dela.
5.2. Aldeias virando cidades: uma nova
ameaça aos direitos indígenas
Quando a chegada da fronteira agrícola não
exigia o extermínio ou deslocamento, os povos se mantinham mais ou
menos íntegros em seus territórios que foram, por ações judiciais ou
por cumprimento direto da Constituição, demarcados. É o caso de
muitos povos da Amazônia, entre eles o povo Ticuna. Embora tenham
ingressado com ação judicial para ter seus territórios reconhecidos,
os Ticuna não tiveram dificuldade de vê-los demarcados pelo Governo
brasileiro. Suas terras foram demarcadas em meados da década de 90,
isto é, com a Constituição em pleno vigor e com a política
indigenista já alterada, com os direitos coletivos respeitados.
O povo Ticuna é um dos mais populosos
dentre os povos indígenas amazônicos e habita um vasto território que
incluiu a triple divisa Brasil, Colômbia e Peru. Nunca houve um avanço
muito grande da fronteira agrícola para aquela região, embora a navegação
seja aberta a grandes embarcações, tendo em vista o porte do Rio Solimões.
Apesar disso, Foi necessário que os Ticuna ingressassem em Juízo para
ver reconhecidas suas principais terras.
Os territórios são extensos, mas o órgão
indigenista e as missões religiosas concentraram seus trabalhos,
criando infra-estrutura de atendimento, em pequenas aldeias na margem do
grande rio. No decorrer dos últimos anos começou a haver uma concentração
demográfica sem precedentes naquelas pequenas aldeias portuárias.
A concentração, entretanto, não se deu
pela chegada de colonos ou estranhos, mas pela vontade do próprio povo
de se juntar onde fosse mais fácil receber os benefícios do contato. Tão
assustadoramente cresceram essas aldeias que atingiram mil, dois mil e
até quatro mil habitantes. De fato, a chamada Belém do Solimões é
uma verdadeira cidade, com quatro mil pessoas vivendo em ruas mal-traçadas,
sem a mínima infra-estrutura urbana, sem saneamento, calçamento, água
e outros serviços.
As cidades ticunas são bastante visível
porque estão à margem do grande rio navegável, mas não é este fato
que determina o fenômeno. A urbanização indígena na Amazônia começa
a se espalhar atingindo regiões muito distante e quase inacessíveis.
Na região do alto Rio Negro, próxima a
divisa do Brasil e Colômbia, Iauareté é uma cidade de dois mil
habitantes, sem infra-estrutura e com uma população multi-étnica (Andrello,
s.d.). Esta cidade cresceu tanto que alguns pequenos comerciantes se
instalaram nela, imediatamente após a demarcação da área (1998), os
índios expulsaram os brancos e passaram a ter controle sobre ela.
Na região de Raposa Serra do Sol,
fronteira com a Venezuela e Guianas, pelo menos mais duas cidades indígenas
crescem e enfrentam problemas muito sérios. Nestas cidades há população
não-indígena local, ainda que pouca, e o governo do Estado de Roraima
transformou um delas em sede de Município. O território indígena onde
se localizam estas cidades não está demarcado e os políticos,
anti-indígenas, locais lutam para que não haja a demarcação usando
como argumento, exatamente, a existência das cidades.
Todos estes povos ainda vivem de forma
tradicional, com pouquíssimos bens de consumo, mas com impensados
problemas urbanos. A legislação brasileira não oferece solução, não
existe uma proposta de organização política, nem de representação,
nem mesmo de coleta de impostos. Estas são situações novas, para as
quais as populações indígenas locais buscam uma saída. É
interessante observar que a discussão na Raposa Serra do Sol, onde o
território ainda não é demarcado, há uma corrente que defende a
manutenção da organização estatal existente com a exclusão dos usos
não indígenas.
Todos os exemplos citados neste e no
anterior capítulo dão apenas uma pálida mostra da diversidade
cultural brasileira, com seus mais de duzentos povos diferentes e mais
de 170 línguas faladas, mas é suficiente para abrir uma reflexão sócio-jurídica
dos encontros e desencontros do Estado Nacional, da soberania, cidadania
e relações internacionais, inclusive das conseqüências da globalização
nessas parcelas do mundo que insistem em ser locais.
6. OS NOVOS DIREITOS NA AMÉRICA LATINA.
Os Estados Nacionais latino-americanos e
sua história pendular, que alterna períodos de ditaduras com
democracia formal, são muito parecidos entre si. O colonialismo português
e o espanhol tiveram traços comuns de tempo e violência. O momento
histórico das guerras de independência também foram mais ou menos
sincronizados e os personagens se parecem, assim como se frustraram as
mesmas esperanças. A relação destes Estados constituídos no começo
do século XIX com os povos originários em seus territórios também são
similares, herdaram um passado colonial comum, usaram os povos nas
guerras de independência, acreditaram que poderiam integrá-los como
cidadãos garantindo-lhes direitos individuais, inclusive de propriedade
da terra, desconsiderando seus usos, costumes, tradições, línguas,
crenças e territorialidade; quando em conflito, enfrentaram-nos em
guerras sórdidas ou repressão direta. Os direitos dos povos indígenas,
por serem coletivos, foram omitidos das legislações escritas.
Durante a guerra fria, grande parte dos
Estados da América Latina se convertem em ditaduras militares para
reprimir os movimentos populares. Assim, as décadas de 60 e 70 se
caracterizam por Estados Militares, e a questão indígena passou a ser,
também, uma questão militar. Na década de 80 abriu-se um longo
processo de distensão, marcado por discussões e que levou os países a
reescreverem suas Constituições Políticas. As organizações indígenas
e a sociedade civil participaram do processo de discussão das novas
constituições, defendendo direitos coletivos, reconhecidamente
fundados na diversidade cultural de cada país. A ameaça da hecatombe
ambiental promoveu o reencontro dos povos com suas localidades, e grupos
organizados de ambientalistas se aliaram às organizações indígenas e
indigenistas nas reivindicações coletivas. As novas Constituições
foram surgindo com um forte caráter pluricultural, multi-étnico e
preservador da biodiversidade. Ao lado do individualismo homogeinizador,
reconheceu-se um pluralismo repleto de diversidade social, cultural e
natural, numa perspectiva que se pode chamar de socioambiental.
Cada Constituição estabeleceu, assim,
direitos coletivos ao lado dos absolutos e excludentes direitos
individuais. As populações locais discutiram o alcance desse novo fenômeno
que viria a se contradizer com a crescente visão hegemônica do
capitalismo pós muro de Berlim, que propunha o fim das vontades e
culturas locais.
Mais uma vez os Estados Nacionais
latino-americanos reafirmaram suas semelhanças. Os sistemas jurídicos
constitucionais, antes fechados ao reconhecimento da pluriculturalidade
e muti-etnicidade, foram reconhecendo, um a um, que os países do
continente têm uma variada formação étnica e cultural, e que cada
grupo humano que esteja organizado segundo sua cultura e viva segundo a
sua tradição em conformidade com a natureza da qual participam, têm
direito à opção de seu próprio desenvolvimento.
Estes novos direitos têm como principal
característica o fato de sua titularidade não ser individualizada. Não
são fruto de uma relação jurídica, mas apenas uma garantia genérica,
que deve ser cumprida e que, no seu cumprimento, acaba por condicionar o
exercício dos direitos individuais. Isto quer dizer que os direitos
coletivos não nascem de uma relação jurídica determinada, mas de uma
realidade, como pertencer a um povo ou formar um grupo que necessita ou
deseja ar puro, água, florestas e marcos culturais preservados, ou
ainda de garantias para viver em sociedade, como trabalho, moradia e
certeza da qualidade dos bens adquiridos.
Esta característica os afasta do
conceito de direito individual concebido em sua integridade na cultura
contratualista ou constitucionalista do século XIX, porque é um
direito sem sujeito. Ou dito de maneira que parece ainda mais confusa
para o pensamento individualista, é um direito onde todos são
sujeitos. Se todos são sujeitos do mesmo direito, todos tem dele
disponibilidade, mas ao mesmo tempo ninguém pode dele dispor,
contrariando-o, porque a disposição de um seria a violação do
direito de todos os outros.
Se fizermos uma revisão de cada uma das
constituições reescritas desde a década de 80, veremos que são muito
parecidas, embora possam usar terminologias diferentes. A paraguaia, por
exemplo, além de reconhecer a existência dos povos indígenas, se
declara como um país pluricultural e bilingüe, considerando as demais
línguas patrimônio cultural da Nação (Paraguai, 1992, art. 140); a
colombiana estabelece que "El Estado colombiano reconoce y protege
la diversidad étnica y cultural de la Nación colombiana" (Colômbia,
1991, art. 7.).
Como um sinal dos tempos, as novas
Constituições americanas foram reconhecendo a sociodiversidade. O México
(1992) assume que tem uma "composição pluricultural"; o Peru
em sua Constituição outorgada de 1993 não vai tão longe e apenas
admite como línguas oficiais ao lado do castelhano o quechua, o aimara
e outras línguas "aborígenes"; finalmente em 1995, a Bolívia,
com sua fulgurante maioria indígena, admite romper a tradição de silêncio
integracionista e se define como multi-étnica e pluricultural, e a
Argentina determina a seu Congresso reconhecer a preexistência de povos
indígenas.
Outras, embora não usem a palavra
diversidade ou pluralismo, definem os direitos dos povos indígenas e os
protege, como a brasileira (1988) e a nicaragüense (1987).
Este mesmo reconhecimento aparece nos
acordos internacionais, como o Convênio 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 26 de junho de 1989. Tanto a
ONU como a Organização dos Estados Americanos (OEA) têm discutidos
declarações com este mesmo sentido. Esta concordância não significa
que os países latino-americanos têm aceitado as normas internacionais,
o que demonstra a insinceridade das elites locais que sempre imaginam
que suas Constituições podem deixar de ser aplicadas por falta de leis
que as regulamentem, e por isso permitem a inclusão de avanços na
Constituições para depois restringir sua regulamentação. Na
realidade, a aceitação das normas internacionais, especialmente a
Convenção 169, significaria a regulamentação de suas avançadas
constituições, que podem ser apenas declarações de princípios
inaplicáveis frente a interesses da economia global, como veremos a
seguir.
Esses direitos não são exclusivos de
povos indígenas, porém. As constituições da Colômbia e do Brasil
abrem brechas para o reconhecimento de direitos das comunidades negras
tradicionais, e todas as que reconhecem direitos coletivos admitem,
genericamente, que outras comunidades podem reivindicá-los. A quebra do
paradigma individualista está constitucionalizada, e sua efetivação
é a questão colocada às comunidades, movimentos e grupos locais.
7. A APLICAÇÃO DO DIREITO E SUAS
DIFICULDADES.
Apesar de transcorrida uma década do
reconhecimento desses direitos coletivos, não se pode dizer que os
progressos em sua aplicação sejam notáveis. Os direitos territoriais
indígenas nas regiões fora da fronteira agrícola, especialmente na
Amazônia, passaram a ser reconhecidos com mais facilidade do que no período
anterior, é verdade. O exemplo Panará é uma mostra disso. Apesar de
terem tido que recorrer à Justiça, os Panará obtiveram o
reconhecimento de direitos sobre o território donde anteriormente
haviam sido retirados. Há outros exemplos, como a Área Indígena
Yanomami e o território dos povos do Alto Rio Negro, entre muitos
outros.
Nas regiões onde há pressão política
e interesses econômicos mais fortes o avanço não é tão
significativo. Fator importante na aplicação das normas jurídicas
protecionistas tem sido a visibilidade internacional dos povos indígenas.
Quer dizer, aqueles povos que logram chamar atenção internacional para
seus problemas locais têm obtido mais sucesso na efetivação de normas
protecionistas.
O Poder Judiciário tem tido um papel
preponderante na aplicação desses novos direitos, mas tem mantido um
posição conservadora na maior parte das vezes. As ferramentas jurídicas
estão razoavelmente construídas na América Latina, e acrescidas dos
instrumentos que servem a outros direitos coletivos reconhecidos
genericamente à população, como o meio ambiente ecologicamente
equilibrado, consumidores e patrimônio cultural. Apesar disso, são
pequenos os ganhos das populações indígenas diretamente da Administração
Pública. Em geral têm sido necessário ingressar em Juízo para obtê-los,
como no caso Panará. Isto limita a atuação dos povos indígenas que
precisam criar organizações segundo os parâmetros ocidentais -não
tradicionais- para conseguir o reconhecimento de seus direitos, mesmo na
Amazônia.
Fora da Amazônia a situação é ainda
mais difícil. Alguns povos do nordeste tiveram o reconhecimento de
existência, isto é, passaram a ser tratados como povos indígenas,
status que tinham perdido frente ao Estado Nacional pela sua aparente
integração à população regional. Ao reconhecer a sua existência o
Estado lhes atribuiu um pequeno e insuficiente território, que não
basta para o desfrute cultural e nem mesmo para a sobrevivência. A
ampliação do direito, porém, abriu novas possibilidades. A ação
judicial que travam os Pataxó Hãhãhãe, que está para ser decidida
no Supremo Tribunal Federal, ganhou novo fôlego, mas continua em trâmite
exageradamente lento. Do ponto de vista técnico, é impossível que os
Pataxó Hãhãhãe não venham a ter um resultado positivo, a questão
é quando; vivem em uma região de forte enfrentamento político e têm
inimigos poderosos entre a elite local.
O Supremo Tribunal Federal já julgou,
depois da Constituição de 1988, outras ações com as características
da questão Pataxó Hãhãhãe. Uma delas, a ação Krenak, no Vale do
Rio Doce, em Minas, ganhou notabilidade histórica ao devolver terras
indígenas que haviam sido distribuídas a colonos na década de 50, com
as mesmas características da Pataxó Hãhãhãe, ao povo Krenak. Falta
apenas vontade política à mais alta Corte do país para tomar a decisão
e enfrentar a situação política regional. É verdade que no Vale do
Rio Doce os interesses eram de pequenos sitiantes, que no máximo
influenciavam os governos municipais locais enquanto entre os Pataxó Hãhãhãe,
na Bahia, a região cacaueira é influenciada pelo poder político de
influência nacional.
Além da conjuntura política, as
disputas judiciais por terra no Brasil continuam fortemente
influenciadas pelos direitos individuais estruturados no século XIX,
que têm uma opção preferencial pela propriedade individual da terra.
O caráter individualista e absoluto da propriedade da terra têm sido o
traço distintivo do direito ocidental e a matriz do direito civil
latino-americano. Os povos deste continente tentaram no século XX fazer
leis que pudessem promover a alteração desse caráter absoluto, desde
a primorosa Constituição Mexicana de 1917, passando por diversas leis
de reforma agrária, inclusive a forte lei boliviana de 1952, até a
experiência chilena de Salvador Allende, na década de 70, cujo fim trágico
e violento estarreceu a América.
Com exceção de Cuba, nenhum outro país
pôde seriamente colocar em questão a propriedade da terra. As leis
oriundas da revolução boliviana de 1952 e leis colombianas e
venezuelanas posteriores puderam oferecer interpretações teóricas que
chegaram a estruturar uma concepção nova de propriedade da terra,
marcada pela idéia de sua função social. Entretanto, mesmo esta
concepção acabou por ser absorvida pelas elites a tal ponto de
identificar a função social com a produtividade capitalista, quer
dizer, considerar que cumpria a função social toda a terra que
oferecesse renda pela produção. Nesta idéia fica de fora a função
social propriamente dita, quer dizer, o seu papel integrador de culturas
e protetor do meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantidor da
vida no planeta.
Com o advento dos direitos coletivos,
passou a ficar cada vez mais claro que a terra tem que cumprir esse
papel social, ou socioambiental, de protetor do meio ambiente e das
culturas a ele associadas. Mas a exclusividade no domínio de um território
é o marco da cultura jurídica latino-americana, seja do ponto de vista
do direito público, seja do ponto de vista do direito privado, aquele
disputando soberanias absolutas e detalhadamente demarcadas, inclusive
em regiões desconhecidas, este transformando toda terra em lotes
privados. Por isso, apesar das mudanças legais trazidas pelas Constituições,
ainda é muito difícil que os juízes interpretem as leis contra
interesses da propriedade privada.
Esta posição dos juízes explica a
maior facilidade de decisões favoráveis aos índios nas áreas sem
predominância da propriedade privada instituída, como a Amazônia.
Dentro das fronteiras agrícolas a cultura privatista já está
estabelecida, gerando maior dificuldade. As organizações indígenas e
os povos enfrentam interpretações restritivas a seu direito. A questão
é colocada de tal forma que na Amazônia, na maior parte das vezes, o
conflito se dá entre populações tradicionais, com direitos coletivos
garantidos, e invasores, aventureiros, traficantes, garimpeiros e outras
pessoas sem qualquer direito; dentro da fronteira agrícola, porém, o
confronto se estabelece, em geral, entre as populações tradicionais
que foram usurpadas de seus direitos pelos Estados e as pessoas que
receberam essas mesmas glebas, como terras devolutas. Assim, o confronto
se dá entre populações tradicionais e proprietários individuais,
considerados pelo sistema como legítimos.
Aliás, este conflito está presente na
raiz do novo decreto que regula o procedimento administrativo para a
demarcação das terras indígenas, porque o Governo Federal determinou
que, ao se reconhecer determinada terra como indígena, há de se
chamar, por edital, todos os interessados para saber se existe ou não
direito individual sobre ela. A reinterpretação dada pelo Governo
Federal veio a dificultar o processo de demarcação e, inclusive, pôr
em dúvida todas as demarcações anteriores. A edição do decreto foi
uma vitória dos interesses proprietários anti-indígenas, mas a
mobilização dos índios, suas organizações e organizações de apoio
fez com que os resultados práticos contra os índios não se dessem no
volume temido.
Talvez o exemplo mais claro da
dificuldade de serem regulamentados os direitos coletivos estabelecidos
na Constituição seja a história da Lei geral sobre os povos indígenas
no Brasil. O antigo Estatuto do Índio, de 1973, ainda em vigor, tem um
nítido corte individualista, integracionista e juridicamente civilista,
por isso mesmo atribui às instituições jurídicas de proteção um
caráter provisório, isto é, até que os índios individualmente
passem à categoria de integrados à comunhão nacional, como cidadãos
sem qualquer outra qualificação ou diferenciação étnica, isto é,
deixem de ser índios.
Desde a promulgação da Constituição
as organizações indígenas e seus aliados começaram a se mobilizar no
sentido de reescrever a Lei geral, que deveria se chamar Estatuto dos
Povos Indígenas, com conteúdo de direitos coletivos. Muitas versões
foram escritas e muitas discussões realizadas. Uma versão de consenso
foi aprovada em Comissão do Congresso Nacional, mas por ordem direta do
Presidente da República, eleito para o primeiro mandato, Fernando
Henrique Cardoso, foi tirada de pauta antes que ele tomasse posse, em
dezembro de 1994. Desde então, por um estranho e não confessado
interesse governamental, o Estatuto ficou numa espécie de
"geladeira" legislativa.
Havia alguns pontos polêmicos, como o
uso dos recursos naturais das florestas, a mineração e a proteção
dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Entretanto
não parece ter sido estes pontos que estão a dificultar a aprovação
ou a tramitação do projeto. Somente em 1999 foi retomada a discussão
legislativa do Estatuto, e ficou claro que o principal entrave para sua
aprovação, por parte do Governo, era a velha e superada questão
integracionista. O Governo queria manter a provisoriedade das culturas
indígenas, mantinha uma posição conservadora, anterior à Constituição
de 1988. Os assessores diretos do Presidente da República defendiam a
concepção individualista da integração pessoal e a perda da
identidade indígena, concepção seguramente anterior ao próprio
Estatuto de 1973.
Teve que haver a interferência direta do
Presidente da República e uma reunião com as principais lideranças
indígenas do país, em abril do ano 2000, para que a assessoria cedesse
e permitisse a retomada do processo legislativo para a elaboração de
um Estatuto que desse aplicabilidade e eficácia plena às normas
constitucionais.
Este fato demonstra a extrema dificuldade
de aplicação dos atuais princípios em que se baseia a nova relação
entre os povos indígenas e o Estado brasileiro. Os setores
conservadores mantêm a firme idéia de que os índios são um percalço
no processo de desenvolvimento, e usam todo o poder para diminuir,
restringir ou limitar a possibilidade não só de demarcação das
terras, mas de uso delas segundo os usos, costumes e tradições de cada
povo. Compondo com os setores conservadores estão os militares e os
interesses econômicos regionais, que muitas vezes encontram guarida em
Juízes, Tribunais e altos funcionários do Governo, como aquele grupo
de assessores do Presidente da República.
Por outro lado, tem ganhado força entre
os povos indígenas este direito de ser reconhecido como povo. Tem-se
visto nestes anos de Constituição grandes mobilizações de povos e de
grupos de povos na busca da aplicação dos direitos coletivos. Aos
exemplos já citados, entre eles o dos Panará, se somam muitos outros,
como o das organizações indígenas dos povos amazônicos, dos povos do
nordeste, dos guaranis, etc.
As atuais organizações e movimentos
reivindicatórios indígenas têm uma diferença muito grande com os
anteriores a 1988. É que o atuais movimentos reivindicam direitos que
podem ser compreendidos pelo sistema, já que sempre propugnaram por
direitos coletivos. Antes da Constituição eram pedidos utópicos,
sonhos que ganhavam o status de reivindicações. Estes sonhos entraram
no Direito, passaram a fazer parte do que os juristas chamam de catálogo
dos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição e podem, a
partir de então, ser reivindicados não mais como esperança política,
mas concretização jurídica, que sem deixar as ruas ganham os átrios
dos Tribunais, e devem ser reconhecidos pela Administração Pública,
mas quando não o são, podem ser garantidos em decisões judiciais.
Isso fez com que o movimento indígena e também o popular, ganhasse
mais uma nova e importante dimensão, a jurídica.
8. A TERRITORIALIDADE COMPARTIDA
Os nomes que o Direito brasileiro, no
decorrer dos tempos, deu aos territórios indígenas é revelador do
conteúdo que se atribuía ao direito outorgado. Reserva era o nome
utilizado pela Lei de Terras de 1850, Lei n° 601, e guardava a idéia
de reservar um espaço territorial aos povos que fossem encontrados na
colonização e distribuição chamada de ordenada das terras a quem
tivesse capital para nelas investir. Nas terras reservadas os índios
deveriam ficar até que aprendessem um trabalho "civilizado" e
pudessem ser integrados à vida nacional. Embora reservados, os direitos
eram provisórios, mas sempre ligados a um espaço territorial.
A palavra "área" foi também
usada, para finalmente chamar de "terra indígena". O nome
território nunca foi usado e, ao contrário, foi intencionalmente
negado. É claro que há uma não muito sutil diferença entre chamar de
terra e território. Terra é o nome jurídico que se dá à propriedade
individual, seja pública ou privada; território é onome jurídico que
se dá a um espaço jurisdicional. Assim, o território é um espaço
coletivo que pertence a um povo. A mesma ideologia que nega a existência
de povo, como veremos adiante, nega o uso do termo território.
Apesar disto, os direitos indígenas na
América Latina sempre está ligado a um espaço territorial, receba o
nome que seja.
A idéia de uma reserva provisória
enquanto os indivíduos aprendem um trabalho integrador, que na maior
parte dos casos os transformaria em camponeses, está ultrapassada. O
novo momento constitucional é marcado pelo reconhecimento de direitos
coletivos, que incluem direito a um caminho próprio de desenvolvimento
e a um território. O limite deste direito coletivo é a auto-determinação
de transformar-se em Estado. O temor dos setores conservadores,
especialmente dos militares, é que as lutas por direitos indígenas se
transforme em lutas por libertação nacional ou lutas de independência,
como se costuma dizer na América. Daí o verdadeiro terror em chamá-los
de povos, usar a palavra território e a categoria auto-determinação.
A Constituição Boliviana reconhece
todos os direitos dos grupos indígenas como direitos de povos, mas não
os chama assim. Garante que as autoridades naturais das comunidades indígenas
podem exercer funções de administração e aplicação de normas próprias,
inclusive na solução alternativa de conflitos, mas chama seus territórios
de "tierras comunitarias de origen" (Bolívia, 1995, art.
171). Aliás, no ano de 1994 foi promulgada a Lei de Participação
Popular que tinha como objetivo "reconhecer, promover e consolidar
o processo de participação popular, articulando as comunidades indígenas,
camponesas e urbanas, na vida jurídica, política e econômica do país."
Para isso estabelecia como base da participação popular, a fixação
dos cidadãos a um espaço territorial determinado e, a partir dele, a
organização política. A unidade de participação popular passaria a
se chamar, assim, OTB - Organização Territorial de Base.
A busca pela participação, pelo
reconhecimento de direitos coletivos, é comum a praticamente todos os
Estados latino-americanos, que têm reinventado o sistema jurídico para
reconhecer estas garantias coletivas e possibilitar novas perspectivas
de vida local. Entretanto, o local, na lei latino-americana, está
sempre vinculado a um espaço territorial. Os povos e os direitos que
extrapolam um espaço territorial determinado ficaram fora do sistema. O
reconhecimento de direitos coletivos dos povos indígenas fica, assim,
limitado a um território e se faz necessário, para o sistema, localizá-lo
em um território.
Exatamente essa relação de direitos
coletivos com um território está na raiz dos limitados direitos das
populações de origem africana, que tanto no Brasil como na Colômbia têm
direitos reconhecidos em espaços demarcados, como remanescentes de
antigas comunidades que viviam escondidas do sistema escravista. Este
direito nã se estende aos demais descendentes.
Na proteção dos direitos coletivos
ambientais, também recentemente criados, a territorialidade tem a mesma
importância. O sistema jurídico passou a proteger espaços
territoriais que pode chamar de unidades de conservação. Os espaços
territoriais são definidos pela função que exercem ou podem exercer,
como as matas ciliares, ou porque são remanescentes de biotas
preservadas. As áreas preservadas em geral são terras por qualquer razão
inacessíveis ou ainda fora da fronteira agrícola. Entre as causas da
inacessibilidade está a presença de povos indígenas que lutam pela
sua posse, como é o exemplo de largos trechos da Amazônia.
Assim, quando o povo e seus direitos estão
circunscritos a um território, apesar das dificuldades já expostas,
tem sido possível reconhecê-los e garanti-los. Uma grande dificuldade
surge quando não há essa circunscrição territorial, como no caso dos
ciganos, ou a circunscrição não é clara, como no caso dos Guarani.
De fato, há povos que sempre entenderam
a possibilidade de seu território ser partilhado por outros povos,
convivendo num mesmo espaço, com mútuo respeito, culturas diferentes.
Muitas terras indígenas demarcadas abrigam mais de um povo, como a
Terra Indígena do Alto Rio Negro, com suas vinte etnias diferentes. O
problema de compatilhar o território é exclusivamente dos povos que o
habitam, desde que esteja demarcado e reconhecido pelo respectivo Estado
Nacional (Povos Indígenas, 2000: 243).
Não é mesma coisa com o território
Guarani, como já se viu. Outros povos, como os kaingang e os xokleng,
viviam no espaço que os guarani consideravam ser seu. Por isso não foi
muito grave que os brancos também chegassem e ocupassem parte dessas
terras. A diferença é que os brancos não só ocuparam, mas alteraram
em profundidade a biota, trocando a natureza, isto é, substituindo as
plantas e os animais, alterando os acidentes geográficos, derrubando
florestas, cortando morros, construindo lagos, secando mangues.
Os guaranis, que pelo seu direito
compartiam territórios, começaram a se sentir cada vez mais expulsos
de sua própria terra porque já não podiam reconhecer os locais onde
se manifestavam os espíritos dos antepassados e recebiam os conselhos e
punições dos deuses. A terra já não era a mesma e com seu
desaparecimento já não tinha sentido compartir o território. Os
guaranis, viajantes do tempo e do espaço, buscam o direito de continuar
vivendo onde seu território existe com flora, fauna e acidentes que
conhecem e cuja linguagem podem entender e se fazer entender. Esses
lugares, entretanto, são os mesmos que a civilização ou o direito
atual considera bens de direito coletivo, bens de todos, guarda e mostra
do meio ambiente ecologicamente equilibrado. E aí, dizem os intérpretes,
não se aceitam seres humanos; as unidades de conservação, ou os espaços
que sobraram da devastação, devem ficar incólumes.
Dois direitos coletivos, aqui, se
conflitam. Mas é um falso conflito, porque ambos buscam guardar,
preservar um território contra a devastação da propriedade privada,
do direito individual da acumulação dos bens, inclusive florestais. É
falso conflito porque os índios não guardam apenas a floresta, mas o
conhecimento a ela associado, inclusive os segredos de seu renascimento.
Os guarani conhecem cada planta e suas associações com animais e solos
e, ao ser reforçado este e aquele direito coletivo, confrontado com os
direitos individuais e suas estranhas patentes, é possível sonhar que
um outro Direito pode ser inventado, que da aridez do velho direito
individual pode nascer uma rosa.
Ao se admitir direitos coletivos de
povos, surge no horizonte a possibilidade de reivindicar direitos que não
são territoriais, embora as vezes apareçam ligados a um espaço de
terra, como o dos guarani. Exemplo típico é o da parcela de povo
pankararu, originário do nordeste brasileiro, mas que imigrou para o
sudeste, acabando por viver em favelas de São Paulo. A reivindicação
desta parcela não é voltar para seu território tradicional, onde vive
a maioria de seus parentes, mas conseguir um espaço cultural rural em São
Paulo, onde possam cultivar plantas sagradas e praticar seus rituais
longe de olhos curiosos de vizinhos amedrontados e não raras vezes
violentos.
Outros povos que jamais reivindicaram
território exclusivo, mas que começam a reclamar direitos, na medida
em que vislumbram a possibilidade de uma vida menos secreta, por que
menos perigosa, é o cigano.
Por outro lado, o problema não termina
quando a terra é demarcada, ainda que em dimensão adequada ao povo que
a habita, como ficou demonstrado na urbanização desordenada e não
prevista da criação de cidades indígenas na Amazônia.
9. OS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS,
CULTURAIS E AMBIENTAIS.
É claro que os direitos coletivos,
especialmente dos povos indígenas, não se limitam à questão do
território, ultrapassam-no e atingem o âmago do direito ao
desenvolvimento, ou aos direitos humanos econômicos, sociais, culturais
e ambientais. A diferença destes direitos daqueles estabelecidos nos
pactos internacionais de direitos humanos está no caráter coletivo que
estes adquirem e que por isso representam uma novidade para o sistema
jurídico e potencializa sua função emancipatória.
Tanto no Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, como no Pacto Internacional de
Direitos Cívicos e Políticos, ambos de 16 de dezembro de 1966, a idéia
é a garantia de direitos individuais. O artigo primeiro dos dois Pactos
é idêntico e tratam dos direitos dos povos. Afirmam que os povos têm
direito de dispor de si mesmo e determinar o seu estatuto político,
promovendo livremente o seu desenvolvimento econômico, social e
cultural. Neste sentido, ambos Pactos reconhecem aos povos o poder de
dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais, não podendo
jamais ser privados de seus meios de subsistência.
O conceito de povo para a ONU e para o
direito internacional, que está empregado nos Pactos e outros
documentos oficiais, se limita à base humana de um Estado Nacional, sem
qualquer diferenciação interna. Povo, então, quer dizer a soma
simples de todos os cidadãos individualmente tratados e que vivem sob
um território nacional determinado, jurisdicionado por um Estado. A
Constituição do Estado Nacional deve reconhecer direito a todos e a
cada cidadão, por igual. Nesta perspectiva as minorias, os excluídos,
as populações locais organicamente estruturadas, os esquecidos, os
anteriores e os distantes que não participam da direção do Estado têm
seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais, escolhidos pelo Estado, ou pela classe dirigente do Estado,
e não por sua organização própria.
Neste conceito de povo fica clara a
armadilha da autodeterminação. Os povos têm a autodeterminação para
se constituir em Estado, desde que não estejam sob a jurisdição de um
Estado já constituído. Organizado o Estado, a autodeterminação, ou a
livre disposição de si mesmo como povo, significa o seguimento das
regras legais estabelecidas pelo próprio Estado. O reconhecimento do
direito de autodeterminação dos povos, pelo direito internacional é,
pois, o direito à autodeterminação dos Estados que garantam os
direito individuais, entre eles o de propriedade.
Portanto o conceito de povo dos Pactos não
é o mesmo usado neste trabalho, nem está adequado aos povos indígenas.
Aliás isto é claro para o Direito Internacional. A Organização
Internacional do Trabalho produziu duas Convenções acerca dos povos
indígenas, a Convenção 107, de 5 de julho de 1957 e, mais
recentemente, a Convenção 169, de 27 de junho de 1989. O primeiro
versava "sobre a proteção e integração das populações tribais
e semitribais de países independentes" e adiantava o que viria
disposto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos quase dez anos depois,
e que no artigo 27 proibia aos Estados negar às pessoas pertencentes a
minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas os direitos de convivência
e uso comum da cultura, religião e idioma.
O caráter destes direitos eram
individuais, porque o chamado catálogo de direitos admitia apenas
direitos individuais, qualquer idéia coletiva era entendida como
metajurídica, isto é, era reivindicação política ou social, muitas
vezes proibida, alcançando a categoria de antijurídica.
A Convenção 169, ao contrário, em seu
preâmbulo reconhece o desejo dos "povos indígenas e tribais ao
controle de suas próprias instituições, formas de vida e de
desenvolvimento econômico compatível com sua identidade cultural, lingüistica
e religiosa", dentro dos marcos legais dos Estados em que vivem.
Assim , estabelece que o Convênio se aplica aos "povos tribais em
países independentes". (Gómez, 1991)
A Convenção mudava o caráter do
direito, considerando-o coletivo e os Estados Nacionais não admitiram
que a palavra "povo", mesmo acrescida de tribais, fosse o
designativo das populações indígenas. Para resolver o impasse, a
Convenção estabeleceu que a palavra povo, quando empregada por ela, não
tinha o significado que lhe dá o direito internacional. Com isso,
imaginam os Estados que ficava afastada a interpretação de que os
povos indígenas venham a ter direito a autodeterminação, isto é, à
constituição de Estados próprios.
Os povos indígenas latino-americanos,
embora tenham participado das guerras de independência, nunca se
propuseram a constituir Estados próprios; sempre lutaram por direitos
próprios em território compartido e em respeito às formas de vida de
cada um. Isto fica muito claro, hoje, no levante indígena de Chiapas, México,
e nas lutas Mapuche no Chile, ambas com momento de duro enfrentamento
aos Estados Nacionais, no caso de Chiapas inclusive com armas. Apesar
disso, as elites locais temem que cada povo, ou alguns deles, lutem por
uma independência local, enfraquecendo a soberania nacional.
Ironicamente, o enfraquecimento das
soberanias nacionais está se dando pela globalização, enquanto os
povos locais precisam - exatamente na luta contra esta globalização
que uma vez mais tenta integrá-los não mais como cidadãos, mas como
consumidores ou fornecedores de conhecimento - de soberanias nacionais
fortes que consigam garantir seus direitos coletivos de sobrevivência.
Por isso as minorias, os excluídos, as
populações locais organicamente estruturadas, os esquecidos, os
anteriores, os distantes, os que não têm capital, precisam de um
Estado forte que os proteja dos direitos individuais, dos proprietários,
dos capitais e dos poderes globais. Precisam reinventar o Estado,
retirando-lhe a lógica do capital, substituindo-a pela lógica dos
povos.
Curitiba, junho de 2001.
Carlos Frederico Marés de
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