IV.
Obstáculos Econômicos e Sociais
67.
Um tipo de grande descoberta epistemológica ocorreu recentemente nas
opiniões sustentadas quanto ao direito à alimentação por algumas das
maiores organizações não-governamentais. Em vez de meramente planejar
e implementar projetos auxiliares bilaterais ou multilaterais para
segurança alimentar e a realização do direito à alimentação,
algumas delas estão agora sugerindo que há uma necessidade urgente de
mudar as “condições estruturadas” de desenvolvimento. Este
envolvimento das ONGs como esforço para modificar as condições
macroeconômicas de desenvolvimento constitui um evento da maior importância
teórica e prática.
68.
Aqui estão alguns exemplos:
(a)
O relatório do Primeiro Encontro Internacional do Direito à
Alimentação e à Nutrição (Oslo, 18-21 de junho de 2000) redige suas
conclusões: a implementação das recomendações do Conselho Econômico
e Social, especialmente aqueles a respeito do direito à alimentação,
dependem inicialmente da existência de um Estado forte, que disponha
dos recursos necessários.
Em outras palavras, a globalização dos mercados financeiros e a quase
total liberalização do comércio (de mercadorias, patentes, serviços,
etc.) enfraquecem seriamente os Estados e constituem um perigo imediato
para a introdução e a realização do direito à alimentação;
(b)
Em sua revisão Entwicklung, a Informação da Primeira
Alimentação e Sistema de Ação (FIAN) é severa em sua crítica: “O
objetivo do auxílio tradicional para projetos, particularmente aqueles
que pretendem estabelecer segurança alimentar, nunca foi ocasionar
mudanças macroeconômicas [...]. É uma ilusão achar que o progresso
econômico e social pode ser alcançado em um setor isolado [...]. A
grande falha da cooperação de desenvolvimento tradicional foi devido
ao fato de que não foi dada importância suficiente às condições
impostas politicamente”
(traduzidos);
(c)
Em outubro de 2000, a Ação contra Fome, pela terceira vez,
publicou seu livro Géopolitique de la faim, que é completamente
notável pela sua perspicácia teórica.
Pela primeira vez, a análise empírica dos principais países em que a
organização esteve trabalhando é precedida por um longo teórico preâmbulo
entitulado “Assegurar a proteção das populações, um dilema para o
trabalho humanitário”. Esta introdução reflete exatamente a mesma
grande descoberta epistemológica como as supracitadas análises feitas
pelo encontro de Oslo e o FIAN, isto é, a realização de que combater
a violenta globalização dos mercados e o gradual desaparecimento do
governo dos Estados é uma precondição para restaurar mecanismos de
segurança coletivos. De acordo com Ação contra Fome, os Estados
–que tornam os Estados enfraquecidos- são culpados pelas Nações
Unidas pela “trágica escassez de meios para satisfazer sua missão.”
Todas
as três organizações declaram uma verdade básica: a menos que as
condições macroeconômicas que determinam o estado pobre de
desenvolvimento das sociedades do hemisfério sul sejam vistas
criticamente, qualquer dimensão que diga respeito às medidas necessárias
para garantir o direito à alimentação permancerá puramente acadêmico.
69.
Quais, então, são os obstáculos macroeconômicos principais que
impedem ou previnem a realização do direito à alimentação, na prática
dos Estados e das organizações intergovernamentais? O Relator Especial
identificou sete maiores áreas problemáticas que afetam diretamente a
realização do direito à alimentação. Com relação aos Estados,
estes problemas são ou exógenos em sua origem, ou endógenos. Como ele
está apenas começando o seu mandato, o Relator, por enquanto,
limitar-se-á a uma simples lista; isto não é uma análise dos
problemas, mas um simples inventário:
(a)
Problemas ligados a desenvolvimentos no comércio mundial;
(b)
a dívida externa e seu impacto na segurança alimentar;
(c)
desenvolvimentos em biotecnologia e seus impactos no acesso à
alimentação e sua disponibilidade e segurança;
(d)
guerras e seu impacto destrutivo na segurança alimentar;
(e)
corrupção;
(f)
acesso à terra e a crédito;
(g)
discriminação contra mulheres e seu impacto na realização do
direito à alimentação;
70.
O impacto do comércio internacional na situação alimentar dos países
pobres é complexo e contraditório. Considera-se que geralmente
enquanto auto-suficiência em alimentação não é necessária para países
desenvolvidos – desde que eles tenham meios para comprar o que eles
precisam nos mercados mundiais – mas ela não é, apesar disso desejável
para os países pobres. O total de subsídios agrícolas nos países da
OECD (por exemplo, os países ricos) somam US$335 bilhões em 1998,
enquanto US$251 bilhões foram pagos a mais aos produtores.
Estes subsídios são esperados para aumentar ainda mais em 2000. Seu
impacto é duplo: eles encorajam auto-suficiência, mas,
simultaneamente, provêm suporte público para exportações. Os
resultantes preços mais baixos dos alimentos nos mercados mundiais têm
efeitos contraditórios para os países do terceiro mundo: enquanto eles
permitem importar os suprimentos alimentícios que faltam por um preço
mais baixo, eles também desencorajam a produção doméstica. Um outro
problema é a persistência da política de proteção agrícola na
parte dos países do norte, que estorvam o acesso aos mercados do norte
para a produção do sul. Por todas essas razões, há uma necessidade
urgente de dar uma olhada crítica nas implicações do comércio
internacional (e particularmente na política da OMC e programas de
ajuste estrutural) para o direito à alimentação.
71.
O Relator Especial acredita que atenção especial deveria ser dada ao
problema da dívida externa dos países pobres. Como foi reconhecido nas
declarações finais de 1996, a Cúpula Mundial da Fome e pela corrente
campanha do Jubileu 2000 – uma ampla união internacional com o
objetivo de eliminar a dívida dos países mais pobres do terceiro mundo
– o fardo esmagador da dívida afeta diretamente a realização do
direito à alimentação.
Em meados dos anos 80, o Presidente da Tanzânia, Julius Nyerere,
sintetizou a situação nestas palavras: “Nós temos realmente que
deixar nossas crianças passar fome para que possamos pagar nossas dívidas?”
72.
De acordo com a campanha do Jubileu 2000, a dívida dos 41 países mais
endividados totaliza US$206 bilhões, o que é equivalente a 124 por
cento da maioria da produção nacional dos países relacionados. Estes
países gastam muito mais no pagamento de suas dívidas que nos seus
serviços sociais. Muitos deles dedicam mais de 20 por cento de seu orçamento
a cada ano para a dívida externa. Desde 1990, o crescimento
da maioria da produção doméstica pelos 48 países mais pobres do
mundo foi menos de 1 por cento por ano, o que impede qualquer
crescimento das economias internas. A Conferência das Nações Unidas
no Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD)
calcula que o auxílio público, em valor per capita real, dado pelos países
ricos ao 48 países mais
pobres caiu em 45 por cento entre 1990 e 2000. No mesmo período, o
influxo de capital estrangeiro privado per capita a longo prazo em
termos reais caiu em 30 por cento. Além disso, os planos de ajuste
estrutural impostos pelo FMI e os bancos regionais de forma a balancear
contas financeiras podem agravar a situação da alimentação,
particularmente quando estes planos exigem a eliminação dos subsídios
públicos para alimentos básicos que pretendam ajudar os setores
sociais mais pobres.
73.
Tem havido um crescente debate público sobre indústrias de alimentos,
biotecnologia e plantas modificadas geneticamente. Estes
desenvolvimentos têm tido um impacto no acesso à alimentação, na
adequadibilidade dos alimentos e na saúde pública (exemplo, a relação
entre a doença de Creutzfeldt-Jakob e o consumo da carne contaminada
pela doença da “vaca louca”). Estes problemas deveriam ser olhados
a partir do ângulo do direito à alimentação. O uso de organismos
modificados geneticamente (OGM’s)
na agricultura desperta temores quanto aos seus possíveis efeitos no
corpo humano. O direito à alimentação implica acesso a alimentos
adequados, o que quer dizer alimentos saudáveis, livres de qualquer
substância prejudicial e livre de conseqüências prejudiciais para o
desenvolvimento do corpo humano e a reprodução de suas forças vitais.
A comunidade científica está, no momento, mostrando considerável
interesse no direito à alimentação.
Há ainda o problema das patentes retiradas pelas multinacionais do
norte sobre as plantas que crescem no sul e a questão relacionada à
proteção universal dada a tais patentes pela OMC. O direito à
alimentação implica não apenas o acesso aos alimentos, mas também
acesso aos meios de produzi-los. Patentes internacionais detidas pelas
multinacionais do norte, combinadas com a sua proteção universal e
Aspectos dos Direitos Intelectuais Relacionados ao Comércio (TRIPS),
privam os fazendeiros pobres do acesso aos meios de cultivar seus
alimentos.
74.
Guerras constituem um grande obstáculo ao cumprimento do direito à
alimentação. Em época de guerra, o suprimento de alimentos e o acesso
a eles se torna difícil, se não impossível. As culturas são destruídas
ou abandonadas. Em praticamente todos os países afetados pela guerra, a
produção per capita entra em colapso. Apesar das proibições contidas
no direito humanitário internacional, os beligerantes usam de forma
crescente a arma da alimentação para aterrorizar as populações
civis. Um exemplo disso ocorreu quando, de abril de 1992 a junho de
1995, unidades do Exército Federal da Iugoslávia e milícias da Sérvia
puseram a cerco a cidade de Sarajevo, impondo um bloqueio de alimentos e
causando milhares de mortes.
Um outro problema é que em muitos países em guerra, a segurança
alimentar piora porque os governos usam seus recursos primordialmente
para comprar armas.
Em 1994, por exemplo, quando a Etiópia foi desolada pela fome, o
Governo de Adis-Abeba estava usando 46 por cento de seu orçamento para
comprar armas. Ainda, um outro problema é que, quando as guerras
proliferam, o auxílio humanitário internacional tende a ser
desigualmente distribuído. Em Kosovo, em 1999, por exemplo, ninguém
passou fome, mas, naquele mesmo ano, em Angola, mais de 20 por cento das
crianças desalojadas sofriam séria subnutrição.
No terceiro mundo, em época de guerra, muito mais pessoas são mortas
pela fome que por balas e bombas. Dois exemplos dizem respeito a isso.
Em 1992, na Somália, milhares de crianças com menos de cinco anos
morreram de fome ou doenças ligadas à subnutrição. E entre Agosto de
1998 e Maio de 2000, 1 milhão e 700 mil pessoas morreram na parte leste
da República Democrática do Congo, das quais um terço eram crianças
abaixo de cinco anos de idade.
75.
A Declaração da Cúpula Mundial da Alimentação (Roma, 13-17 de
novembro de 1996) menciona expressamente a corrupção como sendo uma das causas da insegurança
alimentar. A Corrupção pode se manifestar de várias formas, desde um
simples suborno ao crime organizado. Ela prevalece tanto no hemisfério
norte como no sul. Contudo, é nos países mais pobres que as conseqüências
sociais, e particularmente aquelas que afetam a segurança alimentar, são
as mais sérias. Por exemplo, em novembro de 2000, o Governo de Chade
apelou para a comunidade internacional por auxílio contra a fome
iminente. Na época, o Banco Mundial estava concedendo ao Governo
Chadiano a soma de 17 bilhões de francos CFA (aproximadamente, 42,5
milhões de francos suíços ou 25 milhões de dólares) sob um projeto
de óleo para combater a pobreza. Agora a oposição parlamentar está
acusando o Governo de ter desperdiçado a maior parte do dinheiro com a
corrupção generalizada e com a compra de armas.
O Relator Especial estará seguindo de perto os esforços para alcançar
transparência e combater a corrupção por meio do Banco Mundial e
outras organizações intergovernamentais e não-governamentais, como a
Transparência Internacional e Controle do Crime nos Negócios.
76.
Não há dúvida de que autorizar tantos fazendeiros quanto possível ao
acesso a terra e ao crédito é benéfico para a segurança alimentar, não
apenas para as famílias relacionadas diretamente, mas para o país como
um todo. O Banco Mundial analisou uma das poucas e mais recentes experiências
não-violentas de reforma agrária, isto é, Operação Barga, que
ocorreu no Estado da Índia da Bengala Oeste, nos anos 70 e 80. Milhares
de fazendeiros sem terra obtiveram acesso a propriedade e crédito. A
reforma conduziu a 18 por cento de aumento na produção agrícola da
Bengala Oeste.
Os capítulos do Relatório do Banco Mundial de 2000/2001 dedicados a métodos
de combate da desigualdade e da extrema pobreza, dão ênfase à reforma
agrária e ao acesso a propriedade de terras nas áreas rurais.
O trabalho de Amartya Sen exerceu uma influência muito forte nessa
conclusão como um todo.
Em sua visão, o acesso a propriedades de terra e um sistema democrático
de governo são os dois instrumentos principais do desenvolvimento das
sociedades predominantemente rurais.
77.
Algumas experiências interessantes de reforma agrária estão
atualmente sendo tentadas nas Filipinas, Zimbábue e África do Sul.
Especialmente digno de nota são também as soluções inovadoras do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ou
MST, no Brasil, e o Movimento Zapatista, no estado
mexicano de Chiapas. O Relator Especial seguirá todas essas experiências
de perto e analisará seus resultados sob o ângulo do direito à
alimentação.
78.
Um dos principais obstáculos à realização do direito à alimentação
é a discriminação social, econômica e política experimentada pelas
mulheres em muitas sociedades. Mulheres e meninas estão freqüentemente
entre os primeiros a sofrer de fome e subnutrição crônica. Contudo, são
também elas que passam as mutilações da subnutrição de uma geração
para outra. O tão chamado método ou abordagem analítico do
“ciclo-vital” dá uma visão mais precisa do papel desempenhado
pelas mulheres (ver o relatório do Sr. Eide – E/CN.4/Sub.2/ 1999/12,
paras. 19-22). Por exemplo, na Coréia do Norte, a fome dos anos 90
destruiu entre 12 a 15 por cento do total da população (estimada em 23
milhões de pessoas). Entretanto, o prejuízo social foi muito maior se
considerada a queda na curva de fertilidade causada pela fome. O quarto
Relatório na Situação Mundial da Nutrição das Nações Unidas ACC/SCN
alega que em torno de 30 milhões de crianças nascem a cada ano nos países
em desenvolvimento com crescimento prejudicado devido a nutrição pobre
durante a vida fetal.
79.
Em seu relatório de 1998 em O Estado das Crianças do Mundo, UNICEF,
fazendo uma referência ao estudo de 1996 ACC/SCN, dá um estudo
comparativo entre três países do terceiro mundo. Com relação à
nutrição e ao status das
mulheres, por exemplo, no Paquistão, ampla discriminação contra
mulheres e meninas está atrás de altos índices de analfabetismo, uma
taxa muito alta de fertilidade e baixa expectativa de vida feminina.
“As taxas de subnutrição infantil no Paquistão estão entre as mais
altas do mundo, como está a proporção de crianças que nascem abaixo
do peso, em 25 por cento. [...] Por outro lado, as mulheres na Tailândia,
onde a nutrição melhorou notavelmente nas últimas duas décadas, têm
um alto alfabetismo [...] e um lugar forte em nível social e na formação
de decisões na família.” Além disso, está estimado que, na Tailândia,
“subnutrição de crianças abaixo de cinco anos caiu de mais ou menos
51 por cento para aproximadamente 19 por cento em 1990, e que a severa
subnutrição desapareceu virtualmente durante aquele período.” É
também sabido que o aumento de despesas no setor social melhora a nutrição.
No Sri Lanka, por exemplo, “aumentos nos gastos em serviços públicos
de saúde estão mais fortemente associados com a redução da
mortalidade infantil e com a melhor nutrição que todos os aumentos de
renda.”
Em muitos países, as mulheres não têm acesso à posse da terra. Em
outros (algumas vezes nos mesmos), elas sofrem a desigual distribuição
de alimentos dentro da família. Ainda, as mulheres desempenham um papel
vital na realização do direito à alimentação, desde que elas dão
à luz e alimentam os bebês e crianças. Por todas essas razões, o
reconhecimento dos direitos das mulheres e a eliminação da discriminação
social, econômica e política contra elas são precondições para a
realização do direito à alimentação.
80.
A discriminação social, econômica e política quase invariavelmente
tem efeitos desastrosos na situação alimentar dos indivíduos, famílias
e grupos que são discriminados. Mulheres não são as únicas a sofrer.
Outros grupos particularmente vulneráveis também são afetados, como
crianças muito novas, os mais velhos, os inutilizados, as minorias étnicas
e religiosas, populações indígenas, refugiados, migrantes, pessoas
desalojadas, pessoas desempregadas permanentemente sem assistência e
prisioneiros. Um exemplo desta discriminação é a praticamente exclusão
sistemática das refeições escolares das crianças Gypsy (Roma e Sinti)
na Hungria e Romênia.
Como mostrado pelo Relator Especial da Sub-Comissão da Pobreza
Extrema, Leandro Despouy, discriminação (e pobreza extrema) tem suas
raízes no tipo de desenvolvimento causado pelo capitalismo desregulado.
Em outras palavras, o desenvolvimento pobre, exclusão e discriminação
existem tanto nos países do sul quanto nos países do norte
(ver Relatório Final dos Direitos Humanos e Pobreza Extrema do
Sr. Despouy, E/CN.4/Sub.2/1996/13)
Action
contre la Faim (Coordenada por Sylvie Brunel), Géopolitique de
la faim – Edição 2001, Paris, Presses Universitaires de
France, 2000. Leitores de língua inglesa podem referir-se a tradução
em inglês da Segunda edição francesa (outubro de 1999), que foi
trazida pela Ação contra Fome – Estados Unidos, sob o título The
Geopolitics of Hunger , 2000-2001: Fome e Poder (Boulder,
Colorado, e Londres, Lynne Rienner Publishers, 2000, 354 páginas).
Aqueles que falam espanhol podem consultar a Segunda edição em um
livro publicado pela Acción contra el Hambre (Madri)
entitulado Geopolítica del Hambre – Cuando el hambre es un
arma ... Informe 2000, Madri, Icaria editora, 1999, 355 páginas.
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