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Consequências da tortura

Que tipos de reações a tortura provoca numa pessoa?

Embora o estudo dos processos políticos da Justiça Militar tenha permitido registrar muitas denúncias de tortura, são raras as descrições de seus efeitos sobre as vítimas. Há sequelas de ordem ca, psicológica e moral. Muitos se calaram sobre torturas e torturadores. Alguns por conselho de seus advogados, outros, marcados O medo que essa forma de violência gerou.

“Não fiz alusões a torturas quando fui ouvido aí na Auditoria da 7ª Região Militar. Primeiro, porque a senhora me acon­selhou a ser prudente, para evitar que voltasse a sofrer novos maus-tratos”, escreveu em carta à sua advogada o comerciante José Calistrato Cardoso Filho, de 29 anos, preso em Pernam­buco em 1972.

Á jornalista Helena Miranda de Figueiredo, de 45 anos, presa São Paulo, declarou em juízo, em 1973:

(...) Em resposta às perguntas do Ten. Cel., Presidente do Conselho, respondeu que é possível que possa reconhecer os agressores, mas prefere não fazer, porque um deles ainda ameaçou a interroganda de morte, dizendo que passaria o carro sobre o seu corpo. Acrescentou a interrogada que está apavorada até hoje pelo que viu e ouviu, e sofreu grandes ameaças a todo momento, ouvindo palavrões e promessas de maiores sevícias, não só na pessoa dela interrogada, como de seus familiares, incluindo o seu filho que conta hoje 13 anos de idade; que gestos obscenos e demonstrando como ela iria ser utilizada, inclusive o seu corpo, através de muitos dos ele­mentos que se encontravam nas imediações, levaram a inter­rogada a se apavorar com aquilo de que foi vitima, embora não tenham levado a efeito as ameaças, até hoje; pressente que muita coisa pode acontecer, dai preferir silenciar sobre a indicação dos nomes daqueles que a atormentaram por tão longo tempo; (...)

Entretanto, outros réus não apenas denunciaram nomes de seus algozes, como também descreveram, perante o tribunal militar, as reações que tiveram às torturas, como foi o caso da professora Maria Cecilia Bárbara Wetten, de 29 anos, presa no Rio e ouvida em 1977:

(...) que, no segundo dia, sofreu muitos choques que pro­duziram quedas na depoente, sua língua enrolou, chegando a sufocá-la e, durante 8 dias, perdeu a coordenação motora da perna; (...) começou a evacuar sangue; (...)

Em Brasília, o advogado José Maria Pelúcio Pereira, de 34 anos, contou, em 1975, que, após levar choques, “ficava sem dormir, e mesmo quando estava acordado tinha visões”.4 No Rio, o estudante José Mendes Ribeiro, de 24 anos, em 1977, “chegou a perder a noção de tempo” após receber choques elétricos, pancadas e passar pela “ge­ladeira”. (...) “Nessas circunstâncias a pessoa perde a noção do tempo”, repete em seu depoimento, em 1976, o publicitário Paulo Elisiário Nunes, de 36 anos, seviciado em Belo Horizonte. O jornalista Paulo César Farah, de 24 anos, declarou em 1970, no Rio, que nele as torturas “provocaram o resultado do declarante, durante cerca de um mês, urinar sangue” ‘, reação confirmada pelo estudante Paulo de Tarso Wenceslau, de 28 anos, em seu depoimento na 2a Auditoria do Exército, em S. Paulo, em 1970: “( .) que declara ao Conselho que ainda presentemente está urinando sangue e não recebe assis­tência médica; (...) Mais detalhado é o relato do jornalista Nelson Luiz Lott de Morais Costa, de 22 anos, na Justiça Militar do Rio, em 1971, após longo período de torturas no quartel da Polí­cia do Exército:

(...) “que, em coisa de um mês, o interrogando perdeu cerca de 20 quilos; que os médicos, inclusive, achavam que o interro­gando não estava em perfeito estado psíquico, falava sozinho, dizendo palavras desconexas; (...) “que, após esses fatos, se sentiu abalado moral e psíquica­mente; que depois, analisando seu comportamento naquela época e conversando com outros presos tempos depois, in­clusive com psiquiatras, eles acharam, em concordância com ele depoente, que o seu comportamento era psico-maníaco­depressivo, ausência total de sentimentos, não raciocinando mais, inclusive, ao chegar numa cela coletiva às 8 horas da noite, falando sem parar até às 3 horas da manhã, emitindo palavras desconexas; (...) que atualmente continua sendo vítima de alucinações, depressões, que há momentos em que sente vontade de morrer, presa de alucinações e sofrimentos psíquicos; (...)

Em carta-denúncia, anexada aos autos do processo em 1977, o engenheiro Haroldo Borges Rodrigues Lima, de 37 anos, diz que começou “a perder a noção do tempo, pois a luz do dia eu não mais a via. (...) Após a demorada sessão de choque, enfurecido por não ter conseguido o que desejava, desferiu-me tão violento golpe obre o coração que, momentaneamente, perdi os sentidos. A dor na região afetada acompanhou-me por mais de dois meses, dificultando­ a respiração”.

Uma apreciação mais científica das conseqüências da tortura encontra-se no relatório médico da paciente Maria Regina Peixoto Pereira, de 20 anos, assinado pelo Dr. Ronaldo Mendes de Oliveira Castro, a 17 de junho de 1970, e encaminhado ao Dr. Abib Cury, chefe da Divisão Médica do 1º Hospital Distrital de Brasília:

Internada no 1º H.D.B., no apto. 519, procedente do DOPS, onde se encontrava detida desde o dia 29.5.70.

            Motivo da internação: removida por apresentar estado con­fusional e impossibilidade de deambulação.

- Queixa principal: dor de cabeça e sensação de fraqueza.

Logo nos primeiros dias de prisão começou a sentir-se angus­tiada, com pânico e medo, acompanhado de cefaléia intensa fronto-lateral esquerda, constante e latejante. Ao mesmo tempo notou dificuldade de movimentação de todo o corpo.

Apresentou a seguir estado confusional agudo, desorientação temporal, perda de senso de realidade e idéias de autoextermínio. Tinha a impressão, durante a noite, de que o interro­gatório a que foi submetida continuava sem cessar, não con­seguia distinguir o real do imaginário, não sabendo precisar por quanto tempo permaneceu naquele estado.

-            Informa ter sofrido agressões físicas, como por exemplo:

espancamento no abdômem e choques elétricos na cabeça. (...)

-            Queixa-se ainda de diminuição da memória para fatos recentes.

- Relata que vem tendo, há dias, contrações no corpo todo, não sabendo quando iniciaram, mas que são de poucos dias para cá.

- Exame Mental: Hiperemotividade, prantos frequentes. Dis­curso lento e com voz sussurrada e entrecortada de períodos de silêncio. Dificuldade de contato inicial, melhorando no de­correr da entrevista. Humor deprimido.

-            Hipominésia para fatos recentes. Percepção, atenção e inte­ligência sem alterações.

-            Desorientada no tempo e ainda algo confusa. Curso do pen­samento: vivências de terror e pânico.

- Idéias suicidas.

-            Apresenta reações primitivas de regressão e conversão histérica.

Outro exemplo é o exame de sanidade mental do sociólogo Lúcio de Brito Castello Branco, assinado pelo major-médico da Aeronáu­tica, Dr. Samuel Menezes Faro, e pelo 1º tenente-médico da Aero­náutica, Dr. Roberto Romero dos Santos, anexado aos autos de um processo de 1971, no Rio:

(...) Aproveitamos para uma rápida entrevista com a esposa. (...) conta que logo após a prisão estava em estado psíquico profundamente abalado, sem reagir a estímulos dos circuns­tantes, estático, vertendo lágrimas continuamente, apresentan­do, além disso, tremor do membro inferior D. A esposa refe­riu-se ainda a sono agitado, a pesadelos e agorafobia.

(...) Instado a responder sobre sua prisão, relata sob certa comoção que teria sido seqüestrado por terroristas, quando em presença de um colega. Teria sofrido maus-tratos por parte destes elementos; (...) Notamos, durante seu relato, certo tremor no seu pé direito. (...) Apresenta uma amnésia la­cunar parcial relativa a alguns acontecimentos durante sua prisão. Dizemos parcial porque não julgamos oportuno insis­tir na rememoração dos mesmos. (...)

CONCLUSÃO: O periciado mostra um quadro depressivo rea­tivo em remissão progressiva. Pelos comemorativos referidos pela esposa, a depressão teria sido severa, no momento mos­trando-se moderada, exigindo um prazo para a progressiva remissão total. 

A sedução da morte 

Em alguns presos políticos, surgiu a idéia de suicídio como meio de escaparem do sofrimento infindável. Era também o recurso extremo da fidelidade às suas próprias convicções, diante de um inimigo revestido da autoridade do Estado e que tinha a seu favor o            tempo, a crueldade dos modos e dos instrumentos de suplício, e a impunidade.

Em seu depoimento, em Fortaleza, em 1971, o estudante Manuel Domingos Neto, de 22 anos, narrou ao Conselho de Justiça:

(...) Que, em virtude de todos esses maus-tratos recebidos, o interrogando passou a ingressar num estado de desespero, chegando mesmo a pensar em suicídio; que, a partir dai, os policiais passaram a ter o máximo de cuidado com o interro­gando, evitando que o mesmo tomasse qualquer atitude extre­ma contra sua própria pessoa, pois constataram o estado de ânimo em que ele, interrogando, se encontrava; (...) que sobreveio, então, um esgotamento físico e mental ao interro­gando, a ponto de ter este de ser hospitalizado no Hospital 5.0.5. desta capital, onde passou dez dias inconsciente; que, depois, foi para o Hospital Militar, onde passou por um tra­tamento psiquiátrico durante quatro meses; (...)

No Rio, o estudante Luiz Arnaldo Dias Campos, de 21 anos, declarou, ao depor em 1977, que “pediu até que o matassem, para que parassem os suplícios e, como resposta, lhe disseram que per­maneceria vivo, a fim de sofrer ainda mais”.

Outros prisioneiros chegaram a atentar contra a própria vida, no esforço extremo de se livrarem das incessantes torturas, como foi o caso do desenhista Jurandir Rios Garçoni, de 29 anos, confor­me reconheceu na 2ª Auditoria do Exército de São Paulo, em 1972:

(...) que o interrogando deseja registrar nesta oportunidade que, quando de sua prisão na OBAN, recebeu maus-tratos, ou seja, torturas, de tal modo (ficou) abalado física e mental­mente que chegou mesmo a tentar o suicídio, cortando os pulsos com garfo de plástico, não logrando seu intento face a lesão insuficiente para a hemorragia desejada e ainda por­que foi socorrido em tempo; (...)

Outros casos semelhantes estão registrados nos arquivos pro­cessuaís:

(..) sendo levado para o DOPS, onde sofreu coação, chegan­do a ter uma depressão psíquica, tendo tentado o suicídio; (...) (Depoimento do engenheiro Jethero de Farias Cardoso, 48 anos, 5. Paulo, 197O).

(...) que, em Curitiba, estava preso com uma pessoa que parecia estar louca e que, posteriormente, soube se chamar Teodoro Ghescov; que (o) referido Teodoro, numa determinada manhã, tentou enfiar um prego na cabeça, usando o sapato como martelo; (...) (Depoimento do radiotécnico New­ton Cândido, 39 anos, 5. Paulo, 1977)

(...) que o interrogado esclarece que a confissão obtida na polícia, apesar de constituir verdade, foi obtida através de torturas; que, face a isso, o interrogado tentou o seu suicí­dio; (...) (Depoimento do estudante António Nahas Júnior, 19 anos, Recife, 1971)

Houve inclusive quem fizesse da tentativa de suicídio um gesto de protesto, como relata em seu dossiê-denúncia a bancária Inês Etienne Romeu, de 29 anos, mantida num cárcere privado em Pe­trópolis, em 1971:

(...) por conversas ouvidas de madrugada, entre Pardal e Laurindo, pressenti que se tramava uma cilada que culminaria com a minha morte. Pardal disse a Laurindo que “logo que ela desça do carro para andar os 200 metros, eu já estarei com o carro em alta velocidade; ela não terá nem tempo de ver o que lhe ocorrerá”. Zé Gomes também comentou comigo: “você cairá dura quando souber o que te aguarda”. Diante de tudo isso, e para não colaborar com a farsa de uma “morte acidental”, cortei os pulsos (na madrugada de domingo para segunda-feira, nove de agosto). Perdi muito sangue e, sentin­do que já estava perdendo os sentidos, ocorreu-me a certeza de que deveria lutar pela minha vida, porque tinha esperança de denunciar tudo o que ocorrera e, ainda, todas as coisas que presenciei no inferno em que estava. Assim, gritei por Pardal que, juntamente com os que se encontravam na casa, providenciou os primeiros socorros. (...)

Caso semelhante ocorreu com Frei Tito de Alencar Lima, quando preso e torturado no DOI-CODI, em São Paulo, em 1970, de acordo com o relatório escrito por ele e divulgado pela imprensa internacio­nal na época:

(...) Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas, no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pú­blica e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. (...) (...) Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Con­tinuei amolando a lata. Ao meio-dia, tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciaria. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me em­prestasse a gilete para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna do coto­velo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais de­pressa. Mais tarde, recobrei os sentidos num leito do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas. (...)

As torturas sofridas naquela ocasião deixaram em Frei Tito profundas sequelas psíquicas, levando-o a enforcar-se em agosto de 1974, quando se encontrava exilado na França. 

Impactos sobre a personalidade 

Alguns prisioneiros tiveram sua personalidade de tal modo afetada pelas sevicias, que passaram a acatar, para sobreviverem, todas as imposições de seus carcereiros, como narrou em carta à 1ª Au­ditoria da Aeronáutica do Rio, em 1975, o bancário Manoel Hen­rique Ferreira, de 21 anos, em carta anexada aos autos:

(...) em mim, essas torturas tiveram ainda o papel de deses­truturar psicologicamente. Elas levaram-me até o ponto de ir à televisão fazer um pronunciamento contra a luta da qual eu participara. Eu fui à televisão, fiz um pronunciamento re­negando minhas idéias, e fiz isto sob um estado completo de desestruturação por todas as torturas sofridas, por todas as ameaças e pelo medo que tinha de vir a ser morto. (...)

Posteriormente, esta mesma pessoa prestou um depoimento pú­blico num livro sobre prisioneiros políticos, no qual relata o impacto que os suplícios tiveram sobre sua personalidade:

(...) O fato de não estar preparado para a prisão ficou demonstrado desde o início de minha queda, quando entrei em verdadeiro pânico. Frente às torturas e aos torturadores, meu estado era de um intenso terror, e isto levou-me a que pas­sasse a ter um comportamento extremamente individualista, que se refletia diretamente no nível de colaboração que eu prestava aos torturadores. Assim, visando o fim daquelas tor­turas, que elas diminuíssem, eu prestava informações que leva­ram, inclusive, à queda de outros companheiros. Eu deixei de pensar em todos os motivos que me levaram a ingressar na luta, deixei de pensar em todos os companheiros que foram mortos no encaminhamento da luta. E meu único pensamento era o de livrar-me daquelas torturas e, para conseguir isso, prestava-me à colaboração com o inimigo, que procurava tirar o máximo proveito daquela situação.

Durante o tempo em que permaneci no CISA, fiquei comple­tamente apavorado. Quando era encaminhado para interroga­tórios, todo meu corpo tremia com tal intensidade, que não conseguia controlar. Ficava desesperado quando via a máqui­na de choques e, às vezes, só de vê-la, antes mesmo de começar a levar choques, começava a falar. As vezes até inventando coisas, com o intuito, com a esperança de não vir a receber choques. Depois de alguns dias, o meu pavor atingiu tal limite, que só de ouvir um abrir de portas já começava a tremer.

Eu não pensava em mais nada que não fosse a possibili­dade de me safar daquela situação. O que me preocupava era uma salvação individual, não procurava uma sobrevivência política. (...)

Quando as torturas se amainaram, meu estado psicológico era deplorável. Ao mesmo tempo em que tudo fizera para livrar­-me das torturas, agora começava a sentir remorsos por tudo aquilo e ficava com uma contradição muito grande, pois en­quanto eu não hesitara em trair para conseguir uma melhoria de condição pessoal, começava a pensar no que representou essa traição, não só ao nível político, como também ao nível pessoal.

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