Perspectivas
Para Uma Justiça Global
Flavia
Piovesan*
O objetivo deste artigo
é enfocar o legado do processo civilizatório que levou à universalização
e à internacionalização de direitos, bem como apontar aos dilemas e
tensões contemporâneas que alcançam esse processo, no contexto histórico
do pós 11 de setembro de 2001.
A “Era dos
Direitos“1
No dizer de Hannah
Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma
invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução2 .
Tendo em vista este
olhar histórico, adota-se as lições de Norberto Bobbio, que em seu
livro “Era dos Direitos”, sustenta que “os direitos humanos nascem
como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos
positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações
de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como
direitos positivos universais”3 .
É em face do crescente
processo de internacionalização dos direitos humanos, que há de se
compreender o sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
O movimento de
internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento
extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra,
como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o
nazismo. Se a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o
Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. É neste cenário
que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como
paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea.
Fortalece-se a idéia
de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio
reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência
nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque
revela tema de legítimo interesse internacional.
Prenuncia-se, deste
modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus
nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica,
decorrência de sua soberania.
Inspirada por estas
concepções, surge, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Em
1948 é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como um
código de princípios e valores universais a serem respeitados pelos
Estados.
A Declaração de 1948
inova a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção
contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e
indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque a condição de
pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de
direitos, sendo a dignidade humana o fundamento dos direitos humanos.
Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis
e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais
e culturais.
A partir da Declaração
de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de
proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade
valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.
O processo de
universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um
sistema internacional de proteção destes direitos — forma-se, assim,
o sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito
das Nações Unidas. Este sistema é integrado por tratados
internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética
contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o
consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos.
Neste sentido, cabe destacar que, até junho de 2000, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 144
Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais contava com 142 Estados-partes; a Convenção contra a
Tortura contava com 119 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação
da Discriminação Racial contava com 155 Estados-partes; a Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 165
Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava
a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes. O elevado número de
Estados-partes destes tratados simboliza o grau de consenso
internacional a respeito de temas centrais voltados aos direitos
humanos.
Ao lado do sistema
normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam
internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais,
particularmente na Europa, América e Africa. Consolida-se, assim, a
convivência do sistema global da ONU com instrumentos do sistema
regional, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e
africano de proteção aos direitos humanos.
Os sistemas global e
regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos
valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo
instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional.
Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos
humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o
valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam,
somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a
maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos
fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do
Direito dos Direitos Humanos.
O sistema internacional
de proteção dos direitos humanos envolve quatro dimensões:
1 – A celebração de
um consenso internacional sobre a necessidade de adotar parâmetros mínimos
de proteção dos direitos humanos;
2 – A relação entre
o gramática de direitos e a gramática de deveres; ou seja, os direitos
internacionais impõem deveres jurídicos aos Estados (prestações
positivas ou negativas);
3 – A criação de órgãos
de proteção (ex: Comitês, Comissões e Relatorias da ONU,
destacando-se, como exemplo, a
atuação do Comitê contra a Tortura; do Comitê sobre a Eliminação
da Discriminação Racial, da Comissão de Direitos Humanos da ONU,
das Relatorias especiais temáticas – Relatoria especial da ONU para o
tema da tortura; relatoria para o tema da execução extra-judicial, sumária
e arbitrária; relatoria para o tema da violência contra a mulher;
relatoria para o tema da moradia; da pobreza extrema,...) e Cortes
internacionais (ex: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Tribunal
Penal Internacional,...)
4 – A criação de
mecanismos de monitoramento voltados à implementação dos direitos
internacionalmente assegurados (ex: a sistemática dos relatórios e das
petições)
Estas dimensões são capazes de realçar a dupla dimensão dos
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos,
enquanto: a) parâmetros protetivos mínimos a serem observados pelos
Estados e b) instância de proteção dos direitos humanos, quando as
instituições nacionais se mostram falhas ou omissas.
Nesse sentido, a atuação do Centro de Justiça Global, no que
tange à litigância de casos perante o sistema interamericano, ou,
ainda, no que se refere à submissão de denúncias de violação de
direitos humanos perante as Relatorias temáticas da ONU, concretiza
este duplo impacto dos instrumentos internacionais. Objetiva-se, de um
lado, a observância de parâmetros protetivos mínimos e, ao mesmo
tempo, busca-se impedir retrocessos e arbitraridades e propiciar avanços
no regime de proteção dos direitos humanos no âmbito interno
brasileiro. Esta é a maior contribuição que o uso do sistema
internacional de proteção pode oferecer: propiciar progressos e avanços
internos na proteção dos direitos humanos em um determinado Estado.
A ação internacional
tem auxiliado a publicidade e visibilidade das violações de direitos
humanos, o que oferece o risco do constrangimento político e moral ao
Estado violador, permitindo avanços e progressos na proteção dos
direitos humanos. Vale dizer, ao enfrentar a publicidade das violações
de direitos humanos, bem como as pressões internacionais, o Estado é
praticamente “compelido” a apresentar justificativas a respeito de
sua prática, o que tem contribuído para transformar uma prática
governamental específica, no que se refere aos direitos humanos,
conferindo suporte ou estímulo para reformas internas. Quando um Estado
reconhece a legitimidade das intervenções internacionais na questão
dos direitos humanos e, em resposta a pressões internacionais, altera
sua prática com relação à matéria, fica reconstituída a relação
entre Estado, cidadãos e atores internacionais.
Por fim, indaga-se: considerando o processo de internacionalização
de direitos humanos e a busca civilizatória pela justiça global, quais
os dilemas e tensões contemporâneas que alcançam esse processo, no
contexto histórico do pós 11 de setembro de 2001?
A
“Era dos Direitos” em tempos de terror:
perspectivas para a justiça global
Atônito e perplexo o
mundo acompanhou as cenas de horrores do último dia 11 de setembro de
2001. Se, para os internacionalistas, o Pós 1945 foi o marco para uma
nova era – a da reconstrução de direitos – o Pós 2001 parece
surgir também como novo marco divisório na história da humanidade. A
Conferência de Durban, na África do Sul, encerrada em 08 de setembro,
já antecipava o alcance e o grau do dissenso mundial na luta contra a
discriminação racial, xenofobia e intolerância, em uma ordem
caracterizada pelo choque de culturas, crenças, etnias, raças, religiões…
Se o mundo da Guerra
Fria refletia a bipolaridade de blocos, o mundo Pós Guerra Fria,
lembrava Samuel Huntington4 ,
refletiria o choque entre civilizações. Basta mencionar os conflitos
da década de 90 – Bósnia, Ruanda, Timor, Kosovo, dentre outros.
Neste cenário, como
enfrentar o terror? Como preservar a “Era dos Direitos”
em tempos de terror”? Como garantir liberdades e direitos em
face do clamor público por segurança máxima?
Como reagir à retaliação militar e bélica? Não seria
combater o terror com instrumentos do próprio terror? De que modo os
avanços civilizatórios da “Era dos Direitos” (criados em reação
à própria bárbarie totalitária) podem contribuir para responder ao
conflito que acena à “1ª guerra do século XXI”?
É compreensível que,
neste momento, 94% da população norte-americana – como reação
emocional imediata aos ataques perpetrados por uma rede de poder
difuso e oculto – demande uma resposta violenta, dura e agressiva, na
lógica da justiça retributiva.
Entretanto, a firmeza
da resposta e a busca por justiça devem se orientar pela lógica da
racionalidade e não da vingança. Decisões devem ser tomadas de forma
lúcida, madura e serena, pautadas pelos princípios legados do processo
civilizatório, sem aniquilar conquistas históricas atinentes a
garantias e direitos, de forma a gerar também a cruel e injustificável
morte de mais civis inocentes.
Se, por um lado, são
louváveis as demonstrações de solidariedade no país e no mundo, por
outro, absolutamente preocupantes e perigosas são as manifestações
exacerbadas de um nacionalismo agora ainda mais fortalecido.
A restrição de
direitos, a supressão de garantias, as perseguições, as detenções
arbitrárias, a xenofobia e a intolerância com o outro –
especialmente de origem árabe – enquanto respostas imediatas, poderão
dilapidar e comprometer o patrimônio histórico de direitos que a
humanidade construiu, no Pós-1945, em reação à herança de sistemáticas
violações e atrocidades.
Na ordem internacional,
os delineamentos de um “Estado de Direito Internacional” faziam-se
sentir. A internacionalização de direitos (como acima analisado), o
consenso na fixação de parâmetros protetivos mínimos para a defesa
da dignidade e o recente esforço da comunidade internacional pela criação
de uma justiça internacional – como o Tribunal Penal Internacional
– justificavam a esperança de um “Estado de Direito
Internacional”. Isto é, não bastava apenas enunciar direitos, mas
protegê-los e garanti-los – o que tem estimulado a “justicialização
do Direito Internacional”, conferindo-lhe maior efetividade, mediante
poder sancionatório. As últimas cinco décadas permitiram constatar a
crescente consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos
como referencial ético conformador e inspirador das ordens nacionais
e internacional. Permitiram, ainda, acreditar que a força do direito
poderia prevalecer em relação ao direito da força. Neste sentido,
destacam-se casos paradigmáticos que celebaram a aplicação da jurisdição
universal para graves crimes atentatórios à ordem internacional,
como os casos Pinochet, Milosevic, Tribunais “ad hoc” para Ruanda e
Bósnia, Corte
Internacional para o Camboja e instituição do Tribunal Penal
Internacional.
Por isto, o Pós
setembro de 2001 invocará o maior desafio da “Era dos Direitos”:
avançar no Estado de Direito Internacional ou retroceder ao Estado da
Natureza? Uma vez mais: como preservar a “Era dos Direitos”
em tempos de terror? Quais as perspectivas para a justiça
global?
Ainda estão presentes
em nossa memória os bombardeios efetuados pelos
Estados Unidos à Hiroshima e Nagasaki, à Coréia do Norte, ao
Vietnã, Bagdá e Belgrado. Não se pode deixar de citar o embargo econômico
criminoso, liderado pelo governo americano à Cuba e ao Iraque que,
neste país, nos últimos dez anos, provocou a morte de 500 mil crianças
com menos de 5 anos. Todos esses fatos são, sem dúvida, exemplos do
terrorismo de Estado que vem sendo praticado há anos pelo governo
norte-americano. As entidades de direitos humanos devem procurar
ferramentas para combater os terrorismos de Estado. Não temê-los, mas
conhecê-los e também globalizarem-se através de redes de
solidariedade e de apoio mútuo.
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