A
Repressão às Violações Aos Direitos Humanos não pode permanecer
escrava da inoperância do Governo Federal
Frei
Betto*
A OIT (Organização
Internacional do Trabalho) consagrou o ano de 2001 ao combate ao
trabalho escravo. Embora o presidente FHC tenha prometido, em 1995, que
poria fim ao trabalho escravo no Brasil, o Ministério do Trabalho
avalia que existam três trabalhadores em regime de escravidão para
cada resgatado. Estatísticas da SIT (Secretaria da Inspeção do
Trabalho) revelam que foram libertados da escravidão, em 1999, 639
trabalhadores; em 2000, 588; e 435 até maio deste ano.
Em abril firmou-se um
“termo de compromisso”, em Marabá (PA), entre a SIT, o Ministério
Público do Trabalho, a Delegacia Regional do Trabalho do Pará e três
fazendeiros do sul do Estado: Roque Quagliato, Maurício Pompéia Fraga
e José Coelho Victor, donos de 23 fazendas na região. Malgrado a
resistência da SIT, a negociação retirou da Polícia Federal a
fiscalização de trabalho escravo, maus-tratos e desrespeito à legislação.
Sem a PF, os fiscais não têm segurança para cumprir sua missão e os
trabalhadores rurais não gozam do clima de confiança necessário para
orientar as investigações. O surpreendente: das 13 fazendas do grupo
Quagliato, 6 já foram denunciadas por trabalho escravo – entre elas,
a Brasil Verde. Por causa dessa fazenda, o governo brasileiro é alvo de
uma representação na OEA por “omissão e negligência em investigar
diligentemente a prática de trabalho escravo”.
Desde 1999, a CPT
(Comissão Pastoral da Terra) denuncia os recuos sucessivos do governo
federal na repressão ao trabalho escravo. Em decorrência de pressões
articuladas por grandes proprietários e políticos cúmplices, a
fiscalização móvel vem perdendo seus principais atributos (sigilo
total e centralização do comando), bem como espaço e recursos. A punição
dos infratores continua virtual: as multas não são pagas; os processos
se arrastam ou caducam; e a Justiça Federal declina de sua competência.
As desapropriações – com altas indenizações – das fazendas
flagradas com escravos são prêmios para os donos.
O acordo de abril
inviabiliza as fiscalizações futuras, abrindo brechas para que os
infratores se coloquem à margem da lei. Isso consagra a impunidade. Uma
fiscalização feita, de abril a maio, na fazenda Forkilha, do latifundiário
Jairo Andrade, flagrou 114 trabalhadores em regime de escravidão, que
foram resgatados pela PF. Andrade permanece impune. Em junho, o Grupo Móvel
de Fiscalização do Ministério do Trabalho libertou 97 trabalhadores
escravizados nas fazendas de Ediones Bannach, no município de Bannach,
sul do Pará.
Para a CPT, o combate sério
ao trabalho escravo exige: a anulação do acordo de abril; a reafirmação
da competência exclusiva do Grupo Móvel na fiscalização; e a definição
da competência da Justiça Federal. Urge, ainda, excluir de
financiamentos públicos as empresas rurais flagradas com trabalho
escravo.
O ministro do Trabalho,
Francisco Dornelles, aprovou em maio parecer da Consultoria Jurídica de
seu ministério sobre o conflito de interpretação da legislação
aplicável à determinação das multas na ocorrência de infração
trabalhista em atividade rural. A CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho) concede ao empregador rural um sistema de multas bem mais
leves do que o aplicável ao empregador urbano.
Pela lei nº 5.889, de
1973, a multa do empregador rural tem seu valor rebaixado em relação
à do empregador urbano. Tendo em vista a equiparação de direitos
estabelecida pela Constituição de 88 entre os trabalhadores urbanos e
rurais e no intuito de assegurar o imediato ressarcimento de direitos
aos trabalhadores flagrados em trabalhos forçados, a SIT tem se pautado
sempre nas determinações da CLT (que não faz essa distinção
rural-urbano), não obstante a contradição dos textos existentes.
Essa posição está
sendo inviabilizada pelo parecer ora aprovado. Com a nova orientação,
a efetiva penalização dos infratores perde o pouco efeito que
comportava, pois a perspectiva da multa levava, na maioria dos casos, a
um pagamento imediato das verbas sonegadas pelo infrator. Essa pressão
deixa de existir. Pelo valor irrisório a ser cobrado, tudo indica que
os débitos não terão como ser incluídos na dívida ativa da União.
O parecer que impôs
esse retrocesso foi publicado três dias depois da divulgação, pela
OIT, de seu relatório “Stopping Forced Labour”. Diz o parágrafo 81
do relatório, sob o título “Leis mais duras, mas execução ilusória”:
“O governo brasileiro sancionou recentemente nova legislação,
visando penalizar mais eficazmente vários aspectos de trabalhos
degradantes, entre eles o trabalho escravo. Apesar dessas medidas, pouquíssimas
pessoas culpadas de praticar o trabalho forçado têm sido penalizadas.
Embora tenham sido resgatadas do trabalho forçado, em 1999, mais de 600
pessoas, graças às operações do Grupo Móvel de Fiscalização, há
informação de apenas duas prisões em decorrência desses fatos.
Enquanto o governo
menciona a necessidade de sanções mais severas, a evidência destas
continua tênue. A impunidade dos responsáveis, a morosidade dos
processos judiciais e a falta de coordenação entre órgãos do governo
acabam protegendo os responsáveis pela prática do trabalho forçado no
Brasil. Os poucos casos de condenação dizem respeito a intermediários
ou a pequenos proprietários”.
É estranhíssimo esse
novo recuo das autoridades no combate ao trabalho escravo. A repressão
às violações aos direitos humanos não pode permanecer escrava da
inoperância do governo.
Texto
publicado em 18/7/2001 na seção
“Tendências/Debates”
do jornal Folha de S. Paulo
A Comissão Pastoral da
Terra (CPT) registrou uma sucessão de 706 assassinatos de trabalhadores
rurais no Pará, entre 1971
e 2001, sendo que 534 ocorreram nas regiões Sul e Sudeste do Estado. Ao
longo deste ano, oito trabalhadores já foram assassinados. De abril a
julho, ocorreram 126 detenções de lavradores por ocupação de terra,
a maior média histórica. De 1º de janeiro a 23 de setembro de 2001,
foram contabilizados 953 trabalhadores em regime de trabalho escravo em
15 fazendas no Sul e Sudeste do Pará. Em 2000 eram 359.
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