O
Sistema Internacional dos Direitos Humanos no Brasil
* Flávia Piovesan
O
Estado brasileiro passou a ratificar os principais tratados de
proteção dos direitos humanos a partir do processo de
democratização, iniciado em 1985. Impulsionado pela Constituição
de 1988 – que consagra os princípios da prevalência dos
direitos humanos e da dignidade humana – o Brasil passa a se
inserir no cenário de proteção internacional dos direitos
humanos. Assim, a partir da Car?ta de 1988 foram ratificados pelo
Brasil: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção contra a Tortura
e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de
setembro de 1989; c) a Convenção sobre os Direitos da Criança,
em 24 de setembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24
de janeiro de 1992; f) a Convenção Americana de Direitos
Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; h) o Protocolo à
Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em
13 de agosto de 1996 e i) o Protocolo à Convenção Americana
referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo
de San Salvador), em 21 de agosto de 1996.
Adicione-se
que, em 03 de dezembro de 1998, o Estado Brasileiro reconheceu a
competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, por meio do Decreto Legislativo n.89/98. Em 07 de
fevereiro de 2000, o Brasil assinou o Estatuto do Tribunal
Internacional Criminal Permanente.
Recente,
portanto, é o alinhamento do Brasil à sistemática internacional
de proteção dos direitos humanos.
Os
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, ao
consagrarem? parâmetros mínimos a serem respeitados pelos
Estados, apresentam um duplo impacto: são acionáveis perante as
instâncias nacionais e internacionais. No campo nacional, os
instrumentos internacionais conjugam-se com o Direito interno,
ampliando, fortalecendo e aprimorando o sistema de proteção dos
direitos humanos, sob o princípio da primazia da pessoa humana.
No campo internacional, os instrumentos internacionais permitem
invocar a tutela internacional, mediante a responsabilização do
Estado, quando direitos humanos internacionalmente assegurados são
violados. Para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o
Estado tem a responsabilidade primária no tocante à proteção
de direitos, tendo a comunidade internacional a responsabilidade
subsidiária, quando as instituições nacionais se mostrarem
falhas ou omissas na proteção de direitos. O objetivo maior da
tutela internacional é propiciar avanços internos no regime de
proteção dos direitos humanos.
Cabe
realçar que, no caso brasileiro, uma média de 50 casos foram
impetrados contra o Estado brasileiro, perante a Comissão
Interamericana, no período de 1970 a 1998. Estes casos foram
encaminhados, via de regra, por entidades não-governamentais de
defesa dos direitos humanos,
de âmbito nacional
ou internacional
e, por vezes,
pela atuação
conjunta dessas
entidades. O universo dos 50 casos pode ser classificado em 7
grupos: 1) casos de detenção arbitrária e tortura cometidos
durante o regime autoritário militar; 2) casos de violação dos
direitos das populações indígenas; 3)
casos de violência rural; 4)
casos de violência da polícia militar; 5) casos de violação
dos direitos de crianças e adolescentes; 6) casos de violência
contra a mulher e 7) casos de discriminação racial.
Note-se
que 70% dos casos referem-se à violência da polícia militar, o
que demonstra que o processo de democratização foi incapaz de
romper com as práticas autoritárias do regime repressivo
militar, apresentando como reminiscência um padrão de violência
sistemática praticada pela polícia militar, que não consegue
ser controlada pelo aparelho estatal. A grande distinção entre
as práticas autoritárias verificadas no regime militar e no
processo de democratização está no fato de que, no primeiro
caso, a violência era perpetrada direta e explicitamente por ação
do regime autoritário e sustentava a manutenção de seu próprio
aparato ideológico. Já no processo de democratização, a sist?emática
violência policial apresenta-se como resultado, não mais de uma
ação, mas de uma omissão do Estado em não ser capaz de deter
os abusos perpetrados por seus agentes. Tal como no regime
militar, não se verifica a punição dos responsáveis. A
insuficiência, ou mesmo, em alguns casos, a inexistência de
resposta por parte do Estado brasileiro é o fator que — a
configurar o requisito do prévio esgotamento dos recursos
internos — enseja a denúncia dessas violações de direitos
perante a Comissão Interamericana.
Ao
lado dos casos de violência da polícia militar, constata-se que
os casos restantes revelam violência cometida em face de grupos
socialmente vulneráveis, como as populações indígenas, a
população negra, as mulheres, as crianças e os adolescentes.
Observe-se ainda que, em 90% dos casos examinados, as vítimas
podem ser consideradas pessoas socialmente pobres, sem qualquer
liderança destacada, o que inclui tanto aqueles que viviam em
favelas, nas ruas, nas estradas, nas prisões, ou mesmo, em regime
de trabalho escravo no campo.
A
ação internacional tem auxiliado a visibilidade das violações
de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento político
e moral ao Estado violador, o que tem permitido avanços e
progressos na proteção dos direitos humanos. A?o enfrentar a
publicidade das violações de direitos humanos, bem como as pressões
internacionais, o Estado é praticamente “compelido” a
apresentar justificações a respeito de sua prática, o que tem
contribuído para transformar uma prática governamental específica,
no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ou estímulo
para reformas internas. Quando um Estado reconhece a legitimidade
das intervenções internacionais na questão dos direitos
humanos e, em resposta a pressões internacionais, altera sua prática
com relação à matéria, fica reconstituída a relação entre
Estado, cidadãos e atores internacionais.
O
sistema internacional invoca um parâmetro de ação para os
Estados, legitimando o encaminhamento de denúncias se estes
standards internacionais são desrespeitados. Neste sentido, a
sistemática internacional estabelece a tutela, a supervisão e
o monitoramento do modo pelo qual os Estados garantem os direitos
humanos internacionalmente assegurados.
Pode-se
afirmar que,
com o
intenso envolvimento
da sociedade
civil, os
instrumentos internacionais
constituem um poderoso mecanismo para reforçar a proteção dos
direitos humanos e o regime democrático no país, a partir dos
delineamentos de uma cidadania ampliada, capaz de combinar
direitos e garantias nacional e internacionalmente assegurados.
*
Flávia
Piovesan, Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de
Direitos Humanos e Direito Constitucional, Procuradora do
Estado de São Paulo, Coordenadora do Grupo de Trabalho de
Direitos Humanos da PGE/SP é membro do Conselho Consultivo do
Centro de Justiça Global.
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