Meninos
em Perigo
Paulo
Pereira Lima
Revista
SEM FRONTEIRAS
Um dia depois da sua
festinha de aniversário de 10 anos, Luizinho
saiu para brincar num matagal perto de casa, descalço, sem
camisa e vestindo um calção branco xadrez emprestado do irmão mais
velho. Foi acompanhado do amigo Hermógenes, companheiro de brincadeiras
e da mesma idade. Os dois adoravam caçar passarinho. Era a tarde do
dia 7 de agosto de 2000 na Vila Olímpica, uma ocupação na periferia
de São Luís que virou cidade. A noite veio e, com ela, a preocupação
dos pais, que não sabiam onde os meninos tinham se enfiado.
Com o passar dos dias,
a preocupação virou angústia. Os meses sem notícias dos garotos
foram passando, e um misto de indignação e desespero tomou conta dos
familiares. De desaparecidos a vítimas de um crime que chocou a população
maranhense, os corpos de Luizinho e Hermógenes foram encontrados não
muito longe de casa, num lugar chamado Mata Grande, onde tinham ido,
simplesmente, brincar. Era a tarde do Dia de Finados. Estavam deitados,
sem roupa e de bruços. Um dos meninos estava com um dos braços sobre o
corpo do outro.
“Fiquei muito
desgostosa da vida. Estava mais morta do que viva. Meu coração até
hoje chora”, recorda Dona Rosaria Sousa Cordeiro, mãe de Luizinho e
de outros quatro filhos. Ela tem no colo o caçula, Carlos Henrique, de
3 anos, olhos grandes, arregalados, como quem entende conversa de adulto
e, sobretudo, o olhar triste e as lágrimas da mãe. Marcelo Wilson, de
7, brinca do lado de fora da casa de pau-a-pique de dois cômodos.
Parece feliz da vida com seu brinquedo preferido: uma pequena bicicleta
marrom que vai aos empurrões. “Marcos André, de
8, está na escola, e o mais velho tem 16 anos e mora com a avó”,
ela diz.
“Ele vivia dizendo
que, quando crescesse, queria ser piloto de avião e me levaria para dar
um passeio”, conta Dona Rosaria, que trabalha como lavadeira para
ajudar o marido, José Raimundo, nas despesas da casa. Ela ganha 5 reais
por cada trouxa de roupa.
Mutilações
– Luizinho, Hermógenes, Kleiton, Bernardo, Ivanildo, Carlinhos... A
lista é grande. São crianças e adolescentes que, após dias, meses
desaparecidos, foram encontrados mortos. Em comum não apenas a origem
humilde, mas também o sexo masculino. Eram todos meninos, entre 9 e 15
anos, que moravam em regiões próximas na Grande São Luís – área
que, além da capital, abrange os municípios de Paço do Lumiar, São
José de Ribamar e Raposa.
De 1991, quando
surgiram os primeiros casos, até hoje, foram 19 vítimas. O que chama a
atenção é que 9 meninos foram emasculados. Tiveram os órgãos
genitais extirpados. Por tabela, os demais crimes também ficaram
conhecidos como os dos “meninos emasculados”. Em alguns crimes,
outras partes do corpo das vítimas foram mutiladas. Nos corpos
encontrados poucos dias após o desaparecimento, por exemplo, foram
identificados vestígios de atentado violento ao pudor, além de extirpação
de olhos, língua e dedos. Quanto a Luizinho e Hermógenes, devido ao
estado de putrefação, não houve como identificar se aconteceram esses
tipos de violência.
Apesar de cada um
apresentar suas particularidades, todos os corpos passaram por tortura e
foram achados em locais de mata fechada e difícil acesso, onde existem
muitos tucunzeiros, palmeira típica da região. Na maioria dos casos, o
criminoso cobriu os corpos com palhas para evitar que urubus ou outros
predadores se aproximassem.
Desde o começo, as famílias
das vítimas puderam contar com uma espécie de anjo da guarda nessa
luta por justiça. É o Centro de Defesa dos Direitos da Criança do
Adolescente Pe. Marcos Passerini, que fez dos casos uma “bandeira de
luta”. Em dezembro de 1997, o centro ajudou na formação do Comitê
pela Vida das Crianças e dos Adolescentes da Grande São Luís, que
reuniu diversas organizações de bairro e de defesa dos direitos
humanos, como também os próprios familiares dos garotos assassinados.
Reação
– “Procuramos partilhar o sofrimento das famílias e canalizar a
indignação para exigir providência da Polícia e do poder público”,
conta Nelma Pereira da Silva, coordenadora do Centro de Defesa. Entre as
atividades iniciais do comitê, algumas se destacam, como as missas em
memória dos meninos e a divulgação de um dossiê sobre os casos, que
foi enviado a várias entidades de defesa dos direitos humanos nacionais
e internacionais.
Segundo este trabalho
elaborado com a ajuda de jornalistas e advogados do CDMP (como é
conhecido o Centro de Defesa em São Luís), a maioria dos meninos
exercia algum tipo de trabalho informal (vendiam suquinho, bolo etc.) ou
estudavam. Moravam em ocupações ou mutirões na periferia, onde nem a
Prefeitura nem o Estado investem em políticas públicas. São lugares
onde não existem saneamento básico, linhas telefônicas, posto
policial e de saúde, transporte coletivo. As escolas são poucas e precárias;
na que um dos filhos de Dona Rosária estuda nem janela tem. De resto,
os pais possuem baixa escolaridade e pouca inserção em qualquer forma
de organização comunitária. Muitos são desempregados e vivem de
bicos para tirar o sustento da família.
Nelma lamenta o fato de
a experiência de mobilização ter durado apenas pouco mais de um ano.
Entre as causas do fracasso, ela aponta o estado de pobreza absoluta
dessas famílias que inviabilizava a dedicação e o deslocamento delas
até os locais de reunião, que aconteciam geralmente em lugares
diferentes. “Além disso, faltaram recursos financeiros que
garantissem o próprio funcionamento do comitê”, completa. O contato
com as famílias agora passou a ser esporádico, também devido ao fato
de que elas se mudam com muita freqüência de um bairro a outro.
Impunidade
– Passados dez anos, o quadro atual é de impunidade. Segundo
levantamento do CDMP, dos 19 casos ocorridos, 10 encontram-se com inquéritos
parados nas Delegacias de Polícia, 1 inquérito não foi localizado, 3
foram arquivados por determinação judicial, 3 estão aguardando
julgamento, 2 foram julgados, sendo 1 julgamento anulado e o outro teve
o acusado condenado e, logo em seguida, a ele foi concedida liberdade
condicional.
“É por isso que
estamos entrando com uma denúncia junto à Comissão dos Direitos
Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)”, diz a advogada
Joisiane Gamba. Ela reclama de os órgãos de Segurança e de Justiça
do Estado terem feito muito pouco para esclarecer os homicídios ou
identificar os suspeitos dos mesmos. Devido à morosidade e fragilidade
das investigações da polícia, pairam algumas hipóteses. Uma delas é
de as crianças terem sido executadas por um maníaco sexual. Há também
a possibilidade de os casos estarem relacionados com algum rito satânico
ou até mesmo com o tráfico de órgãos.
Joisiane informa ainda
que no documento enviado a OEA consta um histórico dos casos e um
pedido de condenação do Estado brasileiro por não criar condições básicas
para garantir a sobrevivência de suas crianças e de seus adolescentes.
Do final do ano passado
para cá, o pessoal do Centro de Defesa vem contando com um forte apoio
junto ao Ministério Público. A pedido da Procuradoria da Justiça do
Maranhão, o promotor Paulo Avelar passou a coordenar o trabalho que,
antes, vinha sendo feito pelos seus colegas nas comarcas dos outros
municípios. Ele também critica “a falta de aparelhamento da própria
Polícia e perícia técnica para se chegar à autoria dos crimes”.
Se depender dele, o
Ministério Público não ficará calado diante dos crimes. Pelo contrário,
“vamos continuar cobrando para que nada fique impune”.
É nessa promessa que
apostam todas as fichas não só Nelma, Joisiane e os colegas do Centro
de Defesa, mas sobretudo Dona Rosária e o marido. Eles já pensaram até
em mudar de bairro, para ver se aliviam a dor da perda de Luizinho e,
principalmente, para proteger os outros filhos. E não é por menos: têm
medo de novas vítimas.
“Queria ser mecânico”
“O nome dele era
Ranier, mas o apelido era Rani. Gostava muito de brincar com pipa e
bolinha de gude. Estudava de manhã, e a tarde era pra ele brincar.
Estava cursando a sexta série, com 10 anos. Tinha dois cachorros,
Lubinho e Lubinha. E ele sempre me dizia que quando crescesse queria ser
mecânico, pra me dar uma condição melhor. Ele sempre me dizia isso.
Era alegre, como qualquer outra criança. Gostava muito de assistir
desenho, ele adorava desenhos. Gostava de música, reggae. Amigos ele
tinha. Nas horas vagas, ele gostava de jogar bola com os amigos num
campinho lá do bairro. Gostava de brincar também de carro. Trabalhou
também num sacolão. O Ranier sempre me faz falta, lembro sempre dele:
quando vejo o “pica-pau”, na hora de dormir... Hoje mesmo sonhei com
ele.”
Dona Normélia Silva,
que já mudou de casa umas quatro vezes, na tentativa de “esquecer”
a tragédia. Ranier desapareceu em 17 de setembro e seu corpo foi
encontrado cinco dias depois, apresentando sinais de tortura e com seus
órgãos genitais extirpados. Foi o primeiro caso dos “meninos
emasculados”, seguido pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e
do Adolescente Pe. Marcos Passerini.
Retrato do Maranhão
– 37,1% da violência
contra crianças e adolescentes no Maranhão é praticada por
familiares.
– 53% da população
de São Luís têm de 0 a 17 anos de idade.
– Apenas 31% das
crianças recebem vacinação básica no Estado.
– 28,2% das crianças
de 0 a 14 anos são atingidas pelo analfabetismo.
Fonte: Centro de Defesa
dos Direitos da Criança do Adolescente Pe. Marcos Passerini
Tragédia anunciada
“Mais um garoto é
violentado e morto no Maranhão.” A notícia ganhou destaque nos
principais jornais do país do dia 10 de outubro.
Com o assassinato de
Welson Frazão Serra, de 13 anos, o número dos crimes sobe para 20. O
perfil de Welson é semelhante ao dos demais garotos que já foram
assassinados e emasculados. Todos eram pobres, tinham entre 9 e 15 anos
e moravam em área de ocupação. Welson foi violentado, teve seus órgãos
genitais extirpados, um dedo da mão direita cortado e ainda foi
asfixiado, segundo peritos do Instituto de Criminalística. Seu corpo
foi encontrado em um sítio desabitado da capital. A notícia da morte
chegou também à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA
(Organização dos Estados Americanos), que está processando o Brasil
por causa dos outros 19 casos. No final de setembro, a OEA recebeu a denúncia
enviada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Padre Marcos
Passerini.
Pesquisa
realizada pelo IBGE mostra que, em 1998, a população brasileira do
grupo de idade de 5 a 17 anos era de 43 milhões de habitantes. Desse
total, 7,7 milhões trabalhavam, o que torna o Brasil um dos campeões
do trabalho infantil na América Latina. Apenas Haiti e Guatemala tinham
mais crianças inseridas no mercado de trabalho. Cerca de 16% do
trabalho doméstico infantil nas cidades não é remunerado.
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