Introdução
1.
Na sua 56°
sessão, a Comissão de Direitos Humanos adotou a resolução 2000/10 de
17 de Abril de 2000, na qual decidiu, a fim de responder detalhadamente
à necessidade de uma aproximação integrada e coordenada na promoção
e proteção do direito à alimentação, ao apontar por um período de
três anos, um relator especial sobre o direito à alimentação.
Define-se o mandato do relator especial como segue:
a)
Procurar, receber e responder informações em todos os aspectos
da realização do direito à alimentação, incluindo a necessidade
urgente de erradicar os famintos.
b)
Estabelecer cooperação entre os Governos, organizações
intergovernamentais, em particular a Organização de Alimentação e
Agricultura das Nações Unidas [FAO], e organizações não-governamentais,
na promoção e efetiva implementação do direito à alimentação, e
fazer recomendações apropriadas na realização do já mencionado,
levando em consideração o trabalho já feito neste campo através do
sistema das Nações Unidas.
c)
Identificar questões que apareçam relacionadas ao direito à
alimentação ao redor do mundo.
2.
Em 4 de Setembro de 2000, a Comissão apontou Jean Ziegler (Suíça)
como Relator Especial. De acordo com seu mandato, o Relator Especial
teve de submeter um Relatório inicial na 57°
sessão da Comissão. Por razões técnicas da impressão (tradução,
distribuição, etc..), o Escritório do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos estabeleceu 10 de Dezembro de 2000 como
o prazo final para submissão do relatório, deixando apenas algumas
semanas para sua preparação. Como resultado, o relatório não contém
a pesquisa original, mas aponta modestamente por consideração à
Comissão de Direitos Humanos uma pesquisa dos problemas a serem
tratados e um programa de trabalho para os próximos dois anos.
3.
Na visão da Comissão, o direito à alimentação deveria ser
usado como um instrumento para tratar com uma situação totalmente
inaceitável. De acordo com as estimativas da FAO, 826 milhões de
pessoas hoje estão crônica e seriamente desnutridas, 34 milhões das
quais vivem em países economicamente desenvolvidos do Norte. A maioria
das vítimas moram na Ásia- 515 milhões – ou 24 por cento do total
da população do continente. Entretanto, se nós olharmos para o número
de vítimas relativa ao tamanho da população, a África Sub-Saariana
é a mais afetada: lá, 186 milhões de mulheres, homens e crianças, ou
34% da população da região, são, séria e permanentemente
desnutridas. A maioria das vítimas sofrem do que FAO chama “fome
excessiva”, com uma média diária de 300 calorias a menos que a
quantidade mínima para sobreviver. Os países mais afetados pela fome
excessiva estão, em sua maioria, na
África Sub-Saariana (18 países), o Caribe (Haiti) e Ásia (Afeganistão,
Bangladesh, Mongólia, as pessoas da República Democrática da Coréia).
4.
Permanente e séria má-alimentação e desnutrição causam
mortes precoces e numerosas doenças, que invariavelmente acarretam
incapacidade séria: subdesenvolvimento das células do cérebro em bebês,
cegueira causada pela deficiência de vitamina A, etc.
Fome crônica e permanente, desnutrição séria pode ser também uma
maldição hereditária: todo ano, milhões de mães seriamente
desnutridas dão a luz a milhões de bebês seriamente afetados,
referidos como “nascidos crucificados”, por Regis Debray.
5.
Permanente, séria desnutrição e má-alimentação impedem
homens e mulheres de desenvolverem seu completo potencial e de se
tornarem economicamente ativos, condenando-os a uma existência social
marginal. Eles são fatores decisivos no subdesenvolvimento de muitas
economias do terceiro mundo. Esta tragédia silenciosa ocorre
diariamente em um mundo cheio de ricos. De acordo com a FAO, no presente
estágio de desenvolvimento da produção agrícola, a Terra poderia
alimentar 12 bilhões de seres humanos corretamente, providenciando
comida equivalente a 2.700 calorias por dia, para cada indivíduo. E
embora existam apenas pouco mais de 6 bilhões de pessoas no mundo,
todos os anos, 826 milhões delas sofrem de privação alimentar crônica.
6.
Ação contra Fome (França) escreve: “Muitas pessoas pobres ao
redor do mundo, não têm o bastante para comer, porque a produção de
comida é gerada para obter dinheiro”.
Em muitos casos, a equação é simples: aqueles que têm dinheiro,
comem, e aqueles que não têm, sofrem de fome e das incapacidades que
surgem e, freqüentemente, morrem. Famintos e desnutridos não são
produzidos pelo destino ou uma maldição da natureza; eles são
produzidos pelo homem. Morrer de fome é equivalente a ser assassinado,
enquanto desnutrição séria e crônica e fome persistente são uma
violação do fundamental direito à vida.
7.
Em média, 62 milhões de pessoas morrem cada ano, das quais,
provavelmente 36 milhões (58%) direta ou indiretamente, como resultado
de deficiências nutricionais, infecções, epidemias ou doenças que
atacam o corpo quando sua resistência e imunidade foram enfraquecidas
pela desnutrição e fome. Com respeito à extrema pobreza que é comum
no mundo, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU)
estima que pelo menos 1,2 bilhão de seres humanos são forçados a
viver com uma renda de menos de US$ 1 por dia.
8.
Apesar da clara definição da FAO da área da realidade tratada
pelo direito à alimentação, uma dimensão do sofrimento humano está
faltando na descrição acima: o intolerável e ininterrupto temor que
tortura as pessoas famintas desde o momento em que acordam. Como,
durante o dia que se passará, eles serão capazes de alimentar sua família,
proporcionar alimento para suas crianças, e alimentar eles mesmos? Este
medo pode ser até mais terrível do que o sofrimento físico e do que
muitas dores e doenças que atacam um corpo desnutrido
9.
Do começo de Setembro até metade de Dezembro, o Relatório
Especial estabeleceu a si três tarefas:
a)
Primeiro, familiarizar-se com a extensiva literatura em direitos
econômicos, sociais e culturais em geral e ao direito à alimentação
em particular;
b)
Depois, começar o mais rápido possível a implementar o parágrafo
11 (b) da resolução 2000/10 que é, estabelecer cooperações com as
principais organizações intergovernamentais, especialmente FAO, e as
principais organizações não-governamentais (ONG’s) , viajando à
Roma, Berlim, Berna, Paris, para
este propósito
c)
Finalmente, estudar o número de relatórios de ONG’s
condenando violações ao direito à alimentação pelos Estados.
10.
Este não é o lugar para uma exaustiva lista dos contatos já
feitos. Graças à calorosa boas-vindas que ele recebeu do Diretor-Geral
da FAO, o Relator Especial foi capaz de, em apenas poucos dias,
encontrar os oficiais mais altos daquela organização e aqueles responsáveis
pelo Programa de Alimentação Mundial, assim como o Presidente e
vice-presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento da Agricultura
(FIDA). O Relator Especial realizou suas primeiras conversas com os
oficiais mais capacitados da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), OMC, a Conferência das Nações Unidas em Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD), UNDP, o FMI, o Banco Mundial e o Comitê
Internacional da Cruz Vermelha (CICV), assim como o secretariado
internacional da Convenção Nações Unidas de 1994 no Combate à
Desertificação. Ele gostaria, neste ponto,
de agradecer ao Alto Comissariado dos Direitos Humanos e ao
Representante do Alto Comissariado, com quem ele teve uma conversa
extremamente útil.
11.
Devido às limitações do tempo, o Relator Especial realizou
conversas exploratórias com as seguintes ONGs: Ação contra Fome (França),
Rede de Ação e Informação FoodFirst, (FIAN, Alemanha), a Aliança
Mundial para Nutrição e Direitos Humanos( WANAHR, Noruega, na pessoa
de seu representante em Roma), Antenna (Suíça), o Projeto
Internacional ao Direito à Alimentação em Desenvolvimento
(Universidade de Oslo, Noruega), o serviço Internacional para os
Direitos Humanos (Suíça) e o Instituto Internacional Jacques Maritain
(Roma). Foi a FIAN, WANAHR e o Instituto Internacional Jacques Maritain
que produziram o excelente Código Internacional de Conduta no Direito
Humano à Alimentação Adequada (Setembro, 1997), o qual tem sido
referendado por mais de 800 ONG’s de todo o mundo.
12.
Embora este relatório seja apenas um meio de introdução, ele não
pode ser restrito a uma mera lista dos problemas legais que surgem na
realização do direito à alimentação. Ele deve também,
- embora para o momento, provisoriamente
- levar em consideração as condições macroeconômicas que
recaem sobre o desenvolvimento dos pobres de muitas sociedades do Sul.
De um ponto de vista metodológico,
um estudo deve ser feito de problemas afetados pela globalização
dos mercados financeiros e o resultante enfraquecimento do poder
regulador do Estado. Além disso, o estudo das condições macroeconômicas
necessárias para a realização do direito à alimentação cai dentro
dos termos do mandato confiado ao Relator Especial
a quem foi também solicitado a “procurar, receber e responder
informações em todos os aspectos da realização do direito à
alimentação, incluindo a necessidade urgente de erradicar os
famintos” (resolução 2000/10, para. 11 (a)). Muitas ONG’s enviaram
ao Relator Especial relatórios de casos específicos, requerendo a sua
intervenção; após estudá-los, o Relator Especial decidiu por
submeter alguns deles aos Governos interessados.
Este
relatório está estruturado como segue: Primeiro, ele considera a
definição do direito à alimentação em termos legais, a origem do
direito e os recentes desenvolvimentos. Depois, ele examina os
instrumentos internacionais, que se referem ao direito à alimentação.
Ele então, discute a questão de que práticas poderiam ser tomadas
para encorajar os países a introduzir o direito à alimentação na sua
legislação doméstica. Após isso, ele olha para alguns dos principais
problemas econômicos e sociais que estão impedindo a realização do
direito à alimentação. Este relatório termina com conclusões e
recomendações.
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