Delegacias
Da Mulher em São Paulo:
Percurso e Percalços
Cecília
MacDowell Santos*
Breve histórico
As delegacias da mulher
constituem a principal política pública
de combate e prevenção à
violência contra a mulher no Brasil. A primeira delegacia deste tipo,
inédita no país e no mundo, surgiu em 1985 na cidade de São Paulo
durante o governo Franco Montoro. Foi fruto do contexto político de
redemocratização, bem como dos protestos do movimento de mulheres
contra o descaso com que o Poder Judiciário e os distritos policiais
– em regra, lotados por policiais do sexo masculino – lidavam com
casos de violência doméstica e sexual nos quais a vítima era do sexo
feminino. Atualmente, existem 124 delegacias da mulher no estado de São
Paulo, com nove na capital. O país conta com 307 delegacias da mulher,
ressalvando-se o fato de que o total de municípios com esse tipo de
delegacia não chega a 10%.
Portanto, é de se
notar a concentração das delegacias da mulher em São Paulo (40,7%) e
a distribuição desigual das mesmas no interior dos demais estados.1
A história das
delegacias da mulher deve ser remetida à história do movimento de
mulheres em torno da politização da violência contra a mulher. A
partir de meados dos anos 70, o movimento de mulheres começou a
denunciar amplamente a absolvição, pelos tribunais do júri, dos
autores de homicídios de mulheres. No início dos anos 80, surgiam
grupos feministas em todo o país, denominados SOS-Mulher, voltados ao
atendimento jurídico, social e psicológico de mulheres vítimas de
violência. A então forte e bem sucedida politização da temática da
violência contra a mulher pelo SOS-Mulher e pelo movimento de mulheres
em geral fez com que, em São Paulo, o Conselho Estadual da Condição
Feminina, também criado no governo Franco Montoro em 1983, priorizasse
essa temática, entre outras. O Conselho propunha então a formulação
de políticas públicas que promovessem o atendimento
integral às vítimas de violência, abrangendo as áreas de segurança
pública e assistências social e psicológica.
O governo Montoro
respondeu às propostas do Conselho com a idéia inusitada de uma
delegacia especializada em crimes contra a mulher, lotada por policiais
do sexo feminino. A idéia, que restringiu a perspectiva feminista da
violência contra a mulher ao seu aspecto meramente criminal, partiu do
então Secretário de Segurança Pública, Michel Temer. Na época, vários
delegados de polícia se manifestaram contra a criação das delegacias
da mulher. Mas o governo venceu a resistência da polícia civil e criou
a primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher mediante o Decreto
Nº 23.769/85.2
Embora desconfiadas da
polícia e do estado em geral pelo seu passado recente de autoritarismo,
as feministas integrantes do Conselho Estadual da Condição Feminina de
São Paulo e de alguns grupos de mulheres atuando no combate à violência
contra a mulher apoiaram a iniciativa inédita do governo Montoro. Mas,
desde 1985, vêm tentando influir, com mais ou menos sucesso, na
capacitação das policiais e na delimitação das atribuições das
delegacias da mulher.
Desse modo, desde o seu
nascedouro, a concepção e as atribuições das delegacias da mulher,
assim como a formação cultural dos/as policiais, têm sido resultado
de conflitos e negociações entre organizações feministas –
governamentais e não-governamentais, a polícia civil e as policiais
titulares das delegacias da mulher.3
Atribuições e
funcionamento
O Decreto Nº
23.769/85, que criou a primeira delegacia da mulher na Secretaria de
Segurança Pública de São Paulo, estabeleceu a competência dessa
delegacia especializada para investigar e apurar, entre outros, delitos
de lesão corporal, ameaça, constrangimento ilegal, atentado violento
ao pudor, adultério, etc. Desde 1985, lesão corporal e ameaça constam
como os tipos de crimes mais registrados nas delegacias da mulher em São
Paulo e nos demais estados. Mas o número de inquéritos policiais é
sensivelmente desigual para os dois tipos de crimes. Em 1994, por
exemplo, as delegacias da mulher de São Paulo registraram um total de
114.832 boletins de ocorrência, dos quais 33% eram por lesão corporal
e 26% por ameaça. Enquanto 71,3% dos boletins por lesão corporal
originaram inquéritos policiais, apenas 7,9% dos boletins por ameaça
deram lugar a inquéritos.4
É interessante notar
que, apesar de já em 1985 o Conselho Estadual da Condição Feminina
reivindicar a inclusão do delito de homicídio, este não foi
contemplado pelo decreto. Somente em 1996, passados mais de dez anos
desde a criação da delegacia pioneira, tal delito se inseriu na competência
das delegacias da mulher. Vale também observar que a criação da
delegacia especializada em crimes contra a mulher não excluíu dos
distritos policiais a competência para, concorrentemente, investigarem
e apurarem aqueles crimes. Na prática, porém, tornou-se regra os
policiais nos distritos “empurrarem” as queixosas para as delegacias
da mulher.
Também merece destaque
o fato de que, ao contrário dos distritos policiais, as delegacias da
mulher não dispõem de cadeia e, portanto, não realizam serviço de
carceragem. Na capital, apenas uma delegacia da mulher tem prédio próprio
e funciona 24 horas, inclusive nos fins de semana e feriados. As demais
delegacias da mulher operam no prédio de um distrito policial e
funcionam somente em dias úteis, das 8 horas da manhã até as 6 horas
da tarde.
Saliente-se ainda que,
desde 1985, nenhuma legislação referente a delegacias da mulher tem
feito menção à formação ou
capacitação das policiais
titulares dessas delegacias. Os poucos cursos de capacitação sob a
perspectiva de gênero, oferecidos às policiais pelo Conselho Estadual
da Condição Feminina e por algumas ONGs de mulheres, têm sido
resultado da vontade política de algumas policiais em postos de
coordenação dos trabalhos das delegacias. A Academia de Polícia,
responsável pelo curso preparatório de três meses destinado a todos
os policiais que ingressam na carreira, jamais integrou em seu curriculum
um curso específico sobre violência contra a mulher ou violência de gênero.
Entre 1985 e 1986, na
gestão Montoro, criaram-se 13 delegacias da mulher. Na gestão seguinte
de Orestes Quércia, entre 1987 e 1990, esse número cresceu para 58.
Devido à expansão dessas delegacias, criou-se, em 1989, uma Assessoria
Especial das Delegacias de Defesa da Mulher (hoje denominada Serviço Técnico
de Apoio às Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher – DGP), cujas
integrantes são designadas pelo Delegado Geral de Polícia, com o fim
de assessorá-lo e manter relacionamento direto com as policiais
titulares das delegacias da mulher. Em 1989, ampliou-se também a competência
das delegacias da mulher, com a inclusão dos crimes contra a honra,
tais como calúnia, injúria e difamação, e o crime de abandono
mateiral (Decreto Nº 29.981/89).
A grande mudança, porém,
nas atribuições das delegacias da mulher, teve lugar no primeiro
governo Mário Covas. Em 1996, o Decreto Nº 40.693/96 não apenas
ampliou as atribuições das delegacias da mulher, mas também deu-lhes
nova caracterização. Além dos crimes contra a mulher, essas
delegacias passaram também a investigar e apurar os delitos contra a
criança e o adolescente, previstos no Estatuto da Criança e do
Adolescente. A essas delegacias coube, ainda, apurar mais
crimes contra a mulher, como, por exemplo, homicídio ocorrido no âmbito
doméstico e de autoria conhecida. Por outro lado, sua competência
extendeu-se aos crimes de aborto provocado pela gestante ou com seu
consentimento, aborto provocado por terceiro e infanticídio, entre
outros crimes adicionais. Nesses casos, a mulher passou de vítima a
criminosa, as delegacias da mulher não mais servindo-lhe
necessariamente de “defesa”.
Interessante notar que,
por ocasião de um debate sobre a expansão das atribuições das
delegacias da mulher, realizado na Assembléia Lesgilativa de São Paulo
no início de 1996, tive a oportunidade de observar que muitas delegadas
titulares de delegacias da mulher, temendo a extinção de tais
delegacias, defenderam a farta ampliação de sua competência,
inclusive com o acréscimo de crimes de aborto e infanticídio.
Essas mudanças de
atribuições e as posições das delegadas devem ser compreendidas em
um contexto mais amplo de política da administração da justiça
criminal. Em 26 de setembro de 1995, foram criados os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais, com o objetivo de informalizar a justiça,
tornando-a mais célere e eficiente (Lei Nº 9.099/95). Os Juizados
Especiais Criminais foram também idealizados para substituir penas
repressivas por penas alternativas (compensações pecuniárias, serviços
comunitários e conciliações) no caso de “infrações penais de
menor potencial ofensivo”. Consideram-se tais infrações os crimes e
contravenções com pena inferior a um ano de detenção. Nesses casos,
o inquérito policial foi substituído por um “Termo
Circunstanciado”, uma espécie de inquérito simplificado com um
resumo da ocorrência, acompanhado do laudo pericial, quando necessário,
devendo tal Termo ser remetido ao Juizado para realização de audiência
de conciliação e julgamento.
Os Juizados Especiais
Criminais tiveram, e continuam tendo, uma série de consequências sobre
os distritos policiais e as delegacias da mulher. No primeiro caso,
serviram para “desafogar” os distritos. No tocante às delegacias da
mulher, retiraram destas o papel de mediação de uma série de
conflitos que compõem a grande maioria das queixas ali processadas,
dando novo sentido a sua criminalização.5
Isto porque os delitos de lesão corporal (de natureza leve) e ameaça,
cujas penas são inferiores a um ano, continuaram sendo os mais
registrados nas delegacias da mulher. No ano 2000, por exemplo, do total
de 310.058 boletins de ocorrência e termos circunstanciados efetuados
nas delegacias da mulher de São Paulo, 25% corresponderam a lesão
corporal e 20% ao delito de ameaça. Infelizmente, os dados disponíveis
desde 1996 não desagregam boletins de ocorrência e termos
circunstanciados, não se tendo acesso tampouco ao número de inquéritos
policiais. Os dados também não indicam se as ocorrências por lesão
corporal são de natureza leve ou grave.6
Mas delegadas titulares das delegacias da mulher e o juiz titular do único
Juizado Especial Criminal instalado em São Paulo, no Foro de Itaquera,
estimam que a maior parte dos registros nas delegacias da mulher são
encaminhados aos Juizados Especiais Criminais.7
A Lei Nº 9.099/95 tem
recibido várias críticas por parte de militantes feministas,
pesquisadores e policiais.8 No
Juizado, os juízes em geral são do sexo masculino e não recebem
qualquer treinamento para lidar com a problemática específica da violência
contra a mulher. A conciliação é utilizada como um fim, não como um
meio de solução do litígio. Através da promoção de um acordo com
renúnica do direito de representação, ou da aplicação de penas
alternativas, que resultam em geral na distribuição de cestas básicas
ou prestação de trabalhos comunitários não relacionados à violência
contra a mulher, tal violência passa a ser banalizada e a justiça se
torna questionável, dando azo à impunidade.
Outra mudança
importante nas atribuições das delegacias da mulher de São Paulo
deu-se em 1997, com a promulgação do Decreto Nº 42.082/97, que veio
conferir a essas delegacias competência para “o cumprimento dos
mandados de prisão civil por dívida do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia”.
O cumprimento desses mandados tem aumentado o trabalho das
investigadoras de polícia e tem também incentivado a tranferência de
investigadores do sexo masculino para as delegacias da mulher.
Para limitar a entrada
dos policiais do sexo masculino nas delegacias da mulher, o Delegado
Geral de Polícia baixou a Portaria DGP Nº 11/97, estabelecendo que “Às
Delegacias de Defesa da Mulher deverão ser designadas,
preferencialmente, policiais civis do sexo feminino, principalmente para
o exercício das funções relacionadas ao atendimento público”.
Ainda assim, é comum investigadores de polícia integrarem e chefiarem
as equipes nas delegacias da mulher da capital, atendendo, inclusive,
ligações telefônicas do público. As delegadas não se queixam da
presença masculina, ao contrário, consideram-na necessária para
melhor cumprimento de suas funções.
Vale observar a influência
de papéis de gênero na ocupação dos três cargos policiais de
delegado, escrivão e investigador. Até abril de 1999, 12,5% dos
delegados de polícia no estado de São Paulo eram do sexo feminino;
45,5% dos escrivãos eram mulheres; e apenas 9,3% dos investigadores
eram mulheres.9 Dos três
cargos, o investigador é o que mais realiza trabalho “de rua”,
expondo-se à reação violenta de homens indiciados. O trabalho dos
escrivãos é interno e administrativo, mais associado ao papel
feminino de secretariado, o que permite maior acesso das mulheres a essa
função. As funções dos delegados, no entanto, que detêm maior poder
na delegacia, continuam sendo associadas ao papel masculino.
Contribuições à
cidadania de gênero
A despeito de muitos
obstáculos, a criação das delegacias da mulher em São Paulo, e
provavelmente em todo o Brasil, tem contribuído para a construção de
uma cidadania de gênero no país, cidadania essa que reconhece as posições
sociais hierárquicas em função do sexo e promove a igualdade de
direitos, incluindo-se aqui o direito a ter direitos e o direito de
acesso à justiça.
Em primeiro lugar, as
delegacias da mulher dão visibilidade à violência contra a mulher. A
inauguração da primeira delegacia da mulher, em 6 de agosto de 1985,
atraíu enorme atenção da mídia nacional e inclusive internacional,
inspirando a criação de outras delegacias similares em todo o país e
inclusive no exterior. Na América Latina, treze países já contam com
delegacias da mulher e da criança. Desde o início, essa invenção
brasileira mostrou que o problema da violência contra a mulher no país
era a regra, não a exceção, tornando público
um fenômeno que era visto como privado
e até normal.
Segundo a primeira
delegada titular da primeira delegacia da mulher, Dra. Rosmary Corrêa,
no dia seguinte à inauguração havia uma fila de 500 mulheres na porta
da delegacia. Assim, esse novo canal institucional voltado
especificamente às mulheres deu-lhes coragem para denunciar a violência
que sofriam em silêncio ou que, quando denunciada, não era levada a sério
pelos distritos policiais. Em 1984, por exemplo, um ano antes da criação
da primeira delegacia da mulher, os distritos policiais no município de
São Paulo registraram cerca de 3.000 ocorrências oriundas de queixas
de mulheres vítimas de violência, ao passo que a primeira delegacia da
mulher registrou, sozinha, entre agosto de 1985 e agosto de 1986, cerca
de 7.000 ocorrências e atendeu 65.000 mulheres.
Desde então, o número
de ocorrências registradas aumentou em progressão geométrica. Isso
fez com que o Brasil fosse considerado campeão de violência contra a
mulher durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pelas
Nações Unidas em Beijing em 1995. A violência contra a mulher no
Brasil tem-se tornado cada vez mais visível e o número de denúncias
continua crescendo. No ano 2000, por exemplo, foram registrados 310.058
boletins de ocorrência e termos circunstanciados nas delegacias da
mulher de São Paulo. Convém lembrar, todavia, que esse elevado número
não significa necessariamente maior incidência de violência. O maior
número de delegacias da mulher e a ampliação crescente de suas
atribuições provavelmente incentivam a denúncia e desnudam um fato
social que sempre existiu.
Em segundo lugar, a
criação de delegacias da mulher abriu um novo mercado de trabalho para
policiais do sexo feminino, contribuindo assim para maior
representatividade da mulher no sistema de justiça criminal. Até 1985,
contavam-se 15 delegadas de polícia no estado de São Paulo. Até
fevereiro de 1999, o número de delegadas chegou a 388. Ainda assim,
predominam os policiais do sexo masculino, em número de 3.102, como é
regra na magistratura, no Congresso Nacional e nos mais altos cargos do
Executivo.10
Obstáculos à
cidadania de gênero
As delegacias da mulher
encontram, porém, uma série de obstáculos para a ampliação do
acesso à justiça e a construção de uma cidadania de gênero no
Brasil. Em primeiro lugar, o fato de haver mais mulheres na polícia não
garante maior sensibilidade e capacitação para lidar com violência
conjugal, estupro dentro e fora do casamento, violência contra mulheres
negras, violência policial contra prostitutas, violência contra
idosas, violência contra lésbicas, assédio sexual, violência contra
crianças, enfim, toda uma gama de violências sofridas por mulheres de
variadas classes sociais, origens étnicas e raciais, orientações
sexuais, idades, etc. A falta de institucionalização de cursos de
capacitação sob a perspectiva de gênero, raça, classe e orientação
sexual é um dos maiores obstáculos à mudança social potencialmente
advinda da criação de delegacias da mulher. Esse é um obstáculo político
que só poderá ser vencido com a tenaz mobilização de organizações
não-govermentais de mulheres e das policiais que porventura tiveram
acesso a cursos de capacitação na ótica de gênero.
Em segundo lugar, as
delegacias da mulher enfrentam discriminação e preconceito dentro da
própria polícia, tanto por parte de policiais do sexo masculino quanto
de policiais do sexo feminino. Desde o seu nascedouro, essas delegacias
foram alvo de escárnio. Certa vez, uma delegada titular da primeira
delegacia da mulher observou, de sua janela no primeiro andar, um
delegado que passava na calçada cuspindo na placa da delegacia. A
instituição policial é marcada por hierarquias e por uma cultura de
hierarquização. Embora a lei não estabeleça hierarquias entre os
funcionários das delegacias da mulher e dos distritos policiais, não
raro as delegacias da mulher são vistas como de valor inferior. Na visão
de muitos policiais, essas delegacias fazem mais um serviço
“social” do que propriamente policial. Consequentemente, para esses
policiais, os crimes ali apurados não são “verdadeiros” crimes.11
Além dessas limitações
culturais, as delegacias da mulher enfrentam obstáculos típicos de
todo o aparato policial e judiciário. Há precariedade material e de
recursos humanos. No âmbito material, somente as delegacias da mulher
da capital dispõem de computadores e estes não funcionam em rede. A
maior parte das viaturas não está equipada com rádio. Nenhuma
delegacia da mulher possui terminais para consulta de antecedentes
criminais. Quanto a recursos humanos, faltam escrivãs de polícia.
Algumas delegadas acumulam funções com outras delegacias. Faltam
casas-abrigo, comprometendo-se a segurança da mulher e das crianças em
risco de vida.12 O
estado de São Paulo dispõe apenas de uma casa-abrigo, o COMVIDA, com
capacidade para cerca de 30 mulheres, acompanhadas de seus filhos.
Igualmente típico de
todo o sistema de justiça criminal, a maior parte das ocorrências
(menos de 20%) não dão lugar a inquéritos policiais. A impunidade é
assim dissimulada por uma aparência de justiça. Com a criação dos
Juizados Especiais Criminais, o número de inquéritos ficou ainda mais
reduzido e a questão da impunidade ganhou maior destaque.
Sem menosprezar o
debate necessário acerca dos efeitos dos Juizados Especiais Criminais
na qualidade de justiça produzida, há que se perguntar se a
criminalização da violência contra a mulher é realmente a melhor
solução para todas as formas de violência, como, por exemplo, a violência
conjugal, a violência racial contra mulheres, a violência policial
contra prostitutas, a discriminação por orientação sexual, etc. Uma
vez que cada uma dessas formas de violência envolve diferentes tipos de
relações sociais, a compreensão das mesmas e sua solução devem ser
igualmente diferenciadas.
Por outro lado, não se
pode perder de vista que a criminalização, mesmo não sendo eficaz,
funciona como ameaça e poder simbólico do estado para neutralizar a
diferença de poder que está na base das variadas formas de violência
contra a mulher. Ademais, mesmo que o poder neutralizante do estado não
seja eficiente para coibir de todo essas violências, o mero fato de
existirem delegacias da mulher contribui para a construção de uma
identidade de gênero, gera uma certa auto-confiança nas mulheres e
lhes permite a articulação de um certo senso de direitos.13 Em
um país marcado por graves violações de direitos humanos como é o
caso do Brasil, essa pequena semente de cidadania não pode ser
desprezada.
Crianças e
adolescentes de origem humilde e do sexo masculino aparecem mortos na
Grande São Luís, no Maranhão. Desde 1991 são 19 vítimas. Nove delas
tiveram os órgãos genitais extirpados, além de outras partes do corpo
como olhos, língua e dedos. O Centro de Defesa da Criança e
Adolescente de São Luis do Maranhão tenta esclarecer o que há por trás
da morte de 19 meninos da periferia.
|