III.
Legislação Doméstica
52. Vinte Estados no
mundo possuem Constituições que, mais ou menos explicitadamente e em
mais ou menos detalhes, fazem referência ao direito à alimentação ou
a uma norma relacionada.
Uma das normas mais explícitas é aquela contida na Constituição
Cubana, que estipula no seu artigo 8º: “... através do poder das
pessoas e através da vontade das pessoas ... nenhuma criança deve ser
privada de educação, alimentação ou habitação.” Nenhum Estado,
contudo, implementou ainda leis domésticas consistentes assegurando
proteção efetiva ao direito à alimentação para sua população, e
especialmente para os grupos mais vulneráveis, como as mulheres, crianças
e minorias étnicas.
53. O que a proteção
efetiva ao direito individual e coletivo à alimentação através de
legislação doméstica significa? O Comitê dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais dá uma resposta no seu Comentário Geral n.º 12,
nos seguintes termos: “Os Estados devem considerar a adoção de uma lei
estruturada como um instrumento maior de implementação de uma
estratégia nacional a respeito do direito à alimentação. A lei
estruturada deve incluir provisões em seu propósito; os alvos ou metas
a serem atingidos e o tempo que deve ser estabelecido para o alcance
desses alvos; os meios através dos quais o próposito pode ser atingido
descrito em termos amplos, particularmente a intencionada colaboração
com a sociedade civil e o setor privado e com as organizações
nacionais; responsabilidade institucional para o processo; e os
mecanismos internacionais para seu monitoramento, assim como também
procedimentos de recursos. Ao desenvolverem os modelos e legislação
estruturada, os Estados-parte devem envolver ativamente as organizações
da sociedade civil.” (HRI/GEN/1/Rev.4,
pp. 62-63, para. 29)
54. A todo direito
deve ser dada a garantia de um remédio. O direito à alimentação,
para ser efetivo, não é uma exceção. Como posto novamente no Comentário
Geral n.º 12:
“Qualquer pessoa ou
grupo que seja uma vítima da violação do direito a alimentação
adequada deve ter acesso a remédios judiciais efetivos ou outros
apropriados em ambos os níveis nacional e internacional. Todas as vítimas
de tais violações têm o direito a reparação adequada, que devem ter
a forma de restituição, compensação, satisfação ou garantias de não-repetição...
A incorporação na
ordem legal doméstica dos instrumentos internacionais, reconhecendo o
direito à alimentação, ou reconhecimento
de sua aplicabilidade, pode significamente acentuar o alcance e a
efetividade de medidas que remediem e deve ser encorajada em todos os
casos. As Cortes serão, então, autorizados a julgar violações no
cerne do conteúdo do direito à alimentação através de referência
direta às obrigações dispostas no Tratado.
Juízes e outros
membros da profissão legal são chamados a prestar atenção mais notável
às violações do direito à alimentação no exercício de suas funções.
Estados-parte devem
respeitar e proteger o trabalho dos advogados de direitos humanos e
outros membros da sociedade civil que assistem grupos vulneráveis na
realização de seu direito à alimentação adequada.” (Ibid., p. 63, paras. 32-35).
55. Um componente do
mandato do Relator Especial diz respeito à assitência do esboço de
legislação doméstica no direito à alimentação. De que modo o
Relator Especial pode ocupar-se disto? Vários métodos são possíveis,
nenhum deles exclui os demais.
56. Conferências
nacionais parecem ser um meio útil aos Governos para estabelecer a cena
para a preparação dos planos de ação nacionais de combate à fome.
Um exemplo deste método foi providenciada recentemente pelo República
Demócratica da Argélia do Povo. De 28 a 30 de outubro de 2000, o
Governo da Argélia organizou a primeira Conferência Nacional para
Combater a Pobreza e a Exclusão, sob a direção do Presidente da República.
Todas as agências das Nações Unidas e as principais organizações não-governamentais
internacionais representadas na Argélia (e em Magreb no geral)
participaram da Conferência, em sua preparação e em
seus seminários e sessões
plenárias. Todos os ministros, a maioria dos deputados e senadores, uma
parte considerável de altos oficiais, especialmente os prefeitos – os
Walis – e seus assistentes
principais, assim como muitos representantes da sociedade civil
participaram de forma ativa dos debates. A conferência proveu uma
oportunidade de elaborar um quadro realista da situação social e,
portanto, também da situação relacionada à alimentação na Argélia.
Conferências como estas podem ser consideradas uma preliminar útil
para qualquer debate parlamentar na legislação doméstica com relação
ao direito à alimentação. Nenhum Parlamento é efetivo a menos que
seja sustentado por opinião pública ativa e bem-informada.
57. Muito Governos têm
uma tendência natural em direção à indiferença ou pior ainda disfarçam
ou carecem de transparência. Nenhum Governo no mundo jamais gosta de
admitir publicamente os problemas de alimentação, as dificuldades de
fornecimento, ou doenças e deficiências que afetam parte de sua população.
As autoridades públicas têm que mostrar determinação e coragem para
convocar uma conferência nacional. Em outubro de 2000, o Governo da Argélia
mostrou tal coragem, adotando um plano nacional de ação no combate à
pobreza e à exclusão.
58. A Comissão de
Direitos Humanos poderia ser descrita como a consciência moral do
sistema das Nações Unidas. Em sua resolução 2000/10, ela solicita o
Relator Especial a lidar com “a realização do direito à alimentação”. O Relator
Especial recebeu informações de um número de organizações não-governamentais
relatando particularmente casos flagrantes de violações do direito à
alimentação em vários países. Depois de estudar esses relatórios,
ele solicitou mais detalhes e elucidações. Ele, depois, escreveu aos
Governos interessados, chamando sua atenção às alegações feitas
contra eles e solicitando substanciais respostas. As alegações diziam
respeito a Honduras, Myanmar e Palestina em particular. O Relator
Especial será capaz de relatar às Comissões uma vez que tenha
recebido respostas dos Governos interessados.
59. Durante os dois
próximos anos, o Relator Especial gostaria de ser convidado por aqueles
Governos para visitar seus países de forma a assistir as autoridades,
instituições e parceiros sociais para promover a legislação doméstica
e planos de ação nacionais a favor do direito à alimentação.
60. O que se entende
exatamente por legislação doméstica? O Comentário Geral n.º 12
refere-se à expressão “lei estruturada” (ver parágrafo 52 acima).
O Relator Especial acredita que seria mais realista adotar um método diferente. Situações
econômicas, sociais, culturais e, portanto, nutricionais tendem a ser
extremamente variadas e mudam de um país para outro. Tentando adotar
uma lei estruturada, certamente irá de encontro a obstáculos quase
insuperáveis. Haveria o risco de uma lei estruturada falhar, alternada
ou simultaneamente, em diversas tentativas: ela poderia falhar em
compreender ou estabelecer os problemas experimentados pelas pessoas no
cotidiano de suas vidas, ou ela poderia promulgar soluções
legislativas que estão mal-adaptadas à real experiência social, ou,
ainda, ela poderia impor
padrões que o Estado seria praticamente incapaz de fazer cumprir.
61. Muito mais
efetivo que passar uma lei estruturada seria o seguinte método: o
Relator Especial ajudaria os Governos, instituições e parceiros
sociais a identificar situações sociais, costumes e estratégias
governamentais que previnam a plena realização do direito à alimentação.
Em um país predominantemente rural, o obstáculo principal poderia ser
seu sistema desigual de direitos de terra; em um outro caso, ele poderia
ser a ínfima renda de parte da população (que poderia ser remediada
através da redistribuição tributária e de subsídios para os
alimentos básicos), etc. Dependendo do tipo de situação social que
encontrasse, o Relator Especial poderia em seguida defender soluções
legislativas selecionadas, especialmente com uma visão de eliminar obstáculos
econômicos, sociais e culturais em cado caso para a realização do
direito à alimentação.
62. O Relator
Especial, não obstante, tentará fornecer os Parlamentos nacionais e
regionais com um esboço adequado de um manual básico, imutáveis
procedimentos legislativos (como matérias relacionadas a jurisdição
competente, recursos, etc.) que devem ser considerados com relação ao
direito à alimentação. Este manual seria planejado ao longo das
linhas do prático e muito didático Manual para Parlamentares nos princípios
gerais do e no respeito ao direito humanitário internacional,
juntamente publicado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC)
e da União Inter-Parlamentar.
63. Em Gênova, o
Relator Especial encontrou o Secretário Geral da União
Inter-Parlamentar (IPU). A IPU, que foi fundada em 1889, não é apenas
uma das mais antigas organizações intergovernamentais do mundo, mas
também uma das mais dinâmicas e mais eficientes. Desde a sua 104ª
Conferência Inter-Parlamentar (Jakarta, 2000), ela abrangeu 104
parlamentos nacionais e cinco organizações parlamentares regionais
associadas. A IPU assinou acordos de cooperação com praticamente todas
as agências-líderes das Nações Unidas, e com o Escritório do Alto
Comissariado de Direitos Humanos. Seu objetivo primordial é fortalecer
instituições democráticas e promover princípios democráticos nos
sistemas políticos nacionais.
64. Os Parlamentos
atuam através de ação normativa e troca de informações. A IPU provê
uma grande quantidade de assistência internacional muito competente.
Muitas de suas atividades têm um propósito didático e participam de
muitos níveis. A Conferência Inter-Parlamentar, que ocorre duas vezes
por ano, é freqüentada por aproximadamente 700 parlamentares e
constitui o principal orgão de expressão política da IPU. Encontros
de mulheres parlamentares discutem, especialmente, o esboço e a
implementação de leis que combatam discriminação social, econômica
e cultural contra as mulheres.
65. O programa de
cooperação técnica da IPU, seus encontros de trabalho, em Gênova ou
nos escritórios centrais nacionais dos Parlamentos membros, e os cursos
de treinamento organizados pela IPU para Presidentes, mulheres
parlamentares, Secretários-Gerais, assistentes parlamentares e
deputados, seriam um ideal estabelecido para promover uma legislação
doméstica no direito à alimentação como previsto no Comentário
Geral n.º 12. Matéria para aprovação da Comissão, a IPU e o Relator
Especial poderiam redigir um programa específico para 2001 – 2002; o
Relator Especial teria, então, a oportunidade de promover o direito à
alimentação em todos os encontros, seminários internacionais e
nacionais ou projetos de assistência técnica organizados pela IPU para
parlamentares nacionais e internacionais.
66. Na sua tarefa de
auxiliar a legislação doméstica e planos nacionais de ação, o
Relator Especial visitará agências especializadas, principalmente FAO.
No cumprimento de seu mandato, a cooperação da sociedade civil (através
de movimentos sociais, organizações não-governamentais, uniões de
comércio, partidos políticos, igrejas, organizações humanitárias,
universidades, etc.) também será essencial.
Veja
“O Direito à alimentação nas constituições internacionais”,
em FAO, O direito à alimentação na teoria e na prática, Roma,
1998, pp. 42-43 (Inglês apenas).
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